Os traumas causados pela violência de Estado no período da ditadura militar entre os anos de 1964 e 1985 produziram um sofrimento que deve ser encarado como questão de saúde pública, além de uma pauta de Memória, Verdade e Justiça. Seus efeitos podem aparecer em um âmbito pessoal, na dificuldade de manter relações, no sono prejudicado por pesadelos e pela insônia, na falta de estabilidade emocional, entre outros efeitos que ficam como marcas da violência. O sofrimento que essas marcas produzem alcança um aspecto intergeracional, afetando laços familiares influenciados pelas dificuldades que passaram as famílias de perseguidos políticos pelo regime. Aparecem também em um âmbito social, uma vez que marcaram na sociedade brasileira um longo período de silenciamento e tentativas de esquecimento da existência das vítimas afetadas por graves violações de direitos humanos. Tal silenciamento e sistemático esquecimento deve ser entendido como um sintoma da sociedade brasileira, cujo Estado mantém um modo de funcionamento que ainda reproduz muitos elementos de exclusão social de negros, indígenas, mulheres, e outros grupos subjugados. Tendo isto em mente, a reparação psíquica é fundamental tanto em um aspecto individual quanto em um aspecto coletivo para o tratamento e reparação das marcas de todas essas violências passadas e perpetuadas. Assim, ela foi incluída como política pública a partir do projeto Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia, sendo um desdobramento da luta de muitos anos pela Memória, Verdade e Justiça sustentada pelas vítimas da ditadura, incluindo movimentos sociais e familiares de pessoas mortas e desaparecidas durante o regime militar.
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A concentração da riqueza anda ao lado da luta por terras na história do Brasil desde a instituição da Lei de Terras de 1850. No cenário de conflitos sociais, a história de fugas, resistências e lutas de negros, indígenas e trabalhadores camponeses formou as raízes culturais, sociais, econômicas e políticas do povo brasileiro. Organizações populares como as Ligas Camponesas foram perseguidas e reprimidas fortemente antes mesmo da ditadura militar, ficando praticamente neutralizadas quando o país viveu o golpe de Estado em 1964. Por serem sujeitos políticos não reconhecidos, camponeses mortos e desaparecidos neste período acabaram excluídos dos direitos da Justiça de Transição.
A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão Camponesa da Verdade revelam parte deste capítulo da história do país que não se restringiu apenas àquele período. A modernização conservadora no campo e a ganância agroexportadora acirraram os conflitos agrários, a violência no campo e os dados de homicídios de trabalhadores rurais. É fundamental falar sobre a violência no campo para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça.
Aleluia e Morte
Denise Santana Fon*
Sábado de Aleluia. Madrugada de Aleluia. Pedro estremeceu na sua rede, o sonho fora mesmo terrível. Ergueu-se tateando ao encontro dos tamancos, acendeu o candeeiro e levantou-se da rede de algodão que ainda balançou de leve, sem gemer, nos armadores de ferro. E ele pensou nos armadores de ferro. Na escola, Pedro tinha ouvido falar de minas de ferro, jazidas de ferro, recordava em sua infantil dificuldade … Armadores de ferro. Ferro extraído de minas distantes … Fundido ele não sabia onde, por um operário qualquer, transformado em armadores, na fábrica … E Pedro tinha acabado de dormir suspenso nos armadores de ferro, dentro de sua rede de algodão.
– Mas isto não tem nenhuma importância – pensa Pedro, dirigindo-se agora à janela. Abriu-a devagarzinho e viu que a madrugada ainda era de lua. Mas, apesar da madrugada de lua, o garoto viu que a barra do dia já vinha surgindo. Isto causou um estranho pulsar no seu coração de criança.
– Como o pai está demorando! – dizia-se já inquieto na sua inocente inquietude de criança magra, nascida no campo, esperando o pai que não chegava.
Desde a véspera que seu pai saíra cedinho para Cerro Verde em busca de comprador para a sua roça. Com o dinheiro da venda – tinha-lhe dito o pai, poderia comprar uma porção de teréns para a casa. Umas roupinhas para ele ir à escola, os livros que a professora vivia reclamando. Até uma alpercata de rabicho ele teria para ir à escola. Ia acabar aquele negócio de ir à escola de pé no chão. Mas o garoto via a barra do dia aparecer ao longe, naqueles pedaços de céu que ele não sabia o que era e se inquietava com a demora do pai.
