Foto: Douglas Mansur

Onde houver silêncio, eu ficarei cantando
Pra não deixar morrer o gesto humano

Sidney Miller, em “O Navegante”

 

 

Era uma espécie de tortura. Não a tortura em sua forma física, explícita, escancarada, como a que o irmão sofrera no DOI-Codi e que lhe tirara a vida um dia antes de completar 24 anos, em 1971. Mas uma tortura silenciosa, duradoura, igualmente perversa e ainda pungente.

Gilberto Molina não encontrava outra palavra para se referir ao seu calvário e ao de seus irmãos, sobretudo de sua mãe, Maria Helena. O pai, Álvaro, morrera em 1985. Anos antes, em 1979, recebera de Gilberto a notícia de que um documento do Dops, recém-encontrado, confirmava a morte do Flávio, sob tortura. “Por que, se ele já estava preso?”, foi a reação do velho, instantes antes de mergulhar num silêncio que se arrastou pelo resto da tarde. Em 1981, soubera que o corpo havia sido enterrado no Cemitério Dom Bosco, com nome falso, e que seus restos mortais tinham sido escondidos numa vala clandestina com mais de mil outras ossadas. A família não poderia transferi-los para o Rio de Janeiro e dar-lhe um enterro digno. Pelo menos por enquanto.

Agora, já se passava mais de uma década desde que a vala clandestina fora finalmente revelada e nada de localizarem os ossos de Flávio. Gilberto já tinha feito de tudo. Processara três vezes o Estado. A primeira ação, no final de 1979, resultou na retificação do assento de óbito. A partir dela, o nome que apareceria no registro lavrado sob o número 50.741, na folha 191v (verso), no livro 73, não seria mais o de Álvaro Lopes Peralta, identidade falsa utilizada por seu irmão na guerrilha, mas o nome verdadeiro de Flávio Carvalho Molina. Por meio da segunda ação, em 1991, a família exigiu ressarcimento de danos junto à Justiça Civil. A terceira, em 1995, buscava o reconhecimento da responsabilidade do Estado com base na lei 9.140/95, que possibilitou oficializar a morte de cidadãos com atividade política que tenham desaparecido entre 1961 e 1979.

Aquela mesma lei havia determinado a criação de uma Comissão Especial responsável, entre outras atribuições, por “envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados”. Ora, a referida comissão tinha sido crida em 1995 e, até agora, nenhum avanço real havia sido feito nas ossadas de Perus. Gilberto acompanhara mais ou menos de perto toda a discussão com a Unicamp, aquela contenda ridícula em que a própria universidade, corporativista, havia feito de tudo para fugir de qualquer responsabilidade pela negligência de seus pesquisadores e pelo fracasso fragoroso dos trabalhos que deveriam ter sido realizados no agora extinto Departamento de Medicina Legal.

Não era aceitável tamanha demora. Não era razoável tanto descaso.

Desde que as ossadas foram transferidas para São Paulo, no final de 2000, Gilberto e sua mãe tinham sido convocados mais uma vez para “ajudar na coleta de dados”. Era um acinte, um desaforo. A mãe, já idosa, passara toda uma década colhendo amostras de sangue a cada três anos. Ossos que poderiam ser de Flávio haviam sido encaminhados não apenas para a Universidade Federal de Minas Gerais, mas também para uma universidade na Inglaterra e para um laboratório na Colômbia. Nenhum avanço em nenhum desses locais. Na UFMG, soube-se depois, o material ficara retido por cinco anos sem qualquer atuação efetiva. Cobrada pelo Ministério Público, a universidade devolvera o material com frascos quebrados e nenhuma boa notícia. Os exames resultaram inconclusos.

Quando se verificou que as ossadas não poderiam mais permanecer na Unicamp, a Secretaria de Segurança Pública do Estado assumiu a tutela do material. Uma vez que encaminhar as ossadas ao IML não era uma opção compatível com as expectativas dos familiares, chegou-se a uma solução mediada com relativo esforço pelas partes. As análises ficariam sob a responsabilidade do legista Daniel Muñoz, no Instituto Oscar Freire, o braço da Faculdade de Medicina da USP dedicado à medicina legal. Munõz tinha dupla vinculação institucional: professor livre-docente de medicina legal na Faculdade de Medicina da USP, ele também atuava como legista no IML. De acordo com o novo convênio, firmado entre a Secretaria de Segurança Pública e a USP, Muñoz passaria a atuar na análise das ossadas com vistas à identificação do maior número possível de ossadas. Os trabalhos seriam conduzidos no Instituto Oscar Freire com a participação, sob demanda, de profissionais do Instituto e também do IML, sem jamais configurar o IML como guardião ou repositório do material.

Quatro ossadas de Perus foram enviadas para o Instituto Oscar Freire em 7 de dezembro de 2000. Junto com elas, outras seis ossadas, exumadas das sepulturas individuais onde teriam sido enterrados dois desaparecidos políticos: Hiroaki Torigoe e José Luiz da Cunha. Todas as demais permaneceram na Unicamp até maio do ano seguinte, quando finalmente foram levadas para o cemitério do Araçá, em São Paulo. Duzentas gavetas do columbário daquele cemitério foram cedidas pela Prefeitura para a guarda das ossadas, que aguardariam ali o término das análises das dez anteriores.

Uma das ossadas do primeiro grupo, a de número 240, tinha fortes indícios de pertencer a Flávio Molina segundo os legistas Eduardo Zappa, da Unicamp, e Daniel Muñoz, da USP. A sobreposição de imagens havia confirmado a similaridade, mas não fora suficiente para a identificação. Seria preciso analisar o DNA. Não tinha outro jeito.

No Instituto Oscar Freire, repetiu-se a mesma demora e a mesma negligência do período da Unicamp. Aos olhos dos familiares e das entidades de Direitos Humanos, todas as instituições pareciam usar aquele caso para obter benefícios ou contrapartidas. Em vez de estabelecer convênios internacionais para a análise de DNA, por exemplo, a sensação era de que os responsáveis esticavam a corda na expectativa de serem contemplados com o equipamento necessário para introduzir a genética forense em sua própria instituição. Em outras palavras: em vez de correr para dar uma resposta às famílias, tanto Muñoz, nos anos 2000, quanto Badan Palhares e Zappa, nos anos 1990, pareciam pressionar para que algum governo, municipal, estadual ou federal, tomasse a iniciativa de equipar os respectivos departamentos com tecnologia de ponta, fosse em Campinas ou em São Paulo.

Gilberto Molina esperou mais três anos. Numa noite, em julho de 2004, dias depois de participar de mais uma reunião com Muñoz e representantes do Ministério Público e da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, respirou fundo, sentou-se diante do computador e escreveu um ofício para a procuradora Eugênia Gonzaga, então à frente da Procuradoria Regional dos Diretos do Cidadão em São Paulo. Na carta, relatou resumidamente o périplo dos ossos e o fracasso nas análises até aquele momento, inclusive nos três anos que haviam se passado desde a transferência para o Instituto Oscar Freire. Por fim, solicitou ajuda para que se buscasse fazer na Argentina a análise do DNA da ossada número 240, suspeita de ser de seu irmão. Se o país vizinho havia se tornado uma referência em antropologia e arqueologia forense, por que não estabelecer um convênio?

Não era a primeira vez que Gilberto recorria ao Ministério Público. Ainda em 1999, quando se constatou o estado deplorável em que as ossadas eram mantidas em Campinas, sem qualquer expectativa de identificação num futuro próximo, Gilberto representara junto à procuradoria regional da República do Rio de Janeiro pedindo providências do Ministério Público. O caso foi remetido a São Paulo, em razão da delimitação geográfica do Cemitério Dom Bosco, e caiu no colo de Marlon Weichert, então à frente da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão. Em poucos meses, o procurador estudou o assunto, visitou a sala das ossadas na Unicamp e assumiu para si a missão de buscar uma solução. Entre 1999 e 2000, atuou junto ao secretário estadual de Justiça, Belisário dos Santos Jr., e ao secretário adjunto de Segurança Pública, Mário Papaterra Limonji, para viabilizar a retirada das ossadas de Campinas e sua transferência para o Instituto Oscar Freire.

Paralelamente, Marlon esforçava-se para que a análise de DNA pudesse ser feita no Brasil. Tanto insistiu junto à Secretaria de Segurança Pública que, em 2001, a pasta equipou a Superintendência da Polícia Científica de São Paulo com um aparelho específico para extração de DNA. Era uma máquina com tecnologia de ponta, capaz de extrair DNA mitocondrial, uma vez que os especialistas relatavam a impossibilidade de extrair DNA nuclear daquelas ossadas, tamanha a deterioração do material. Dois anos depois, descobriu-se que a Polícia Científica não havia calibrado a máquina para extrair DNA mitocondrial, conforme a orientação. A máquina estava sendo usada para extrair DNA nuclear e auxiliar nas perícias dos crimes do dia a dia, mas não para a análise das ossadas de Perus, que ensejara sua aquisição.

Agora, em meados de 2004, os membros do Ministério Público haviam chegado ao limite. Não era admissível tamanho desprezo pelos familiares. Eugênia acionou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos, e obteve do então ministro Nilmário Miranda a ordem para que o exame fosse realizado na Universidade de Buenos Aires, às custas da União, conforme solicitado por Gilberto. Os trâmites tomaram todo o segundo semestre. Mais uma vez, a ossada número 240 precisou ser serrada. Dois fragmentos do fêmur esquerdo e um dente incisivo central superior foram enviados à Argentina acompanhados de amostras de sangue de Maria Helena e dos irmãos de Flávio Molina. O resultado chegou em janeiro de 2005: “inconclusivo”. Os peritos argentinos sugeriram fazer uma nova tentativa, com fragmentos de algum outro osso. Outros dois pedaços foram extraídos, agora do fêmur direito. Outro kit, outra análise, a mesma resposta: “inconclusivo”.

