Autor: Andre Deak
Os anos 1950 e 1960 foram marcados por um intenso debate sobre a educação brasileira. Muitos intelectuais e movimentos sociais formularam propostas para a organização de um sistema nacional de ensino mais democrático e popular, que superasse as desigualdades socioculturais, formasse cidadãos consciente de seus direitos e preparados para desafios econômicos. O Brasil era considerado uma pátria “mal-educada”, com índices de analfabetismo alarmantes. A polarização política que antecedeu ao golpe de 1964 também atingiu a educação. A sociedade brasileira fervilhava com projetos educacionais humanistas e inovadores que, mais tarde, sofreram diretamente os impactos da repressão.
Até recentemente, as discussões sobre a repressão às pessoas LGBTs, assim como as formas de resistência empreendidas por indivíduos e movimentos representativos desse segmento, não eram muito comuns no trabalho de Memória e Justiça no Brasil. As políticas públicas voltadas à proteção, afirmação e reconhecimento de direitos das pessoas LGBTs, também não observavam esse recorte específico e, mesmo as pesquisas acadêmicas demoraram a incorporar adequadamente essa perspectiva.
Especialmente em relação às Comissões da Verdade, este quadro começou a se alterar especialmente a partir da realização da 98º audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” (CEV de São Paulo), em 26 de novembro de 2013, com o tema Ditadura e homossexualidade: resistência do movimento LGBT”. Para falar a essa audiência, foram convidados James N. Green e Marisa Fernandes, militantes reconhecidos e históricos do movimento LGBT e da luta contra a ditadura. Ambos fizeram importantes relatos, tanto como indivíduos que vivenciaram os fatos, quanto como pesquisadores, dedicados a investigar as formas de operar de um poder repressor que perseguiu as sexualidades dissidentes.
Sensibilizados pelas questões trazidas pelos dois depoentes, os membros da Comissão Nacional da Verdade se propuseram a tarefa a realizar uma segunda audiência, em conjunto com a CEV de São Paulo, intitulada “Ditadura e Homossexualidade no Brasil”. Em parceria com o Memorial da Resistência, essa audiência aconteceu em dia 29 de março de 2014, na sede do antigo DOPS em São Paulo, e foi bem mais ampla que a primeira.
Com a presença de diferentes setores dos movimentos sociais de direitos humanos e LGBTs, os pesquisadores convidados, dessa vez, apresentaram seus trabalhos, que tratavam de diferentes aspectos das arbitrariedades relativas ao cruzamento entre ditadura e homossexualidades. Entre os estudiosos, estiveram presentes: Benjamin Cowan, Rafael Freitas, Renan Quinalha, e Rita Colaço e, novamente, James N. Green, Marisa Fernandes. No capítulo temático sobre homossexualidades, que consta no relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, há um bom panorama das discussões ocorridas a partir da descrição minuciosa das falas desses pesquisadores.
Benjamin Cowan, por exemplo, apresentou sua pesquisa sobre o discurso homofóbico da ditadura, obtido em textos de revistas militares, documentos e discursos de oficiais das Forças Armadas, no período. Cowan salientou que a associação entre a homossexualidade – tida como uma ameaça aos “sagrados” valores da família – e a subversão política foi um dos pilares de sustentação da ideologia moralista e conservadora da ditadura. Servia como justificativa para a face da repressão que teve como alvos específicos os gays, as lésbicas e as travestis nos anos de 1960 e 70.
James Green, por sua vez, historiou a sua atuação durante a ditadura militar. Também destacou a articulação do grupo SOMOS – do qual foi um dos fundadores – e as relações do nascente movimento LGBT com a esquerda brasileira, durante o processo de redemocratização do país, a partir de 1985.
Marisa Fernandes refletiu sobre a situação das lésbicas na sociedade brasileira e o papel que desempenhavam no interior do movimento LGBT. Falou igualmente sobre a atuação das lésbicas no movimento feminista, que também se reorganizava. Lembrou, ainda, a perseguição da censura aos livros da Cassandra Rios, escritora lésbica, cujos romances eróticos eram sistematicamente censurados durante a ditadura.
Rafael Freitas apresentou um panorama das arbitrariedades e da violência praticadas pelas as forças de segurança, nas ruas da cidade de São Paulo, entre 1976 a 1982, contra a população LGBT e prostitutas. Destacou, em especial, a atuação sistemática, repressiva e violenta dos delegados José Wilson Richetti e Guido Fonseca.