A manhã era manhã de roça e orvalho, era orvalho de campo e os galos que cantavam ao longe eram os mesmos galos de todos os dias, de todas as madrugadas, acordando os pássaros, os camponeses iguais ao seu pai, o sol iluminador do campo. A manhã de roça e a paz superficial e anêmica era a mesma de sempre na fisionomia dos homens que já começavam a cruzar os caminhos dirigindo-se para as plantações.
Pedro chamou os irmãos menores. Pedro, em jejum forçado, com os irmãozinhos, seguia agora pelo campo a fora. Seu pai ainda não tinha voltado e aquelas lágrimas furtivas que ele descobrira nos olhos de sua mãe, ao sair com os irmãos para a igrejinha distante, tinham-no deixando pensando. Aquelas lágrimas estavam mesmo angustiando uma criança, andando sob o sol da manhã da roça, com os seus irmãozinhos, rumo à igreja. Ele não compreendia bem as coisas, mas nem por isso deixava de ouvir todos os dias da boca de seu pai, dos amigos do seu pai, palavras como “terra para a gente”, “reforma agrária”, “direitos do camponês”, essas coisas.
E Pedro via que os outros camponeses como o seu pai, viviam procurando por ele em casa, no campo, fazendo perguntas, e já ouvira até um deles tratar seu pai de “meu líder”. Mas ele não sabia o que era isto. Apenas que seu pai era um líder e, o pior de tudo, que sua vida corria perigo por ser um “líder”. Idéias confusas … Pedro sabia apenas que seu pai era bom e que era amado pelos outros camponeses e, principalmente, por ele.
Manhã de roça, o orvalho beijando as flores e Pedro criança, Pedro de coração batido, caminhando para a igreja, Pedro inocente, Pedro de estômago vazio, seguia com os irmãos para a igreja. E hoje tinha catecismo e ele ia ouvir do sisudo padre o “não matarás” de sempre. Da professora mesmo, ele já ouvira palavras bonitas. Até ainda se lembrava que ela tinha dito, um dia, que ele devia “amar” e respeitar o próximo.
Estrada sinuosa, cansativa, E lá pertinho, a curva de todos os dias. Não a curva de todos os dias, não. O que era aquilo ali na curva da estrada? Pedro se perguntava o que era aquilo. E pouco a pouco, à medida que os passos avançavam, agora mais próximos da curva, as mesmas perguntas esquisitas se amontoando no cérebro infantil de Pedro. O que era líder? Por que seu pai não havia voltado? Que história era aquela de perigo para a vida dele? Por que era simplesmente um líder? Se ele nem sabia o que era aquilo? Ali esta a curva e, projetando-se para fora dela, um estranho pé humano se agigantava. Pedro assustado, com os irmãos, pulou para a frente e, baixando os olhos, viu tudo.
De olhos arregalados, brilhando dentro do sol, um terrível esgar de dor na boca, o peito varado de balas, ali estava o seu pai.
As crianças, chorando alto, correram para o corpo ensangüentado, abraçaram em prantos o cadáver ainda quente e Pedro criança maior, com aquele pranto silencioso dos heróis nascido de heróis. Pedro sorriu baixinho. Pedro lembrava-se de algo que estava acima de sua própria dor de criança abatida, de menino sem pai, em plena meninice. Pedro se lembrava de alguma coisa que tinha ouvido.
Paz na terra, alegria na terra molhada de orvalho e de sangue.
Sábado de Aleluia! Os homens, na sua hipocrisia de homens de todos os tempos, também tinham morto o Salvador e ainda esperavam por Ele, ressurecto, para mata-lo de novo…. As paredes do Campo Santo erguiam-se brancas e tenebrosas ao longe. Uma chuva fina e fria caia persistente.
E ao longe uma criança caminhando de coração inocente. Uma criança julgando-se anjo, procurando ressuscitar o pai.
Numa cova rasa, sombreada apenas por uma simples cruz de madeira, um pequenino vulto movendo-se:
“Aleluia!” , “Aleluia!” É o grito claro, é o grito rompendo as estradas, escalando os canaviais, saindo da boca de uma criança pobre, ajoelhada no túmulo de um herói, no túmulo de um líder que ele não sabe o que é, procurando ressuscita-lo, gritando, gritando, dentro do campo, na manhã de sol, na dor do campo.