Eugênia nem esperou o envio do segundo kit para Buenos Aires. Decidiu acionar mais uma vez a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos para que fosse providenciado, em paralelo, o exame de DNA num laboratório particular de São Paulo. Desde 2003, o Genomic Engenharia Molecular realizava análise de DNA mitocondrial, indicado para materiais muito antigos ou em estágio avançado de putrefação. O custo girava em torno de R$ 5 mil, cerca de vinte salários mínimos em 2004. O pedido foi igualmente aceito pelo ministro no meio do ano, e um novo ofício foi enviado ao legista Daniel Muñoz, solicitando a extração dos fragmentos ósseos para o laboratório.

Antes disso, às vésperas do Carnaval, Muñoz telefonou para Gilberto Molina. Eles precisavam conversar. Muñoz queria produzir uma prova conclusiva e pediu para que Gilberto fosse até São Paulo. Imaginando que se tratava de alguma providência extraordinária para que fosse feito o segundo envio de material para Bueno Aires, o irmão de Flávio prometeu encontrá-lo no Instituto Oscar Freire na tarde da Quarta-feira de Cinzas. Embarcou de manhã, chegou a São Paulo na hora do almoço e tomou o táxi direto para a Rua Teodoro Sampaio, 115. Amelinha Teles, membro da Comissão de Familiares, sugeriu que ele fosse acompanhado pelo advogado da comissão.

Muñoz os conduziu até uma sala onde havia um esqueleto montado em cima de uma bancada de cimento. Sentaram-se em volta daquela ossada. Gilberto não conseguia entender o objetivo daquilo.

Talvez a presença do advogado tenha constrangido o legista, que engatou uma conversa que parecia sem sentido. Muñoz discorreu sobre a atividade da perícia, explicou como se dava a análise por sobreposição de imagens e com base nos dados antropométricos, como altura presumida e idade, coisas que Gilberto já estava cansado de saber. Contou como era feita a extração de DNA, que necessariamente exigia que fossem retirados pedaços de ossos. O tempo todo, o esqueleto ali, sobre a bancada.

A certa altura, Muñoz fez um silêncio que parecia anteceder uma inflexão dramática.

— Você acha parecido? — perguntou. — Acha que pode ser seu irmão?

Gilberto sentiu-se indignado. Não sabia se partia pra cima do legista, se ia embora. Talvez fosse o caso de responder com escárnio. “Nunca vi tão magro”, pensou em dizer. Mas não cabia. Aquilo tudo era grotesco demais, perverso demais. Uma tortura sem fim.

— Não dá pra saber — desconversou.

Gilberto saiu mudo do Instituto Oscar Freire. Ensimesmado, tomou o táxi e foi direto ao aeroporto. Já em casa, no Rio, a esposa quis saber como tinha sido. Gilberto se esquivou.

— Tô muito cansado, depois eu conto.

O relógio marcava oito horas. Foi para o quarto, fechou a janela, esticou-se na cama e desabou numa crise de choro que o fez lembrar da primeira visita ao Cemitério Dom Bosco, em 1981, quando o administrador lhe mostrara a vala e algumas ossadas.

Gilberto não aguentava mais. Dali a seis meses, a abertura da vala clandestina completaria quinze anos. Fazia trinta e três anos que seu irmão havia morrido, assassinado nas dependências do DOI-Codi, um órgão do Estado, e até hoje esse mesmo Estado não se dignara a dar uma resposta, a entregar-lhes o corpo, a cumprir com o que deveria ser um imperativo moral e uma obrigação. Até quando, por Deus, até quando?

No dia 10 de agosto, Gilberto precisou voltar ao Instituto Oscar Freire e reencontrar Muñoz. A análise no Genomic havia sido aprovada e nova coleta de material precisaria ser feita, na sua presença e de um técnico do laboratório. Outra vez um pedaço do fêmur foi retirado. Outra vez uma amostra de sangue de Gilberto foi colhida. Passadas três semanas, o resultado da análise de DNA foi entregue à procuradoria regional da República. Após quinze anos de desrespeito e omissão, o resultado foi positivo. A ossada 240 era mesmo de Flávio Carvalho Molina, o terceiro desaparecido político identificado nas ossadas encontradas na vala de Perus.

No dia 11 de outubro, uma terça-feira, a urna contendo os remanescentes ósseos de Flávio foi finalmente sepultada no jazigo da família, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Um duo de flautas tocava ao fundo. Maria Helena não pôde ver nada. Ela havia perdido a visão. Gilberto sussurrou ao pé do ouvido da mãe cada detalhe da emocionante cerimônia.

***

Três anos após a identificação de Flávio Molina, os promotores Eugênia Gonzaga e Marlon Weichert, do Ministério Público de São Paulo, inauguraram uma série de representações nas esferas civil e criminal denunciando pessoas e instituições pela prática de crimes contra a humanidade, como sequestro forçado (prisões ilegais praticadas pela repressão), homicídio com meio cruel (tortura) e falsidade ideológica (na falsificação de atestados de óbito). Uma dessas representações, firmada em 25 de setembro de 2008, referia-se justamente ao assassinato de Flávio Molina.

Para os procuradores, a Justiça deveria responsabilizar penalmente o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por torturar e matar Flávio no DOI-Codi, e também o policial militar Miguel Fernandes Zaninello, funcionário do DOI-Codi e declarante da morte de Flávio no laudo falso do IML. Zaninello, conforme apurou a CPI de Perus, em 1990, era o condutor habitual do veículo que transportava os corpos do IML para serem enterrados como indigentes no Cemitério Dom Bosco, e que os sepultadores conheciam simplesmente como “Miguel”.

A iniciativa do MP buscou ainda responsabilizar os médicos legistas Arnaldo Siqueira, Renato Cappellano e José Henrique da Fonseca. Os três haviam assinado o laudo falso que atribuía a morte de Flávio a um tiroteio, omitindo os sinais de tortura facilmente verificáveis no corpo da vítima, conforme demonstravam as fotos arquivadas no próprio IML. “Esclarecemos que esta representação integra um conjunto de medidas que vêm sendo adotadas em decorrência da perpetração de crimes contra a humanidade pelas autoridades públicas que tomaram parte nas atividades de repressão à dissidência política durante o regime militar no Brasil”, dizia um trecho da ação.

Logo que assumiu a Procuradoria da República dos Direitos do Cidadão, no início da década, Eugênia concluíra que era preciso entrar com ação judicial para enfrentar o descalabro em que se encontrava o tema da justiça de transição no Brasil. A própria Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), criada em 1995, não tinha atuação efetiva nem orçamento próprio. Enquanto países como Argentina e Chile levavam a cabo condenações judiciais e o compromisso de esclarecer as violações de direitos praticadas em seus períodos ditatoriais, no Brasil nada era feito. Era como se pairasse um pacto de silêncio mal-ajambrado, uma mordaça, um “cale-se” alicerçado na teoria equivocada de que a redemocratização havia pacificado o tema e que vivíamos uma conciliação que não poderia ser arranhada por iniciativas “revanchistas”, para usar um termo muito comum nos anos 1980 e 1990.

Nem uma Comissão da Verdade o Brasil havia se proposto a fazer. Comissões da Verdade são instrumentos criados pelo Estado para investigar e registrar violações de direitos humanos ocorridas em determinado período. Como uma espécie de ouvidoria com mandato específico, elas operam de modo a apurar as responsabilidades do próprio Estado, suas instituições e autoridades, e auxiliar na transição de um regime autoritário ou de conflito armado, por exemplo, para um regime democrático. Seu objetivo, em geral, é romper com práticas que precisam ser abolidas a fim de inaugurar uma nova etapa histórica, em conformidade com os valores democrático e o Estado de Direito.

Quase sempre, as Comissões da Verdade estabelecem princípios orientadores para políticas de reparação e elaboram recomendações para que os poderes e as instituições revisem métodos e construam processos alinhados com a prática da democracia. A Argentina instalou sua Comissão da Verdade em dezembro de 1983 e a concluiu em 1984, logo no início do governo Raúl Alfonsín, primeiro presidente civil após a ditadura. O Chile fez o mesmo em 1990, também no primeiro governo democrático após o regime de exceção. No Brasil de 2005, quando Flávio foi identificado, haviam se passado duas décadas desde a volta dos civis ao governo sem que nada parecido fosse implementado.

— A gente vai ter que pegar mais pesado com essa gente — Eugênia comentou com Marlon. — Eles estão te enrolando, enrolando os familiares, o país inteiro.

A identificação de Flávio foi a gota d’água. Eugênia e Marlon entenderam que não bastava envidar esforços na busca pelos restos mortais dos desaparecidos, em Perus ou no Araguaia. Claro que isso também era importante. Mas, em paralelo, era preciso que os crimes de desaparecimento forçado, ocultação de cadáveres e falsificação de atestados de óbito tivessem alguma resposta condenatória por parte do Poder Judiciário. Se até agora isso não havia se tornado uma prática corriqueira, o Ministério Público teria de assumir esse papel por meio de ações civis públicas e outras representações que permitissem responsabilizar atores e judicializar o debate.

A estratégia proposta por Eugênia e Marlon tinha como ponto de partida a ideia de inverter a lógica historicamente martelada pela repressão. Nos processos que tramitavam na Justiça Militar ao longo dos 21 anos de regime de exceção, os presos políticos, os militantes e a maioria dos mortos e desaparecidos com prontuário no Dops sempre foram os réus. Eram eles os “terroristas”, os subversivos, os que praticavam ilegalidades, os que deveriam ser condenados por crime comum ou pela Lei de Segurança Nacional. Agora, nos anos 2000, seriam feitas as primeiras ações em que o Estado e seus representantes seriam citadas como aqueles que praticaram infrações e ilegalidades. Os militantes políticos, os desaparecidos e também seus familiares seriam as vítimas desse Estado que perseguia, sequestrava, torturava, matava e ocultava.