Renan Quinalha discutiu a relevância de se incluir, no trabalho de Memória e Verdade, um recorte sobre as perseguições sofridas pelas pessoas LGBT no período ditatorial – o que não havia ocorrido até aquele momento. Quinalha sinalizou a importância histórica dessa mudança de postura e a necessidade de ampliação do quadro de vítimas a considerar para a construção das narrativas, levando-se em conta os marcadores sociais da diferença que operam no campo da sexualidade e do gênero.
Por fim, Rita Colaço abordou aspectos relativos ao sistema de justiça e às operações de censura, destacando as maneiras como o Estado repressor se valeu desses instrumentos para controle das liberdades de expressão e artística. Em seu trabalho, a pesquisa apurou Referindo-se a casos de jornalistas, artistas e apresentadores de TV, a pesquisadora demonstrou como a moral conservadora informava esses aparatos de repressão.
A partir dessas pesquisas e da pressão do movimento LGBT organizado na audiência pública, a Comissão Nacional da Verdade decidiu incluir, em seu relatório final, um capítulo específico sobre as violações de direitos humanos das pessoas LGBTs, apesar da resistência de alguns de seus componentes.
Além da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, e da CNV, também a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro incorporou, em seu relatório final, um capítulo específico sobre a ditadura e as homossexualidades no Estado do Rio de Janeiro.
Esse foi um passo fundamental para a inscrição, na história oficial sobre a ditadura, das violências sofridas por pessoas LGTB em função de suas orientações sexuais e identidades de gêneros. Foi igualmente importante para embasar as recomendações de medidas administrativas e políticas públicas a diferentes esferas do Estado brasileiro, no que diz respeito a esse tema particular.
A Comissão Nacional da Verdade elaborou a recomendação 23, específica contra a discriminação das homossexualidades, na qual adverte para a necessidade de: “Supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades”. Ao detalhar o escopo desta advertência,“recomenda-se [no relatório] alterar a legislação que contenha referências discriminatórias das homossexualidades, sendo exemplo o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime ‘praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar’. A menção revela a discriminação a que os homossexuais estão sujeitos no âmbito das Forças Armadas”.
Essa recomendação foi considerada, aceita e implementada pelo governo, tendo sido decisiva para tanto uma ação judicial movida pela Procuradoria Geral da República, em que se questionava, justamente, a constitucionalidade desse dispositivo discriminatório do Código Penal Militar. Em outubro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ação procedente em parte, declarando que não fora acolhido no texto Constitucional, de 1988, as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”. Deu-se, assim, o cumprimento de uma recomendação da CNV.
Ao mesmo tempo, a Comissão paulista elaborou uma ampla lista de recomendações voltadas a essa temática, que sugeriam:
- Criminalização da homolesbotransfobia.
- Aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero
- Construção de lugares de memória dos segmentos LGBTs ligados à repressão e à resistência durante a ditadura, como a Delegacia Seccional do Centro na Rua Aurora, o Departamento Jurídico XI de Agosto, o Teatro Ruth Escobar, o Presídio do Hipódromo; o Ferro`s Bar e as escadarias do Teatro Municipal.
- Pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído junto ao movimento LGBT.
- Reparação às pessoas LGBTs perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado.
- Convocação dos agentes públicos mencionados para prestarem esclarecimentos sobre os fatos narrados no presente relatório.
- Revogação da denominação de “Dr. José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, do departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo pela Lei 7076 de 30/04/1991.
- Suprimir, nas leis, referências discriminatórias das homossexualidades: um exemplo é o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.
Excetuando-se esse último ponto, que ecoava a recomendação 23 da CNV, sobre o Código Penal Militar, nenhuma outra medida foi tomada em resposta ao que foi sugerido pelas Comissões da Verdade, em relação às pessoas LGBTs – numa demonstração veemente de que o caminho da cidadania plena e da igualdade de direitos desses segmentos ainda precisa ser trilhado em nosso país.
A Comissão Nacional da Verdade a partir da análise dos arquivos da ditadura (1964-1985) e das vozes de mulheres e homens que tiveram seus direitos violados apresentou uma narrativa diferente da oficial sobre esse período da história brasileira. A CNV estabeleceu 13 grupos de trabalho para cumprir o objetivo de esclarecer fatos e circunstâncias, promover esclarecimento dos casos de tortura e de morte e, por fim, identificar e tornar publicas as estruturas que permitiram estas atrocidades. Um desses grupos, Ditadura e Gênero, se dedicou a identificar os diferentes impactos das praticas de repressão e tortura sobre homens e mulheres.