Aleluia! Aleluia! Não matarás! Amar e respeitar o próximo! São os gritos desconcertados no delírio infantil de uma criança ajoelhada no túmulo do pai, morto, enterrado em cova rasa, num cemitério distante, na estranha terra dos homens vivos.
* Este conto foi escrito em homenagem ao líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em Sapé, Paraíba, e publicado originalmente no jornal paraibano “O Norte”, do grupo dos Associados.
Os anos 1950 e 1960 foram marcados por um intenso debate sobre a educação brasileira. Muitos intelectuais e movimentos sociais formularam propostas para a organização de um sistema nacional de ensino mais democrático e popular, que superasse as desigualdades socioculturais, formasse cidadãos consciente de seus direitos e preparados para desafios econômicos. O Brasil era considerado uma pátria “mal-educada”, com índices de analfabetismo alarmantes. A polarização política que antecedeu ao golpe de 1964 também atingiu a educação. A sociedade brasileira fervilhava com projetos educacionais humanistas e inovadores que, mais tarde, sofreram diretamente os impactos da repressão.
Até recentemente, as discussões sobre a repressão às pessoas LGBTs, assim como as formas de resistência empreendidas por indivíduos e movimentos representativos desse segmento, não eram muito comuns no trabalho de Memória e Justiça no Brasil. As políticas públicas voltadas à proteção, afirmação e reconhecimento de direitos das pessoas LGBTs, também não observavam esse recorte específico e, mesmo as pesquisas acadêmicas demoraram a incorporar adequadamente essa perspectiva.
Especialmente em relação às Comissões da Verdade, este quadro começou a se alterar especialmente a partir da realização da 98º audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” (CEV de São Paulo), em 26 de novembro de 2013, com o tema Ditadura e homossexualidade: resistência do movimento LGBT”. Para falar a essa audiência, foram convidados James N. Green e Marisa Fernandes, militantes reconhecidos e históricos do movimento LGBT e da luta contra a ditadura. Ambos fizeram importantes relatos, tanto como indivíduos que vivenciaram os fatos, quanto como pesquisadores, dedicados a investigar as formas de operar de um poder repressor que perseguiu as sexualidades dissidentes.
Sensibilizados pelas questões trazidas pelos dois depoentes, os membros da Comissão Nacional da Verdade se propuseram a tarefa a realizar uma segunda audiência, em conjunto com a CEV de São Paulo, intitulada “Ditadura e Homossexualidade no Brasil”. Em parceria com o Memorial da Resistência, essa audiência aconteceu em dia 29 de março de 2014, na sede do antigo DOPS em São Paulo, e foi bem mais ampla que a primeira.
Com a presença de diferentes setores dos movimentos sociais de direitos humanos e LGBTs, os pesquisadores convidados, dessa vez, apresentaram seus trabalhos, que tratavam de diferentes aspectos das arbitrariedades relativas ao cruzamento entre ditadura e homossexualidades. Entre os estudiosos, estiveram presentes: Benjamin Cowan, Rafael Freitas, Renan Quinalha, e Rita Colaço e, novamente, James N. Green, Marisa Fernandes. No capítulo temático sobre homossexualidades, que consta no relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, há um bom panorama das discussões ocorridas a partir da descrição minuciosa das falas desses pesquisadores.
Benjamin Cowan, por exemplo, apresentou sua pesquisa sobre o discurso homofóbico da ditadura, obtido em textos de revistas militares, documentos e discursos de oficiais das Forças Armadas, no período. Cowan salientou que a associação entre a homossexualidade – tida como uma ameaça aos “sagrados” valores da família – e a subversão política foi um dos pilares de sustentação da ideologia moralista e conservadora da ditadura. Servia como justificativa para a face da repressão que teve como alvos específicos os gays, as lésbicas e as travestis nos anos de 1960 e 70.
James Green, por sua vez, historiou a sua atuação durante a ditadura militar. Também destacou a articulação do grupo SOMOS – do qual foi um dos fundadores – e as relações do nascente movimento LGBT com a esquerda brasileira, durante o processo de redemocratização do país, a partir de 1985.