Sobretudo, era preciso martelar essa tecla, repetir isso muitas vezes. Dessa mudança de perspectiva dependia a chamada justiça de transição. Comparativamente, os crimes praticados pela Rota e pela Polícia Militar de maneira geral careciam da mesma inversão de perspectiva. Desde os anos 1970, muitos políticos, jornais e programas de rádio ajudavam a disseminar a compreensão equivocada de que o policial que mata é sempre a vítima, enquanto o “elemento” executado, muitas vezes com tiros nas costas, é necessariamente o culpado. Havia uma narrativa pronta para ser repetida. Os mortos pela polícia eram sempre bandidos perigosos, armados, que haviam resistido à voz de prisão e trocado tiros com os agentes, que só fuzilaram o “elemento” – às vezes com mais de cinco tiros à queima-roupa – em legítima defesa. De forma equivalente, faltava à recente democracia a percepção de que o Estado fora perverso, criminoso, violador de direitos, omisso ou negligente em diversos momentos e em relação a diversos assuntos ou episódios. A ocultação de corpos numa vala clandestina era um deles. A demora em proceder com a análise das ossadas era outro. Com algum atraso, chegara a hora de o Ministério Público assumir essa empreitada de modo a fustigar as instituições do poder Judiciário, buscar maior mobilização social e ampliar a visibilidade sobre esse tema.

A experiência chilena contribuiu muito nesse sentido. Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), havia proferido uma sentença determinando que violações de direitos praticadas no Chile durante a ditadura militar deveriam ser consideradas crimes contra a humanidade e, por extensão, não poderiam prescrever nem ser anistiados. Essa decisão serviu de farol para a dupla Eugênia e Marlon.

Já em 2007, os dois organizaram um seminário em São Paulo, com a presença de especialistas em justiça de transição do Brasil e de outros países sul-americanos. Saíram do evento decididos a fazer com que o Ministério Público assumisse como metas “a provocação do sistema de Justiça brasileiro para reverter o quadro de impunidade e esquecimento”, “o aparelhamento do país para a devida apuração de violação de direitos humanos, inclusive com a instituição de um serviço autônomo de antropologia e arqueologia forense, tarefa que não pode ser atribuída ao aparato policial” e “a provocação do Poder Executivo para que cesse a interposição de recursos e qualquer tipo de resistência às decisões judiciais das Cortes internas e internacionais que vêm determinando a abertura de arquivos sigilosos”, conforme resumido na Carta de São Paulo, espécie de resolução do seminário. Os procuradores também se comprometiam a cobrar do Poder Público a instituição de uma Comissão da Verdade.

Duas ações civis públicas relacionadas à vala de Perus foram propostas pelo MP em novembro de 2009. Uma delas buscou responsabilizar autoridades e instituições que haviam contribuído para ocultar cadáveres de militantes políticos mortos pela repressão. Foram citados na ação a União, o Estado de São Paulo e o Município de São Paulo – partícipes no sistema de perseguição, sequestro, morte sob tortura, falsificação de laudos e desaparecimento forçado – bem como os ex-prefeitos Paulo Maluf e Miguel Colasuonno, responsáveis respectivamente pela construção do cemitério de Perus nos períodos de construção e pela construção da vala clandestina, o médico legista Harry Shibata, que assinou laudos forjados e com nomes falsos no IML, Romeu Tuma, então chefe do Dops, e Fábio Pereira Bueno, ex-diretor do Serviço Funerário.

A segunda ação tomava como objeto não a vala em si e os crimes relacionados à sua construção e ocultação, mas a demora no processo de análise das ossadas a partir de 1992. Desta vez, foram citados dez réus, entre servidores públicos e instituições, que agiram de modo a atravancar o processo de identificação, seja por descaso, negligência, desvio de função ou por não cumprir convênios e termos de cooperação firmados nos anos 1990: a União, o Estado de São Paulo, a Unicamp, a UFMG e a USP, bem como os médicos legistas Fortunato Badan Palhares e Daniel Muñoz, responsáveis pelas ossadas quando sob tutela da Unicamp e da USP, Vera Ferreira Prado, responsável por analisar os fragmentos enviados à UFMG, e Celso Perioli e Norma Bonaccorso, à frente da Polícia Científica no período em que a máquina para extração e análise de DNA foi recebida e jamais calibrada para ser utilizada na identificação das ossadas de Perus.

Em conjunto, as iniciativas do Ministério Público Federal acabaram impulsionando diferentes medidas relacionadas à Justiça de transição e à garantia do direito à memória e à verdade. Da mesma forma que a abertura da vala de Perus, em 1990, influenciara a abertura dos arquivos do IML, em 1991, e do Dops, em 1992, bem como a descoberta de outras valas clandestinas onde foram enterrados militantes políticos – como as descobertas no cemitério de Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, e no cemitério de Santo Amaro, em Recife –, as ações propostas pelo MP reforçaram a percepção de que intensificar as buscas por desaparecidos deve ser uma obrigação do poder público, não somente retórica, mas por meio de políticas e projetos, como já assinalava a Lei 9.140 por ocasião da criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Construção necessariamente coletiva, essa postura coincidia com a adotada no governo federal no mesmo período. Em 2007, o livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, compilava os trabalhos realizados pela comissão ao longo de uma década, registrando as histórias de vida, e também de morte, das vítimas fatais da ditadura no Brasil, sempre explicitando o papel do Estado, em suas diferentes esferas, nas violações de direitos por ele praticadas.

Em dezembro de 2009, outro passo fundamental foi dado com a aprovação da terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), contendo pela primeira vez um eixo orientador dedicado à memória e à verdade. “O Brasil ainda processa com dificuldades o resgate da memória e da verdade sobre o que ocorreu com as vítimas atingidas pela repressão política durante o regime de 1964”, dizia o texto, introduzindo um breve histórico das principais ações empreendidas pelas comissões de familiares, pelo Ministério Público e também pela União no âmbito da justiça de transição. “A impossibilidade de acesso a todas as informações oficiais impede que familiares de mortos e desaparecidos possam conhecer os fatos relacionados aos crimes praticados e não permite à sociedade elaborar seus próprios conceitos sobre aquele período”. Uma das ações propostas na diretriz número 24 do PNDH-3, conforme redação atualizada em maio do ano seguinte, orientava o Poder Executivo a “promover, com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos”. Esse compromisso seria reforçado, ainda em 2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

***

No dia 20 de maio de 2010, Marlon Weichert depôs perante os membros da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em São José, na Costa Rica.

Sua participação estava prevista para a tarde, na sessão dedicada aos peritos. Um dos representantes do Estado brasileiro, no entanto, impugnou sua participação. Alegou que Marlon, em 2001, havia viajado ao Araguaia na condição de procurador, participado da coleta de 50 depoimentos de moradores e investigado possíveis locais de sepultamento clandestino de militantes mortos pelo Exército nos primeiros anos da década de 1970, de modo que sua participação não seria isenta ou imparcial. Ele tinha lado.

Resignado, Marlon considerou ficar ali apenas como espectador e retornar ao Brasil sem maiores infortúnios. O presidente da Corte, no entanto, tratou de encaixá-lo entre os oradores da manhã.

— Você vai falar como testemunha — determinou, com habilidade. — E, como testemunha, vai responder às questões da perícia.

Antes de Marlon, falaram Crimeia de Almeida e Laura Petit. Sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, de onde partira semanas antes do início da operação militar na região, Crimeia perdera o companheiro, André Grabois, e o sogro, o dirigente do PCdoB Maurício Grabois, ambos assassinados pela repressão. Grávida, foi presa e torturada e deu à luz na prisão. Por meses, sofreu a ameaça de que lhe roubariam o filho e o entregariam para uma família de patriotas anti-comunistas. Laura, por sua vez, era ainda adolescente quando os três irmãos mais velhos – Lúcio, 27, Jaime, 25, e Maria Lúcia, 19 – partiram para o Araguaia, no começo de 1971. Nunca mais os viu. Os restos mortais de Maria Lúcia foram localizados em 1991 e identificados em 1996.

Ambas contaram suas experiências, descreveram as torturas praticadas contra os militantes e contaram sobre a violência perpetrada contra os lavradores da região para que não alimentassem ou abrigassem os “comunistas”. Falaram sobre a busca das ossadas de seus familiares, missão que as unia e que seguia bloqueada. Somente as Forças Armadas, diziam, poderiam responder a suas perguntas: o que havia acontecido com os desaparecidos do Araguaia? Onde os ossos tinham sido enterrados?

Eram as mesmas perguntas que Crimeia, Laura, Amelinha, Suzana, Iara e outros familiares repetiam desde 1979, sobre os desaparecidos do Araguaia e todos os outros desaparecidos, de qualquer outra organização ou sem militância definida. As mesmas perguntas que haviam motivado uma ação judicial, movida em 1982, para exigir da União esclarecimentos sobre as circunstâncias das mortes de seus parentes e a localização de seus remanescentes ósseos. As mesmas perguntas que, em 1995, diante do silêncio e da omissão do Estado, haviam motivado os familiares a recorrer à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, por iniciativa do Grupo Tortura Nunca mais do Rio de Janeiro e do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL).

À tarde, falariam os peritos. Um deles, representando os peticionários, era o advogado Belisário dos Santos Jr., o mesmo ex-secretário estadual de Justiça que, em meados da década de 1990, havia atuado para que as ossadas de Perus fossem retiradas da Unicamp e pudessem ser novamente analisadas. Do outro lado do balcão, representando o Estado brasileiro com o objetivo de evitar que a União fosse condenada a procurar sepulturas e a dar explicações sobre seu paradeiro, discursaria gente como José Gregori, combativo ativista dos Direitos Humanos que havia presidido a Comissão Justiça e Paz nos anos 1970 e fora ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, e o magistrado Sepúlveda Pertence, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal.

— São todas pessoas das quais a gente gosta — Belisário comentou com Marlon, a caminho de um restaurante, na hora do almoço. — Mas nós estamos do lado certo.

Em novembro de 2010, a Corte condenou por unanimidade o Estado brasileiro no caso “Gomes Lund e outros”, assim batizado em referência a um dos setenta militantes desaparecidos no Araguaia. “O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal”, dizia a sentença.

A sentença deliberava ainda que o Estado brasileiro havia descumprido a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana de Direitos Humanos, à qual aderiu em 1992. A total ausência de condenações de torturadores e a omissão da Justiça brasileira quanto aos crimes continuados de desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres, aliadas à aplicação dada pelo Poder Judiciário à Lei de Anistia, mostravam-se anacrônicas e incompatíveis com a convenção internacional. Neste sentido, a sentença reiterava a responsabilidade do Estado “pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial” e “pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis”.