Vários dos relatórios produzidos sobre as violações de direitos humanos durante os regimes autoritários na América Latina, se dedicaram a denunciar o caráter político das violências praticadas. Nessa perspectiva as vítimas eram apresentadas como um grande grupo homogêneo que não possuía gênero, raça, etnia ou orientação sexual. Ao nomear as mulheres que foram submetidas à prisão, tortura e assassinato a CNV contribuiu para que as mulheres sejam parte da memória coletiva sobre a resistência, afirmando que participaram ativamente de movimentos, e que, ao desafiarem a ordem também foram reprimidas pelo regime militar como mulheres.
As audiências públicas e relatórios produzidos pela CNV registraram as experiências de mulheres que não tiveram suas histórias contadas em outro lugar. Seja pela narrativa oficial que não reconheceu as violações praticadas contra tantas mulheres; seja pela narrativa dos movimentos de resistência que em geral não deram a dimensão devida à atuação das mulheres.
Além da tortura propriamente dita é importante considerar outros impactos que a repressão teve sobre a vida delas . A solidão, o desemprego, o estigma, criar os filhos sem o pai que estava preso, morto ou desaparecido, proteger familiares que ignoravam a violência do regime, trazer e levar recados na prisão, enfrentar os agentes da repressão ao perguntar por seus parentes, todas essas circunstâncias foram parte da luta de muitas mulheres diante do regime militar. Elas foram protagonistas na busca pela verdade ao procurar seus familiares vítimas da perseguição política e demandar apuração dos crimes da ditadura; estiveram na linha de frente dos do movimento pela Anistia.
Lutaram como mães e esposas, como irmãs e avós, como guerrilheiras, trabalhadoras, estudantes, atrizes, enfermeiras, cozinheiras, desafiaram a ditadura ao oferecer abrigo para perseguidos, ao visitar seus companheiros ou mesmo ao pegar em armas. Os sofrimentos das mulheres narrados pela Comissão Nacional da Verdade são múltiplos como foram (e ainda são) múltiplas as suas formas de resistência frente ao autoritarismo.
A Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final aponta que a construção de estradas e hidrelétricas, o desmatamento para a pecuária, agricultura e mineração e a criação de polos de desenvolvimento, resultaram na expulsão de comunidades indígenas de suas terras e em milhares de mortes.
Infelizmente as práticas da tortura e violações de direitos humanos por agentes do estado permeiam a História do Brasil em seus diferentes momentos. Durante o período da ditadura militar tais práticas ficaram evidentes por seu caráter sistemático e recorrente. A Comissão Nacional da Verdade lançou luz sobre a institucionalização da tortura durante a vigência do regime militar, apontando torturadores e órgãos de Estado que utilizaram esta prática abominável como recurso para consolidar o projeto político em curso a partir do Golpe de 1964. A CNV também possibilitou, a reflexão sobre a ocorrência e a institucionalização da tortura após 1985, indicando caminhos para a prevenção e o combate dessa marca autoritária e truculenta que permanece no Estado brasileiro.
Prisões são lembradas apenas quando há motins, massacres e fugas em massa. Do contrário, a mídia, as instâncias de poder, e mesmo o público em geral, não estão interessados em saber o que se passa no interior dos estabelecimentos prisionais. As celas insalubres, em que se apertam dezenas de pessoas expostas a todos os tipos de violações de direitos, não incomodam. Isso porque, presos fazem parte do grupo das minorias indesejadas. Assim era no período da ditadura e assim continua sendo até hoje.
Ao combater a violência com violência, o Estado brasileiro tem contribuído para tornar o Brasil um país ainda mais violento. Hoje, pelo menos nove pessoas são mortas diariamente em decorrência da ação policial. Somente no ano de 2015, foram mortas 3.320 pessoas vítimas de intervenções policiais (segundo dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
O Brasil tem promovido os direitos da Justiça de Transição como uma forma de tentar superar o legado autoritário da ditadura. Para tanto, comissões governamentais têm trabalhado na busca por mortos e desaparecidos, na reparação econômica, moral, simbólica e psicológica aos que foram perseguidos ou sofreram violações de direitos humanos, e na promoção e garantia dos direitos da Justiça de Transição.