Marisa Fernandes refletiu sobre a situação das lésbicas na sociedade brasileira e o papel que desempenhavam no interior do movimento LGBT. Falou igualmente sobre a atuação das lésbicas no movimento feminista, que também se reorganizava. Lembrou, ainda, a perseguição da censura aos livros da Cassandra Rios, escritora lésbica, cujos romances eróticos eram sistematicamente censurados durante a ditadura.
Rafael Freitas apresentou um panorama das arbitrariedades e da violência praticadas pelas as forças de segurança, nas ruas da cidade de São Paulo, entre 1976 a 1982, contra a população LGBT e prostitutas. Destacou, em especial, a atuação sistemática, repressiva e violenta dos delegados José Wilson Richetti e Guido Fonseca.
Renan Quinalha discutiu a relevância de se incluir, no trabalho de Memória e Verdade, um recorte sobre as perseguições sofridas pelas pessoas LGBT no período ditatorial – o que não havia ocorrido até aquele momento. Quinalha sinalizou a importância histórica dessa mudança de postura e a necessidade de ampliação do quadro de vítimas a considerar para a construção das narrativas, levando-se em conta os marcadores sociais da diferença que operam no campo da sexualidade e do gênero.
Por fim, Rita Colaço abordou aspectos relativos ao sistema de justiça e às operações de censura, destacando as maneiras como o Estado repressor se valeu desses instrumentos para controle das liberdades de expressão e artística. Em seu trabalho, a pesquisa apurou Referindo-se a casos de jornalistas, artistas e apresentadores de TV, a pesquisadora demonstrou como a moral conservadora informava esses aparatos de repressão.
A partir dessas pesquisas e da pressão do movimento LGBT organizado na audiência pública, a Comissão Nacional da Verdade decidiu incluir, em seu relatório final, um capítulo específico sobre as violações de direitos humanos das pessoas LGBTs, apesar da resistência de alguns de seus componentes.
Além da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, e da CNV, também a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro incorporou, em seu relatório final, um capítulo específico sobre a ditadura e as homossexualidades no Estado do Rio de Janeiro.
Esse foi um passo fundamental para a inscrição, na história oficial sobre a ditadura, das violências sofridas por pessoas LGTB em função de suas orientações sexuais e identidades de gêneros. Foi igualmente importante para embasar as recomendações de medidas administrativas e políticas públicas a diferentes esferas do Estado brasileiro, no que diz respeito a esse tema particular.
A Comissão Nacional da Verdade elaborou a recomendação 23, específica contra a discriminação das homossexualidades, na qual adverte para a necessidade de: “Supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades”. Ao detalhar o escopo desta advertência,“recomenda-se [no relatório] alterar a legislação que contenha referências discriminatórias das homossexualidades, sendo exemplo o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime ‘praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar’. A menção revela a discriminação a que os homossexuais estão sujeitos no âmbito das Forças Armadas”.
Essa recomendação foi considerada, aceita e implementada pelo governo, tendo sido decisiva para tanto uma ação judicial movida pela Procuradoria Geral da República, em que se questionava, justamente, a constitucionalidade desse dispositivo discriminatório do Código Penal Militar. Em outubro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ação procedente em parte, declarando que não fora acolhido no texto Constitucional, de 1988, as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”. Deu-se, assim, o cumprimento de uma recomendação da CNV.
Ao mesmo tempo, a Comissão paulista elaborou uma ampla lista de recomendações voltadas a essa temática, que sugeriam:
- Criminalização da homolesbotransfobia.
- Aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero
- Construção de lugares de memória dos segmentos LGBTs ligados à repressão e à resistência durante a ditadura, como a Delegacia Seccional do Centro na Rua Aurora, o Departamento Jurídico XI de Agosto, o Teatro Ruth Escobar, o Presídio do Hipódromo; o Ferro`s Bar e as escadarias do Teatro Municipal.
- Pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído junto ao movimento LGBT.
- Reparação às pessoas LGBTs perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado.
- Convocação dos agentes públicos mencionados para prestarem esclarecimentos sobre os fatos narrados no presente relatório.
- Revogação da denominação de “Dr. José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, do departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo pela Lei 7076 de 30/04/1991.
- Suprimir, nas leis, referências discriminatórias das homossexualidades: um exemplo é o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.