Finalmente, a sentença da Corte dispunha, por unanimidade, onze recomendações ao Brasil, com destaque para as duas primeiras: “O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja” e “o Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares”.

Suas deliberações não se resumiam, portanto, ao caso específico dos desaparecidos do Araguaia. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA vinha reforçar o que já estava previsto pela Lei 9.040 no sentido de que envidar todos os esforços para localizar os desaparecidos, identificar e entregar os restos mortais aos familiares não poderia ser pensada somente como uma bandeira política ou um compromisso moral: tratava-se de um imperativo legal, uma ordem, agora fortalecida por uma condenação internacional.

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Todas as comissões de memória e verdade criadas em São Paulo entre 2011 e 2016, a exemplo da Comissão Nacional da Verdade (CNV), trataram do tema vala de Perus. Esse aspecto de urgência e sinergia é relevante porque reforça o entendimento de que as ossadas não podem ser esquecidas ou negligenciadas. Ao contrário, os relatórios das comissões da verdade, por sua característica e seu papel institucional nas democracias, poderiam contribuir sobremaneira para mobilizar as instituições responsáveis no sentido de elaborar políticas públicas específicas voltadas para o tema do desaparecimento forçado e para a conclusão dos trabalhos de análise e identificação das ossadas, já uma reivindicação de quase três décadas.

No Capítulo 12, intitulado “Desaparecimentos forçados”, o relatório da CNV (2012-2014) destacou que a coincidência das datas de abertura da vala clandestina em Perus e de alterações deliberadas nas quadras do cemitério de Vila Formosa, também em São Paulo e também em meados dos anos 1970, favorece a tese de que teria havido uma ação coordenada com o objetivo de promover a ocultação dos corpos. O relatório também compila alguns números de referência que ajudam a esboçar um mapa do desaparecimento forçado no Brasil. “A partir de 1971, o Cemitério Dom Bosco, em Perus, foi o destino do corpo de, no mínimo, 29 militantes políticos, nove com identidade falsa”.

“No Rio de Janeiro”, acrescenta o Capítulo 12, “os corpos de pelo menos 14 militantes políticos estariam enterrados no Cemitério Ricardo de Albuquerque”. Ali, as ossadas teriam sido dispostas numa vala clandestina somente em 1980, mas sem a separação em sacos, o que causou uma mistura completa de ossos e, o mais grave, em contato direto e permanente com a terra. “Em 1991, o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro se organizou para tentar conduzir o trabalho de identificação das 2.100 ossadas encontradas na vala e chegou a catalogar algumas delas, que foram separadas em 17 sacos plásticos para serem submetidas à análise técnica. Por falta de recursos, o trabalho foi interrompido em 1993”. Já em Recife, “os cemitérios de Santo Amaro e da Várzea foram destino para corpos de militantes, como é o caso dos seis membros da VPR mortos em 8 ou 9 de janeiro de 1973, na chacina da Chácara São Bento”.

A Comissão Nacional da Verdade foi estabelecida por lei em 2011, no primeiro ano de mandato da ex-presa política Dilma Rousseff, com base em projeto do Executivo protocolado no ano anterior, o último do segundo mandato do ex-presidente Lula. Resultou de uma construção delicada, após ampla negociação dentro e fora do governo e uma significativa disputa entre o ministro Nelson Jobim, da Defesa, que era contra a comissão, e o ministro Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos, um de seus mais dedicados defensores. Eram sete os membros da CNV quando de sua instalação, em maio de 2012: Claudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso. Os dois primeiros se desligaram antes do término dos trabalhos. Pedro Dallari entrou no último ano e assumiu a função de relator.

Entregue oficialmente à sociedade no dia 10 de dezembro de 2014, o relatório da CNV acrescenta ainda que “o sepultamento de militantes como indigentes, em cemitérios localizados na periferia de grandes centros urbanos, era também feito com a colaboração do serviço funerário” e que “pela concentração da ação repressiva em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, foi nesses Estados onde essa prática ocorreu com mais frequência”.

A recomendação número 27 da CNV é dedicada a esse tema. “Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos”, orienta o caput. “Devem ser realizadas diligências aptas a propiciar a localização e identificação dos restos mortais das pessoas que foram executadas por motivos políticos, que permanecem em locais desconhecidos ou incertos”, detalha a justificativa do item. “É necessário, ainda, que se confira tratamento respeitoso e adequado às ossadas já localizadas e recolhidas, que se encontram sob a guarda do Estado ou de instituições por ele delegadas, adotando-se as medidas necessárias para garantir sua preservação, conservação e segurança. O trabalho de identificação dessas ossadas deve ser intensificado. (…) Após a identificação, cada ossada deverá ser entregue aos familiares da vítima, em cerimônia pública oficial e solene, para que possa haver o sepultamento de forma digna”.

A Câmara Municipal de São Paulo instituiu a Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog e a executou em duas etapas: a primeira, durante sete meses, de maio a dezembro de 2012, e a segunda, entre 2013 e 2014. Na primeira fase, presidida por Ítalo Cardoso e com relatoria de Eliseu Gabriel, a Comissão tomou a descoberta da vala de Perus como ponto de partida, promovendo as primeiras audiências com antigos membros da CPI que se instalara na mesma Casa entre 1990 e 1991. “Cientes de que os crimes praticados pelo Estado militar começaram a ser revelados em 1990, com a abertura de uma vala clandestina em um cemitério criado e administrado pela Prefeitura de São Paulo”, diz o relatório, “os membros decidiram que os trabalhos da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog deveriam partir da recuperação das conclusões da CPI das Ossadas de Perus”. Participaram daquela comissão, na 1ª etapa, os vereadores Aguinaldo Timóteo, Eliseu Gabriel, Gilberto Natalini, Ítalo Cardoso, Jamil Murad, José Rolim e Juliana Cardoso. Amelinha Teles, Ivan Seixas, Tereza Lajolo e Eugênia Gonzaga foram alguns dos depoentes.

Na segunda etapa da comissão, de março de 2013 a dezembro de 2014, com Gilberto Natalini na presidência e Mario Covas Neto na relatoria, foi dedicado um capítulo a relembrar a descoberta da vala clandestina a fim de aprofundar um tópico pertinente: como evitar que pessoas em posse de seus documentos sejam ainda hoje enterradas como não-reclamadas, sem cerimônia e sem que as famílias sejam comunicadas? Integraram a segunda fase da Comissão Vladimir Herzog, além de Natalini e Covas Neto, os vereadores Juliana Cardoso (vice-presidente), Ricardo Young, Rubens Calvo, Laercio Benko, José Police Neto e Toninho Vespoli. Em audiência conjunta, feita em parceria com deputados da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa, os vereadores ouviram dois antigos superintendentes do Serviço Funerário, Carlos Eduardo Giosa e Rui Barbosa Alencar, além de especialistas em desaparecimento e indigência, de ontem e de hoje, como Amelinha Teles, Tereza Lajolo, Padre Júlio Lancellotti e a promotora de Justiça Luciana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos.

Presidida pelo deputado estadual Adriano Diogo, a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva (2011-2015) realizou 150 audiências públicas ao longo de três anos de atividade. Foi instituída em 2011, a primeira do país, largando na frente da própria CNV. Em seu relatório final, houve também um capítulo dedicado aos “Métodos e técnicas de ocultação de corpos na cidade de São Paulo”. Ali, buscou-se descrever a cadeia de comando que regia o desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres.

Sobretudo, a equipe da Comissão Rubens Paiva, composta ainda pelos deputados Marcos Zerbini, André Soares, Ed Thomas e Ulysses Tassinari, e assessorada por familiares e pesquisadores como Amelinha Teles, Ivan Seixas, Tatiana Merlino, Vivian Mendes e Renan Quinalha, entre outros, dedicou-se a reforçar a necessidade de se retomar as análises das ossadas de Perus, estagnadas no columbário do Araçá havia mais de dez anos. Em especial, dois estudos realizados durante o período de vigência da Comissão Rubens Paiva, e que seriam apresentados em audiências públicas e incorporados ao relatório final, jogaram luz sobre a necessidade de retomar a investigação sobre a vala clandestina e a identificação das ossadas.

O primeiro desses estudos, em 2012, consistiu em análises feitas pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) em 21 das 1.049 caixas então abrigadas no Araçá. A investigação tinha o objetivo específico de localizar os remanescentes ósseos de Hiroaki Torigoe, desaparecido político enterrado em sepultura individual no Cemitério Dom Bosco cuja ossada jamais foi encontrada, apesar das recorrentes exumações na área em que, supostamente, seu corpo fora sepultado. A hipótese de que tenha sido transferido para a vala clandestina em 1976 faz com que o nome de Torigoe apareça em todas as listas de pessoas ali procuradas, desde 1990. Respondendo a uma demanda da Associação Brasileira de Anistiados Políticos, na época presidida por Alexandrina Cristensen de Souza (falecida no final de 2013), que a contratou, a equipe argentina se debruçou sobre as ossadas que tinham sido separadas na Unicamp como compatíveis com os dados antropométricos e o laudo necroscópico de Torigoe.

Em audiência na Assembleia Legislativa em abril de 2013, a antropóloga forense e coordenadora da EAAF, Patrícia Bernardi, resumiu a situação daquela seleção: dos 22 esqueletos, uma vez que em uma das caixas havia ossos de dois indivíduos, quatro foram descartados por serem do sexo feminino e outras catorze foram descartadas por serem de homens com mais de 35 anos. Torigoe tinha 27 anos quando desapareceu. Em resumo: faltara precisão na seleção feita pela equipe de Badan Palhares. Das quatro ossadas que sobraram, nenhuma era de Torigoe. Além de acender um sinal amarelo para os trabalhos feitos em Campinas nos anos 1990, o relatório preparado por Patrícia era explícito em denunciar as péssimas condições de guarda das ossadas, inclusive no columbário do Araçá. Estavam todas sujas e com fungos, necessitando não somente de guarda em condições adequadas, mas também de limpeza e triagem. Era como se os trabalhos precisassem ser começados do zero.

