Diga-me o que ouves e te direi quem és. A partir dos anos 1950, a música passou a ser tratada como um território em disputa: cada ritmo uma religião, cada gênero um time de futebol. Não apenas se disseminaram os rótulos, a ponto de os gêneros musicais começarem a ser impressos nos selos dos álbuns, como também se difundiu o costume de averiguar a filiação estética. Em outras palavras, a “panelinha” a que cada artista estava associado. Fulano cantava samba, cicrano fazia choro, beltrano tocava toadas. E fazia toda a diferença saber se o samba era de morro, de carnaval, de breque ou samba-canção. Dependendo do samba, dava para concluir se um artista era mais solar ou noturno, pobre ou rico, enfim, que apito ele tocava.

Foi assim que os jovens da Zona Sul carioca, carentes de um repertório que tivesse a sua cara — mais requintado que os sambas de morro, mais praiano que os sambas-canção de boate, em que imperava a fossa e a dor de cotovelo — investiram suas fichas na bossa nova, movimento musical surgido em 1958. Movimento, sim, porque era mais do que um gênero. Harmonia, melodia, ritmo e letra transmitiam a essência do que era ser jovem na Zona Sul do Rio de Janeiro. A música não se limitava aos discos e shows. Todo o resto tinha de fazer sentido também: das roupas ao corte de cabelo, das gírias aos locais frequentados.

Essa lógica se estendeu aos demais movimentos que se seguiram. A jovem guarda, criada pela moçada com um olho no rock estrangeiro. As canções de protesto, preferidas por quem militava no movimento estudantil e na resistência à ditadura. O tropicalismo, que buscava assimilar guitarras e música regional, liberdade de expressão e cultura de massa. Cada um à sua maneira, os movimentos contribuíram para elevar a prática musical a um patamar político sem precedentes no Brasil.

Processo semelhante caracterizou a música latino-americana, especialmente nos países que viviam sob ditaduras militares ou sob governos socialistas recentes. A nueva trova cubana, o nuevo cancionero argentino, o canto popular uruguaio, a nueva canción chilena foram algumas denominações mais ou menos locais para uma tendência geral de valorização de ritos folclóricos e expressões populares, quase sempre revestidas com letras de protesto.

Em todos esses lugares, desde meados dos anos 1960, a arte foi cerceada pela censura, e muitos compositores foram presos e exilados. Alguns morreram. O chileno Victor Jara, preso no dia do golpe que depôs Salvador Allende em 1973, teve as mãos esmigalhadas e o corpo crivado por mais de 30 tiros numa noite de extermínio do Estádio Nacional, em Santiago (o mesmo que, em 2003, virou Estádio Victor Jara). No Brasil, o arbítrio se abateu principalmente sobre os autores da música de protesto e da Tropicália — Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré foram alguns dos artistas presos e exilados.

A função social da música deixava de ser o mero entretenimento. As canções eram concebidas para fazer pensar. E contaminavam as demais esferas da vida cultural: a moda, o comportamento, a atitude. E não é que, de uma hora para outra, cada ouvinte percebeu que era preciso procurar sua turma?

A partir dos anos 1950, o Brasil passou por uma ebulição musical nunca antes vista, com um caldeirão de movimentos: bossa nova, jovem guarda, tropicalismo, música de protesto. Os festivais de música brasileira despertavam paixões no público, com vaias e aplausos calorosos. Mas, nos rebeldes anos 1960 e 1970, cantar virou atividade de risco, já que a censura baixava seu carimbo sobre aqueles que se insurgiam contra o regime.

Se o rádio foi o meio de comunicação estratégico da ditadura de Getúlio Vargas, a televisão foi o do regime militar. Por meio dela, o governo queria “integrar” o Brasil, veiculando para todos os rincões do país seus valores e realizações. Mas a TV nos anos 1970 foi além dessas expectativas conservadoras. Foi também o veículo em que artistas e autores de oposição veicularam obras de contestação à ditadura.

O rádio teve uma importância muito grande no contexto do golpe e do regime militar. Vários momentos históricos foram transmitidos por esse meio de comunicação, a ditadura se utilizou dele para veicular programas oficiais e propagandas, e a resistência contra a ditadura também passou pelas ondas radiofônicas. Nesse período, o rádio ainda era parte fundamental do cotidiano da população brasileira.

Quando se fala em resistência cultural à ditadura, é bem provável que venha à cabeça um conjunto de músicas, filmes e peças de teatro. A literatura parece ter ocupado um lugar secundário. Ledo engano! A literatura teve um papel importante entre as artes de resistência. Tanto no diagnóstico da violência e da experiência social sob o autoritarismo, quanto no exame das contradições e impasses dos intelectuais de esquerda que se opunham ao regime.

A produção brasileira de artes plásticas no período da ditadura refletiu não só o inconformismo com o regime autoritário, como também as mudanças artísticas pelas quais o mundo passava na época. Se, durante os anos 1950, havia um otimismo da arte nacional em relação ao desenvolvimento do país, como nos mostram o concretismo e a construção de Brasília, nos anos 1960, a palavra de ordem era romper com todos os padrões do “sistema”.

O teatro feito durante o regime militar, apesar de ter tido menos público do que o cinema e a música popular, propiciava o encontro físico com a plateia, que muitas vezes comungava os valores críticos à ditadura. A classe teatral esteve entre os principais alvos da repressão, mesmo na fase inicial da ditadura, quando as liberdades individuais dos artistas estavam razoavelmente garantidas.

A partir dos anos 1950, o Brasil passou por uma ebulição musical nunca antes vista, com um caldeirão de movimentos: bossa nova, jovem guarda, tropicalismo, música de protesto. Os festivais de música brasileira despertavam paixões no público, com vaias e aplausos calorosos. Mas, nos rebeldes anos 1960 e 1970, cantar virou atividade de risco, já que a censura baixava seu carimbo sobre aqueles que se insurgiam contra o regime.

Soa paradoxal: apesar do conservadorismo e da violência do regime, a produção cultural brasileira durante a ditadura militar vem sendo lembrada sobretudo pelo engajamento político à esquerda, pelo desejo de mudança, pelas críticas ao governo.