Excetuando-se esse último ponto, que ecoava a recomendação 23 da CNV, sobre o Código Penal Militar, nenhuma outra medida foi tomada em resposta ao que foi sugerido pelas Comissões da Verdade, em relação às pessoas LGBTs – numa demonstração veemente de que o caminho da cidadania plena e da igualdade de direitos desses segmentos ainda precisa ser trilhado em nosso país.
A Comissão Nacional da Verdade a partir da análise dos arquivos da ditadura (1964-1985) e das vozes de mulheres e homens que tiveram seus direitos violados apresentou uma narrativa diferente da oficial sobre esse período da história brasileira. A CNV estabeleceu 13 grupos de trabalho para cumprir o objetivo de esclarecer fatos e circunstâncias, promover esclarecimento dos casos de tortura e de morte e, por fim, identificar e tornar publicas as estruturas que permitiram estas atrocidades. Um desses grupos, Ditadura e Gênero, se dedicou a identificar os diferentes impactos das praticas de repressão e tortura sobre homens e mulheres.
Vários dos relatórios produzidos sobre as violações de direitos humanos durante os regimes autoritários na América Latina, se dedicaram a denunciar o caráter político das violências praticadas. Nessa perspectiva as vítimas eram apresentadas como um grande grupo homogêneo que não possuía gênero, raça, etnia ou orientação sexual. Ao nomear as mulheres que foram submetidas à prisão, tortura e assassinato a CNV contribuiu para que as mulheres sejam parte da memória coletiva sobre a resistência, afirmando que participaram ativamente de movimentos, e que, ao desafiarem a ordem também foram reprimidas pelo regime militar como mulheres.
As audiências públicas e relatórios produzidos pela CNV registraram as experiências de mulheres que não tiveram suas histórias contadas em outro lugar. Seja pela narrativa oficial que não reconheceu as violações praticadas contra tantas mulheres; seja pela narrativa dos movimentos de resistência que em geral não deram a dimensão devida à atuação das mulheres.
Além da tortura propriamente dita é importante considerar outros impactos que a repressão teve sobre a vida delas . A solidão, o desemprego, o estigma, criar os filhos sem o pai que estava preso, morto ou desaparecido, proteger familiares que ignoravam a violência do regime, trazer e levar recados na prisão, enfrentar os agentes da repressão ao perguntar por seus parentes, todas essas circunstâncias foram parte da luta de muitas mulheres diante do regime militar. Elas foram protagonistas na busca pela verdade ao procurar seus familiares vítimas da perseguição política e demandar apuração dos crimes da ditadura; estiveram na linha de frente dos do movimento pela Anistia.
Lutaram como mães e esposas, como irmãs e avós, como guerrilheiras, trabalhadoras, estudantes, atrizes, enfermeiras, cozinheiras, desafiaram a ditadura ao oferecer abrigo para perseguidos, ao visitar seus companheiros ou mesmo ao pegar em armas. Os sofrimentos das mulheres narrados pela Comissão Nacional da Verdade são múltiplos como foram (e ainda são) múltiplas as suas formas de resistência frente ao autoritarismo.
A Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final aponta que a construção de estradas e hidrelétricas, o desmatamento para a pecuária, agricultura e mineração e a criação de polos de desenvolvimento, resultaram na expulsão de comunidades indígenas de suas terras e em milhares de mortes.
Infelizmente as práticas da tortura e violações de direitos humanos por agentes do estado permeiam a História do Brasil em seus diferentes momentos. Durante o período da ditadura militar tais práticas ficaram evidentes por seu caráter sistemático e recorrente. A Comissão Nacional da Verdade lançou luz sobre a institucionalização da tortura durante a vigência do regime militar, apontando torturadores e órgãos de Estado que utilizaram esta prática abominável como recurso para consolidar o projeto político em curso a partir do Golpe de 1964. A CNV também possibilitou, a reflexão sobre a ocorrência e a institucionalização da tortura após 1985, indicando caminhos para a prevenção e o combate dessa marca autoritária e truculenta que permanece no Estado brasileiro.
Prisões são lembradas apenas quando há motins, massacres e fugas em massa. Do contrário, a mídia, as instâncias de poder, e mesmo o público em geral, não estão interessados em saber o que se passa no interior dos estabelecimentos prisionais. As celas insalubres, em que se apertam dezenas de pessoas expostas a todos os tipos de violações de direitos, não incomodam. Isso porque, presos fazem parte do grupo das minorias indesejadas. Assim era no período da ditadura e assim continua sendo até hoje.