Outro estudo revelado pela Comissão Rubens Paiva foi uma prospecção geofísica realizada entre setembro e outubro de 2014 na área adjacente ao local da vala clandestina, no Cemitério Dom Bosco. Conduzida por pesquisadores do Laboratório de Arqueologia Regional do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, o trabalho combinou fotos aéreas feitas com o auxílio de um drone a medições realizadas no subsolo, a 35 centímetros de profundidade, com o uso de um radar de penetração de solo, também chamado de GPR (ground penetrating radar). Verificou-se, dessa maneira, a existência de três outros pontos que indicavam solo mexido ou escavado nos arredores do marco de memória em homenagem aos mortos e desaparecidos feito por Ricardo Ohtake. Um deles é o ossário, construído entre 1990 e 1991 e devidamente mapeado nas plantas oficiais do cemitério. As outras duas zonas têm origem e configuração desconhecidas e podem, eventualmente, significar a existência de outras valas clandestinas, conforme explicitado num dos capítulos do primeiro volume do relatório final da Comissão Rubens Paiva.

Como é hábito nos relatórios das comissões da verdade, a estadual listou suas recomendações, algumas delas referentes a Perus. “Criar todas as condições necessárias e adequadas para prosseguir, com a urgência que o tempo requer, os trabalhos de investigação das ossadas de Perus, priorizando os casos dos desaparecidos políticos por terem mais informações antropométricas e materiais genéticos disponíveis no momento”, recomendou, como forma de reparação e justiça de transição. Com o objetivo de evitar que a história se repita, o documento sugeriu “criar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas/plantas dos cemitérios, livros de registros dos sepultamentos e demais documentação)” e “criar mecanismos de enfrentamento, de prevenção e de erradicação da tortura, de assassinatos e desaparecimentos forçados por agentes públicos”.

Finalmente, a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016) dedicou dezessete das trinta e seis recomendações incluídas em seu relatório ao enfrentamento das violações que lhe pareceram centrais: a ocultação de cadáveres e o desaparecimento forçado.

A recomendação número 1 destinava-se especificamente à retomada das análises. “Concluir a identificação das ossadas de Perus mediante a continuidade do acordo de cooperação firmado entre Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Unifesp e Governo Federal para a criação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF)”. “É fundamental que a análise das ossadas seja concluída”, justificou o documento. “Trata-se de obrigação amparada em decisão da Justiça brasileira transitada em julgado em 2007, bem como em sentença proferida em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”.

Já a recomendação número 2 evidenciou a preocupação dos membros diante da hipótese de haver outras ossadas ainda ocultadas naquele local, conforme apontado no estudo do MAE-USP já mencionado. “Realizar novas escavações no Cemitério Dom Bosco, em Perus, para checar a possibilidade de haver mais ossadas de desaparecidos”, propôs o documento, responsabilizando a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e a Secretaria de Serviços por esta nova tarefa.

No dia da apresentação pública do relatório final, assinado por Tereza Lajolo (coordenadora), Audálio Dantas, Fermino Fechio, Adriano Diogo e Camilo Vannuchi, o então prefeito Fernando Haddad, numa iniciativa inédita, leu um pedido de desculpas pelas violações de direitos humanos cometidas pela Prefeitura de São Paulo durante os 21 anos de ditadura militar. O texto foi publicado no Diário Oficial no dia seguinte.

O que poucos imaginavam, em dezembro de 2016, é que a Presidência da República seria muito em breve ocupada por um controvertido capitão do Exército, apologista da ditadura e admirador do Ustra, que, em 2005, fixara na porta de seu gabinete um cartaz com a seguinte frase: “Desaparecidos do Araguaia: quem procura osso é cachorro”.

 

Leia no próximo capítulo: Um ataque de vândalos quase põe tudo a perder. Ainda dá para confiar numa universidade? Ossos de Perus desembarcam em Sarajevo. Mais dois desaparecidos identificados! Será que vão interromper os trabalhos outra vez?

Foto: Carlos Bassan

 

 

Amanhã ou depois, meu irmão
A gente retorna à beira do cais
E conta os amigos
Pra ver qual que brilha
E qual se apagou.

Gonzaguinha, em “Amanhã ou depois”

 

O fotógrafo do Diário do Povo agarrou a bolsa com a câmera, as lentes e os rolos de filme e saiu correndo. Era preciso liquidar a pauta e, sem demora, trazer os negativos de volta ao jornal. Em quinze anos de profissão, Carlos Bassan havia aprendido a não atrasar as entregas. Fotojornalismo tem dessas coisas. Imagem boa é imagem publicada, não adianta lapidar demais e perder a hora do fechamento.

Naquela tarde de abril de 1991, sua missão nada tinha de extraordinária. Apenas ir até o Departamento de Medicina Legal da Unicamp (DML) e fazer uma foto do chefe. Tirar um retrato, como se dizia, de um médico legista de nome sonoro, meio antiquado, como que recolhido de um romance policial: Fortunato Badan Palhares. Não era de fato um nome sofisticado? Parecia sob medida para batizar algum investigador ou delegado de polícia num conto de Rubem Fonseca. Inspetor Palhares, quem sabe. Ou Detetive Fortunato.

Badan Palhares ficara famoso cinco anos antes, quando coubera a ele analisar uma ossada exumada do cemitério de Embu, na Grande São Paulo. Não era uma ossada qualquer. Tratava-se do médico nazista Josef Mengele, lendário criminoso de guerra apelidado de “Anjo da Morte” que tinha sido um dos médicos responsáveis pelas câmeras de gás no campo de concentração de Auschwitz, nos anos 1940. Mengele era acusado de conduzir experimentos em humanos na Alemanha nazista, quase sempre com grande violência e perversidade. A instalação do Tribunal de Nuremberg para julgar os crimes de guerra cometidos por Hitler e seus asseclas, já no final de 1945, levou Mengele a se esconder numa fazenda na Baviera, no interior da Alemanha, e a fugir para a América Latina na virada da década de 1950. Chegou à Argentina no governo Perón, viveu no Paraguai sob a ditadura Stroessner, pelo menos entre 1958 e 1960, e se fixou no Brasil nos anos 1960. Aqui, os militares teriam ajudado a acobertá-lo.

Em entrevista ao jornalista Marcelo Godoy publicada apenas em 2013, no jornal O Estado de S. Paulo, o delegado José Paulo Bonchristiano, um dos chefes do Dops após o golpe de 1964, afirmaria que a polícia política sabia da presença de Mengele no Brasil e só não o prendeu porque “nunca pediram”, referindo-se à polícia alemã. Morto em Bertioga, no litoral paulista, em 1979, o criminoso de guerra foi sepultado em Embu como Wolfgang Gerhard, nome que constava em seus documentos brasileiros. Apenas em 1985, quando uma senhora de Sorocaba (SP) contou que teria abrigado Mengele durante alguns anos, na década anterior, e revelou o nome usado por ele, a Polícia Federal resolveu investigar.

Além de identificar as ossadas, o médico Palhares coordenara um trabalho ainda inédito no país: a reconstituição facial de Mengele. Em fevereiro de 1986, os jornais estamparam fotografias do provável rosto do Anjo da Morte, elaborado por um artista plástico a partir das características físicas apontadas pela perícia conduzida no DML a pedido do então delegado superintendente da Polícia Federal, Romeu Tuma. Mais recentemente, Badan Palhares havia atuado na investigação do assassinato de Chico Mendes, ambientalista e líder seringueiro do Acre, e no crime da Rua Cuba, como ficou conhecido o assassinato jamais solucionado do casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecília Delmanto Bouchabki numa mansão no Jardim América.

gora, o nome Badan Palhares estava novamente nos jornais. Desde setembro de 1990, quando um convênio entre Prefeitura de São Paulo, Governo do Estado e Unicamp garantira a transferência para Campinas das mais de mil ossadas retiradas da vala de Perus, na capital.

Bassan, o fotógrafo, entrou no carro do jornal, cruzou a Rodovia Dom Pedro I, passou por duas ou três rotatórias na entrada do campus e chegou em cerca de 20 minutos ao prédio da faculdade de medicina que abrigava o DML. Minutos depois, saiu do prédio desapontado. O chefe do departamento não estava lá. Não era daquela vez que ele conseguiria tirar o retrato do médico legista mais famoso do Brasil.

No caminho de volta ao carro do jornal, Bassan notou uma cena fora do comum. Havia algo muito esquisito no gramado em frente ao DML. Aquela paisagem não era somente esquisita, mas assustadora, surreal. Ao ar livre, a poucos metros do meio-fio, descansavam no chão, separados em esteiras e bacias, dezenas de pedaços de ossos. Um crânio, um fêmur, uma tíbia. Uma mandíbula inteira, outra pela metade.

Bassan nunca tinha visto algo parecido. Parecia ter entrado num plano-sequência de Indiana Jones e a Última Cruzada. Os ossos estavam ali tomando banho de sol, num canteiro do campus, numa tarde prosaica de quarta-feira. E sem ninguém por perto para tomar conta. Aos 31 anos, ele sabia exatamente do que se tratava. Era como se aquelas ossadas guardassem em si as marcas de um passado recente, autoritário e cruel, uma época obscura da história do país. Fez algumas fotos e voltou para o jornal.

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As ossadas de Perus tinham sido transferidas para a Unicamp em 1º de dezembro de 1990. Após a abertura da vala clandestina, em 4 de setembro, seguira-se um longo período de tratativas que culminara naquele convênio. A decisão solucionava o principal obstáculo colocado: familiares de mortos e desaparecidos políticos jamais aceitariam que as ossadas fossem periciadas no Instituto Médico Legal de São Paulo, órgão que havia sido cúmplice da política de desaparecimento e ocultação de cadáveres, por meio dos laudos falsos que produziram e assinaram.

A ida para a Unicamp foi recebida com entusiasmo pelas famílias. Primeiro, porque se tratava de uma instituição de ensino, e não de um departamento da polícia científica, o que em si já era motivo para alívio. Em segundo lugar, porque o médico Badan Palhares gozava de grande prestígio na comunidade científica e nos meios de comunicação.

Os trabalhos de retirada das ossadas, coordenados pelo médico legista Nelson Massini, se estenderam por mais de um mês. Apenas no dia 27 de outubro de 1990 foi feito o resgate do último saco. A catalogação dessas ossadas, no entanto, se estenderia até o último dia de novembro, ainda no cemitério.

Essa etapa do trabalho, chefiada pelo professor-assistente do DML José Eduardo Bueno Zappa, envolveu 25 técnicos da Unicamp. A cada saco retirado da vala era preciso fazer a limpeza do material, separar os ossos por tipo, acondicioná-los em sacos menores, fotografar o crânio e a face, e classificar cada ossada segundo características possíveis de serem determinadas ao primeiro olhar, como sexo, idade presumida, presença de dentes e ocorrência de fraturas ou perfurações a bala. Em seguida, a ossada era novamente inserida num saco e transportada até Campinas.

— Por enquanto, queremos apenas classificar o material da forma como foi encontrado, sem que haja mistura de peças — Eduardo Zappa explicou à reportagem do Diário Popular. — Há sacos em que existem até três crânios e outros sem nenhum, mas essa é uma questão para ser esclarecida durante a fase seguinte, de identificação, que deve demorar pelo menos um ano.

Três caminhões foram necessários para transportar as ossadas do cemitério à Unicamp. No dia do traslado, houve choro, protesto e comoção em Perus. Aos gritos de “tortura nunca mais” e “punição aos assassinos”, manifestantes atearam fogo a um boneco trajando uniforme verde-oliva, com quatro estrelas nos ombros, quepe e coturno, em clara referência aos generais do Exército que usurparam o poder no Brasil por 21 anos.

A prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, e o presidente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, presenciaram os protestos. De lá, as ossadas foram acompanhadas por uma carreata durante todo o trajeto até a Unicamp.

Já em Campinas, teve início o trabalho de análise propriamente dito. Cada ossada era fichada e ganhava uma descrição. Mulheres foram separadas dos homens, houve uma tabulação por idade presumida e segundo outros elementos levantados pela análise. Finalmente, era preciso comparar aquelas características com as dos desaparecidos reclamados pelos familiares. Tamanhos e idades funcionavam como critérios de eliminação. “Este fêmur é de um homem de 1,90 metro, então não pode pertencer a esse desaparecido, que tinha no máximo 1,75 metro”. Ou ainda: “Este aqui é de um homem de 50 anos, velho demais para ser o estudante universitário que vocês procuram”.

Agora, Badan Palhares coordenaria os trabalhos de sobreposição de imagens, a etapa principal do processo de identificação. Em 1990, extrair material genético de ossos com a finalidade de comparar com o DNA de parentes de primeiro grau das pessoas às quais os despojos supostamente pertenciam ainda não era uma possibilidade no Brasil. A genética forense fora inaugurada na Inglaterra dois anos antes. Em 1988, a polícia científica da cidade de Leicester conseguira finalmente solucionar dois crimes semelhantes de estupro seguido de morte ocorridos em 1983 e em 1986. Como? Comparando o DNA encontrado no sêmen recolhido nos corpos das duas adolescentes assassinadas com o DNA de uma amostra de sangue tirada de um suspeito. Quando as ossadas de Perus chegaram à Unicamp, o emprego do DNA como método de identificação ainda era algo restrito à Inglaterra e a outros raros centros de genética forense no mundo desenvolvido. E importar a tecnologia estava fora de cogitação.

Os técnicos de Campinas trabalhavam de outra maneira. Por meio de programas de computador elaborados especialmente para este fim, os peritos fotografavam o crânio dos esqueletos reunidos em laboratório e sobrepunham às imagens retratos feitos com as pessoas ainda vivas. Media-se tudo: a distância entre os olhos, o tamanho da testa, a posição dos ouvidos em relação ao queixo. Seis pontos de coincidência total entre crânio e fotografia eram considerados suficientes para confirmar a identificação. Especialistas da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, ligada à Unicamp, foram convocados para atuar junto aos médicos do DML. Se a pessoa tivesse feito algum molde dentário em vida, sobrepunham-se imagens desse molde a imagens da arcada dentária do esqueleto, também de modo a verificar se elas “encaixavam”.

Somavam-se à sobreposição de imagens outras pistas igualmente importantes: uma fratura antiga poderia deixar marcas ainda visíveis nos ossos, assim como uma má formação congênita. Se fulano usava dentadura, beltrano tinha uma prótese de ouro no lugar do segundo molar ou cicrano havia quebrado o nariz mergulhando na piscina do clube aos 12 anos de idade, todas essas eram informações preciosas para se criar um perfil apto a ser comparado com a memória daquelas ossadas.

Como as 1.049 ossadas retiradas da vala poderiam pertencer, em tese, a qualquer uma das 1.500 pessoas que, segundo os livros do Cemitério Dom Bosco, foram exumadas entre 1975 e 1976 sem nenhum registro do local de reinumação, só havia uma forma de dar início ao processo de identificação: comparar as características das ossadas às características pessoais dos desaparecidos cujas famílias procurassem a equipe do DML para requisitar a análise. A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos teve a precedência nesse processo. Rapidamente, seus membros reuniram informações sobre os militantes que, segundo os livros de registro, tinham dado entrada no cemitério na primeira metade dos anos 1970, e acionaram pais, mães, irmãos e irmãs em busca de fotografias e dados antropométricos de cada um. Quanto mediam? Quantos anos tinham quando desapareceram? Que ossos haviam fraturado na infância ou adolescência? Haviam extraído algum dente?

Enquanto isso, os membros da Comissão de Investigação da Prefeitura de São Paulo consultavam, pela primeira vez, os arquivos do IML. As informações obtidas nos laudos eram muito valiosas. Apesar da omissão em relação às torturas e às responsabilidades pelos assassinatos daqueles jovens, quase sempre os laudos listavam perfurações provocadas por armas de fogo e um ou outro hematoma. Para os peritos, essas indicações faziam enorme diferença. Se o laudo do IML atestava que determinado cadáver tivera o parietal esquerdo perfurado por um projétil, seria possível descartar os crânios que estivessem com o parietal intacto. Por extensão, investigar todos os crânios com o parietal esquerdo perfurado ou esmigalhado parecia ser um bom ponto de partida.

Além dos exames necroscópicos, o arquivo do IML, o mesmo muquifo em que o repórter Caco Barcellos descobrira os laudos com a letra T de “terrorista” enquanto investigava os crimes da Rota, guardava os horripilantes livros de fotografias. Conforme a legislação vigente, como ratificado por servidores do IML durante a CPI, todos os mortos sem identificação, indigentes ou não, tinham de ser fotografados pelos legistas. Registrados por meio de um número, ganhavam pastas e eram catalogados na burocracia interna para uma improvável identificação futura. Uma foto de frente, outra de perfil, eventualmente alguma outra imagem de outra parte do corpo, sobretudo que pudesse contribuir com sua identificação – uma tatuagem, um sinal de nascença – e pronto: estava montado o dossiê do desaparecido. Essas imagens não somente poderiam ajudar os peritos da Unicamp a confirmar características antropométricas ou o ponto exato em que determinada bala atingiu o corpo da vítima como, algumas vezes, poderiam configurar as únicas fotografias disponíveis para a identificação.

As pesquisas realizadas nos arquivos do IML e nos livros de entrada do Cemitério Dom Bosco, possibilitaram a descoberta do paradeiro de diversos militantes tidos como desaparecidos. Uma vez que os restos mortais de alguns deles não tinham sido exumados de suas sepulturas originais, foi solicitada sua exumação e encaminhamento à Unicamp, também para comprovar sua identidade. Casos como estes se repetiram entre 1990 e 1991. Confirmado o provável local de enterro, com base nos documentos oficiais, sobretudo do IML, eram feitas exumações e tudo seguia para a Unicamp.

***

— Bateu! Dr. Badan, a ossada 47 bateu!

O legista olhou para o assistente e permaneceu em silêncio. Se fosse mesmo verdade, aquela seria uma notícia maravilhosa, a primeira ossada identificada entre as 1.049 trazidas de Perus.

— É melhor o senhor vir conferir.

O chefe do departamento repassou item por item o dossiê da ossada 47.

— É, bateu! — o médico confirmou. — Seis pontos de concordância na sobreposição de imagens. A mesma altura presumida.

— O mesmo sangue tipo O do irmão e do sobrinho também. Fizemos a tipagem em material retirado da medula óssea de uma das vértebras. Só não deu pra verificar o Rh.

— Perfeito. E essa informação sobre o maxilar, confere?

— Sim. Ele era edentado. Completamente edentado na arcada superior.

Edentado é quem não tem dentes. Trabalhador rural de Votuporanga (SP), militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), preso no sul do Pará pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e torturado até a morte no Dops de São Paulo em 18 de abril de 1971, Dênis Casemiro não tinha nenhum dente na parte de cima.

O anúncio foi feito no centro de convenções da Unicamp no dia 8 de julho, uma segunda-feira, dez meses após a abertura da vala. Erundina e o secretário estadual de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, empossado no mês anterior junto com o novo governador Antônio Fleury Filho, estavam presentes. Na ocasião, foi anunciada também a identificação de Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana, militantes da ALN assassinados em 1973 e enterrados em sepulturas individuais na quadra 7 do Cemitério Dom Bosco. Por não estarem nas quadras 1 e 2, as ossadas de Sônia e Bicalho Lana não foram transferidas para a vala clandestina. Os pais de Sônia chegaram a exumar os despojos da filha e os sepultaram no Rio de Janeiro em 1981, mas depois descobriram que aqueles ossos eram de um homem. Agora, com os trabalhos de análise em andamento na Unicamp, solicitaram a exumação de outras ossadas nas sepulturas em que seus corpos teriam sido enterrados como indigentes. Em menos de um mês, os peritos da Unicamp confirmaram as identidades de Sônia e Bicalho Lana.

Uma missa de corpo presente foi celebrada na Catedral de São Paulo em homenagem aos três desaparecidos finalmente encontrados, um na vala e dois em sepulturas individuais. Em 11 de agosto de 1991, um domingo, os restos mortais de Dênis Casemiro, Sônia de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana foram finalmente velados, duas décadas após a morte do primeiro e 18 anos após a morte do casal. Era Dia dos Pais, e coube a João Luiz de Moraes, pai de Sônia – assassinada aos 27 anos após ter sido estuprada com um cassetete e ter os seios decepados pelos torturadores –, fazer um emocionante discurso sobre a violência dos anos de chumbo e o longo tempo de espera para sepultar sua filha. “Essas pessoas foram chamadas de subversivas por quem feriu a lei e a ordem constitucional”, disse o pai, tenente-coronel do Exército Brasileiro, agora na Reserva. “Por isso foram perseguidas, sequestradas e finalmente mortas. A sanha assassina dos militares que compuseram o sistema repressivo não encontra paralelo em nossa história”.

Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal de São Paulo, presidiu a cerimônia. As três urnas foram expostas no altar da Sé, cobertas com bandeiras do Brasil. “Tristeza por descobrir um Brasil tão covarde”, comentou o arcebispo na homilia. Não foi a primeira nem seria a última manifestação do cardeal contra a ditadura. Nem seu primeiro envolvimento com o tema da vala clandestina. Já no dia da descoberta das ossadas em Perus, Dom Paulo estivera no local e recomendara aos membros da Comissão Justiça e Paz que acompanhassem os trabalhos e oferecessem o apoio necessário. Em 2 de novembro, transferira a tradicional missa de Finados para o Cemitério Dom Bosco e, ao lado do bispo de Brasilândia, Dom Angélico Sândalo Bernardino, postou-se no topo do barranco vizinho à vala, de onde as ossadas ainda não tinham sido retiradas por completo. Moradores do bairro e familiares de mortos e desaparecidos puseram-se ao redor daquele improvável sítio arqueológico e rezaram ali, debaixo do sol. “Não matarás!”, dizia uma faixa.

Os ossos de Dênis Casemiro foram finalmente sepultados em Votuporanga no dia 13 de agosto de 1991, uma terça-feira. Na véspera, Ivan Seixas acompanhou o traslado das ossadas para o interior, representando a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. O caixão foi velado na Câmara Municipal durante a madrugada e, de manhã, transferido para a Matriz, onde foi celebrada missa de corpo presente. No altar, ao lado do caixão, novamente coberto com a bandeira do Brasil, um exemplar do livro Brasil: Nunca Mais, publicado seis anos antes, no qual o nome de Dênis fora incluído entre as vítimas fatais da ditadura mesmo sem que o corpo tivesse sido localizado. Aos 65 anos, seu irmão mais velho, Isaías, lembrou que outro irmão, Dimas, também fora morto pela repressão e continuava desaparecido. Para ele, o assassinato dos dois demonstrava o “arrocho” da ditadura militar, que, segundo ele “queria se perpetuar no poder e, para isso, não se importava em matar e acabar com uma família inteira”.

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Quase um ano se passou até que uma segunda ossada retirada da vala fosse identificada pela equipe de Badan Palhares. Em 25 de junho de 1992, uma quinta-feira, o centro de convenções da Unicamp recebeu novamente a prefeita de São Paulo e autoridades como o sub-secretário de Segurança Pública do Estado, Daniel Roberto Fink, e o secretário municipal de Assuntos Jurídicos da capital, Dalmo Dallari. Ali, acompanhado pelo reitor da Unicamp, Carlos Vogt, o médico legista Fortunato Badan Palhares anunciou a identificação dos restos mortais de Frederico Eduardo Mayr, também acompanhado das identificações de outras duas ossadas, não relacionadas à vala clandestina: Emanuel Bezerra dos Santos, militante do Partido Comunista Revolucionário, morto aos 26 anos e enterrado como indigente no cemitério Campo Grande, na zona sul de São Paulo, em 1973; e Helber José Gomes Goulart, militante da ALN, morto aos 29 anos e enterrado como indigente em Perus, também em 1973.

Estudante de arquitetura e militante do Movimento de Libertação Nacional (Molipo), o catarinense Frederico Mayr tinha 23 anos e estava na clandestinidade desde os 20 quando foi baleado na Avenida Paulista e torturado até a morte no DOI-Codi, em fevereiro de 1972. No livro do cemitério, o corpo deu entrada com o nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha, o que só se descobriu anos depois, quando o atestado de óbito emitido neste nome foi anexado ao processo de Mayr na 2ª Auditoria Militar. Após a abertura da vala clandestina e a divulgação de que as ossadas atribuídas a Eugênio Magalhães Sardinha estavam entre as mais de mil exumadas entre 1975 e 1976, a mãe de Mayr, Gertrud, viajou até São Paulo para entregar fotografias e preencher o formulário elaborado pela equipe de medicina legal: altura, peso, idade, cor da pele, alguma deficiência física, alguma fratura ou extração dentária.

Pouco mais de um ano depois, em junho de 1992, Gertrud pôde ver na tela de um computador da Unicamp a sobreposição do retrato que havia levado ao registro fotográfico de um crânio. Foi como se ela pudesse ver o filho novamente vivo na tela. Ele estava ali, diante dela, sorridente, com o mesmo bigode, os mesmos olhos claros, o mesmo cabelo loiro. As medidas coincidiam, todas elas. Só agora, vinte anos depois, Gertrud viveria o luto normal de uma mãe que perde o filho. Antes, segundo ela, era um sentimento íntimo e dolorido, mas que não se externava.

— Não que eu estivesse reprimindo, mas não conseguia sair — afirmou, em depoimento para o documentário Vala comum, de João Godoy, lançado em 1994. — Agora, é o normal. É o que acontece a qualquer pessoa, a qualquer mãe ou irmão quando perde alguém da família. Ver a pessoa, enterrar a pessoa, saber que a pessoa está morta. Eu comecei a viver isso só agora.

Foi um alívio. Finalmente, Gertrud, chamada de Tula pelos familiares e amigos, poderia velar o corpo do filho. Chorou por uma semana como se a perda fosse recente. Repetindo a experiência do ano anterior, o cardeal de São Paulo celebrou uma missa na Sé, as três urnas cobertas com bandeiras do Brasil. Os ossos de Frederico foram finalmente enterrados no jazigo da família, no Rio de Janeiro, para onde haviam se mudado quando Frederico era criança. Tula sentia-se grata por ter o filho identificado depois de tanta espera. Grata a quem descobriu a vala, grata a quem teve a coragem de revelá-la, e grata, sobretudo, aos peritos que haviam identificado os ossos.

Depois de Frederico, nenhum outro desaparecido da vala seria identificado pela equipe de Badan Palhares.

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O relatório que chegou às mãos do deputado estadual Renato Simões em meados dos anos 1990 era chocante. Sacos de ossos amontoados, uns sobre os outros, espalhados pelo chão. Alguns com cadeiras por cima. Ossadas úmidas, cobertas de fungo. Um cenário desolador, com sujeira e abandono, onde deveria haver ordem e asseio científico.

As funcionárias responsáveis pela limpeza do Departamento de Medicina Legal não se conformavam com tamanho descaso. No início reticentes, fugindo da sala das ossadas como quem vê fantasma, fazendo o sinal da cruz e resmungando qualquer coisa sobre virgens e santas, as moças acabaram se solidarizando com aquele ossário insólito e absolutamente informal. Perceberam que a sala inundava em dias de chuva e, quando isso ameaçava acontecer, corriam para retirar os sacos do chão e os colocar de forma improvisada sobre os móveis. Principalmente, rezavam. Ou oravam, conforme a fé de cada uma. Rezavam porque sabiam que aqueles mortos não estavam em paz.

— Esses ossos estão querendo voltar pra debaixo da terra — dizia uma.

— Isso é jeito de cuidar dos mortos? Que desrespeito! — indignava-se outra.

Àquela altura – e isso estava claro para as faxineiras – os peritos já não periciavam mais nada. E as autoridades, sempre dispostas a aparecer no jornal e a dar entrevista para a TV com promessas de concluir a análise dos ossos antes do fim do mandato, haviam simplesmente sumido. Desde 1993, nada de novo acontecia por ali.

— Sei não — comentava uma das funcionárias. — Se não tem ninguém pra olhar por essas almas, é bom a gente tomar conta delas.

O ano de 1993 fora terrível para as pesquisas no Departamento de Medicina Legal. Em março daquele ano, Luiza Erundina transmitira o cargo de prefeita para seu sucessor, Paulo Maluf. O novo prefeito representava tudo aquilo que os familiares de mortos e desaparecidos mais temiam: um político apoiado pelos generais, que fora prefeito e governador biônico, opositor de Tancredo Neves no colégio eleitoral, apologista da Rota e de seus métodos e, principalmente, o mesmo prefeito que, na primeira passagem pela Prefeitura, fora o responsável pela construção do Cemitério Dom Bosco. Um dos primeiros atos de Maluf ao reassumir a Prefeitura, em março de 1993, fora exonerar Toninho Eustáquio, o administrador que havia revelado a existência da vala clandestina.

Simultaneamente, a Secretaria Estadual de Segurança Pública entrara também num período confuso, caracterizado por suspeição e denúncias, desde que uma operação da Polícia Militar resultara na morte de mais de uma centena de presidiários, chacinados por agentes da PM na Casa de Detenção de São Paulo, no bairro do Carandiru, em outubro do ano anterior. Três dias após a chacina, o governador exonerou o secretário Pedro Franco de Campos, o mesmo que estivera no evento de divulgação das primeiras identificações, em 1991, e o substituiu por um professor de Direito e procurador do Estado que permaneceria à frente da pasta até o final do ano seguinte: Michel Temer.

Com Maluf na Prefeitura e Fleury no governo, obviamente desgastado pelo episódio do massacre, faltava vontade política para que as coisas andassem. Novos recursos não chegavam ao Departamento de Medicina Legal, e a verba já empenhada – bem menos do que havia sido prometido por Erundina e Quércia anos antes – havia secado.

Familiares de mortos e desaparecidos acusavam Badan Palhares de gastar o dinheiro do convênio na construção de um novo edifício para o departamento: um prédio com 1.200 metros quadrados, auditório para 120 pessoas, laboratório de DNA e o primeiro laboratório de fonética forense do Brasil, como o próprio médico legista descreveria, orgulhoso, no livro de memórias Por que converso com mortos, publicado em 2007.

Enquanto isso, as análises das ossadas eram negligenciadas. Não havia audiências com as famílias, nem boletins informativos, nem compartilhamento de informações, nem o anúncio de novas identificações. Aparentemente, as análises haviam sido interrompidas. E tudo o que Palhares fazia, quando procurado, era exibir o mesmo relatório mostrado seis meses antes – um ano antes, um ano e meio antes – e reclamar da falta de recursos.

Segundo o legista, não havia elementos comprobatórios suficientes para identificar mais ninguém. Ele não estava totalmente errado em relação a isso. Para emitir um laudo categórico, faltava uma comprovação genética, tecnologia de que a Unicamp não dispunha. Sua equipe havia separado as ossadas de Perus em quatro diferentes grupos conforme a presença de elementos comprobatórios. A ausência de dentes na arcada superior da boca de Dênis Casemiro, por exemplo, era uma característica muito especial que, associada a outros pontos de convergência, tornaria praticamente impossível que aquele crânio fosse de outra pessoa. Por isso sua ossada foi colocada no primeiro grupo e rapidamente identificada. A maioria das outras ossadas, no entanto, ofereciam um número menor de similaridades. Em muitos casos, o que se tinha eram ossos fragmentados, que tornavam ainda mais complexa a identificação por sobreposição de imagens.

Já em 1991, Badan Palhares havia separado as ossadas com maior possibilidade de serem alguns dos desaparecidos reclamados por familiares, como Flávio Molina e Dimas Casemiro. Suas fichas estavam catalogadas. A tecnologia de que dispunha, no entanto, não bastava para se ter um veredicto. A partir de 1993, o legista repetia isso a quem o procurasse, ao mesmo tempo em que reclamava diuturnamente da falta de dinheiro, tanto para adquirir equipamentos mais modernos quanto para remunerar as horas extras de sua equipe. Em outras palavras: não fazia sentido fingir que continuaria trabalhando nas ossadas. Os trabalhos dificilmente avançariam sem um equipamento que permitisse extrair DNA dos ossos, por exemplo.

Naquele momento, o Brasil já detinha tecnologia para extrair DNA de amostras de sangue e de mucosa, mas não de ossos. Sem perspectiva de sucesso nas condições de que dispunha, o chefe dos trabalhos partira intuitivamente para o tudo ou nada: ou obtinha recursos para introduzir a Unicamp na era da genética forense, ou o convênio poderia ser encerrado com apenas duas ossadas identificadas num universo de 1.049. Uma alternativa seria enviar amostras para Londres, o que também exigiria recursos elevados, e para isso havia a necessidade de mais dinheiro. O problema é que ele não combinou com os russos: nem com os familiares, nem com a reitoria. E, por descaso ou de forma deliberada, acabou incorrendo em ações que tumultuaram ainda mais a relação com familiares de desaparecidos e militantes dos direitos humanos.

Num dos episódios, conforme se descobriu em reunião entre representantes da Unicamp e familiares de mortos e desaparecidos realizada em outubro de 1995, Badan Palhares encaminhara fragmentos de ossos para a Universidade Federal de Minas Gerais, numa época em que pesquisadores desta universidade tentavam realizar extração de DNA de ossos humanos. Mas o fizera sem autorização de ninguém. Nem comunicara as famílias. Ou seja, o médico não hesitara em colher amostras daquelas ossadas, já tantas vezes maltratadas pelo tempo e pelas condições em que tinham sido ocultadas, e as enviara para outro Estado na surdina. Mais grave: alguns ossos teriam sido despachados para a Alemanha sem qualquer comunicação prévia, conforme admitira o próprio legista.

Em outro episódio, Palhares foi acusado de agir de má fé ao mudar uma declaração por razões políticas. Ainda em 1991, após participar da exumação de uma ossada em Xambioá, na região do Araguaia, que poderia pertencer à guerrilheira Maria Lúcia Petit, morta pela repressão em 1972, Palhares afirmara, no local, que as características batiam e que sua identidade seria confirmada tão logo o material chegasse à Unicamp. Na viagem de volta, no entanto, Palhares fez escala em Brasília, onde teria se encontrado com Romeu Tuma, o todo-poderoso da Polícia Federal, e mudara sua versão: aquela ossada não poderia ser da guerrilheira, declarou a um jornal. De acordo com o tecido de que era feita a calcinha, deveria se tratar de uma prostituta, vítima de crime passional no norte do Tocantins.

Cinco anos depois, em abril de 1996, o jornal O Globo publicou duas fotos de Maria Lúcia Petit morta, o rosto escondido num saco plástico e o corpo deitado sobre um paraquedas do Exército. O tecido do paraquedas parecia ser o mesmo encontrado junto à ossada exumada em Xambioá. Familiares foram cobrar explicações de Badan Palhares, que voltou a cogitar a possibilidade de ser Maria Lúcia.

— O problema é que não podemos cravar — ele disse. — Faltam elementos comprobatórios.

— Mas de que mais o senhor precisa?

— Um molde dos dentes, uma radiografia da boca, um dentista que tenha tratado dela quando viva, por exemplo.

Irmã de Maria Lúcia, Laura espumava de ódio. Por diversas vezes, ainda em 1991, ela havia insistido para que Badan Palhares recebesse o dentista. O legista havia desprezado sua sugestão, como se não tivesse serventia alguma, martelando a teoria de que a ossada era de uma prostituta. Agora, confrontado pela fotografia no jornal, Palhares mudara o discurso. Laura conseguiu levar até a Unicamp dois dentistas que haviam atendido a irmã e feito uma coroa num dente dela em 1967. Palhares não teve mais como negar.

— Agora podemos atestar que se trata de Maria Lúcia Petit — o médico afirmou.

***

Essas histórias corriam de boca em boca em grupos como o Tortura Nunca Mais, até que a imagem de Badan Palhares ruiu de forma irreversível. O mesmo médico que despertara sentimentos de gratidão nos familiares de Frederico Eduardo Mayr e Dênis Casemiro agora era tratado como impostor, mercenário, ou, na melhor das hipóteses, negligente.

Nesse contexto, as fotografias feitas na sala em que as ossadas eram armazenadas caíram como uma bomba nas reuniões da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

— Inaceitável! — diziam. — Esse crápula vai desaparecer com as ossadas. Elas vão se misturar, apodrecer, esfarelar, e nunca mais um dos nossos será identificado.

A angústia era especialmente maior entre os familiares dos desaparecidos cujas ossadas tinham maior chance de estarem na vala – uma vez que seus corpos tinham sido enterrados nas quadras 1 e 2 e exumados entre 1975 e 1976 sem indicação de local de reinumação – como Dimas Casemiro, Flávio Molina, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira. Estendia-se também a todos que tinham esperança de localizar seus mortos, inclusive as famílias de Marlene Rachid Papembrok e Olímpio de Carvalho, dois desaparecidos que não tinham nenhuma atividade política, mas que sumiram em São Paulo no início dos anos 1970. Tanto os filhos de Olímpio quanto uma irmã de Marlene requisitaram à equipe da Unicamp que incluíssem seus familiares na busca e enviaram a documentação necessária. Uns mais, outros menos, todos depositavam suas esperanças na perícia conduzida por Palhares e eram igualmente vítimas do evidente descaso e da aparente procrastinação.

Renato Simões presidia a recém-criada Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) quando as fotos chegaram até ele, ainda em 1996. Entregues por Maria Cristina Von Zuben, professora de ética médica na Faculdade de Medicina da Unicamp e ex-presa política, aquelas imagens acabaram deflagrando um processo irreversível de reivindicações junto à universidade. Pressionado, Badan Palhares decidiu que os trabalhos de análise e identificação estavam concluídos, uma vez que não havia por onde avançar, e sugeriu que as ossadas fossem devolvidas à Prefeitura de São Paulo.

— O prefeito é o Maluf — reagiram os familiares. — Imagina o que pode acontecer se essas ossadas passarem à responsabilidade do Maluf.

Estabelecido o impasse, o Secretário Estadual de Justiça, Belisário dos Santos Júnior, tratou de convocar uma reunião na própria Secretaria de Justiça. O Estado de São Paulo era agora governado por Mário Covas, sobre quem já não havia a mesma resistência que o governo Fleury provocara em sua etapa final. No âmbito federal, seu colega de partido, Fernando Henrique Cardoso, havia promulgado em dezembro do ano anterior a lei 9.140, que reconhecia como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período de 1961 a 1979. A mesma lei, fortemente influenciada pelos trabalhos realizados pelos familiares após a abertura da vala, também criara a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, responsável por analisar novos casos. Finalmente, contava pontos em favor de Belisário seu engajamento junto à Comissão Justiça e Paz de São Paulo, aliada na busca por identificações dos mortos e desaparecidos.

Em 30 de outubro de 1996, tanto o reitor quanto o procurador geral da Unicamp viajaram até São Paulo para buscar uma solução no gabinete de Belisário. Na reunião, ficou decidido que as ossadas continuariam na Unicamp, mas Badan Palhares seria necessariamente afastado da coordenação. A reitoria se comprometia a responder por escrito a todas as perguntas encaminhadas pelos familiares e a aceitar a presença de um perito internacional como observador dos trabalhos. A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, enviaria legistas de sua estrutura para acompanharem o processo.

Naquele mesmo dia, Badan Palhares foi substituído pelo médico legista José Eduardo Bueno Zappa, que já atuava como seu braço direito no DML e anos mais tarde se tornaria seu sócio numa clínica particular de patologia. A despeito da cumplicidade entre os dois, a relação do substituto com os familiares parecia preservada. As perguntas enviadas à reitoria só foram respondidas em março, mais de três meses depois. O perito enviado pela Secretaria Estadual de Segurança Pública, Carlos Delmonte, concluiu que a equipe de Badan Palhares não havia cometido nenhuma imprudência, descaso ou falta de zelo na condução dos trabalhos. E nenhum perito internacional foi à Unicamp nos meses seguintes.

No dia 14 de abril de 1997, Zappa enviou um relatório ao reitor da Unicamp acompanhado de um ofício em que resumia os trabalhos desenvolvidos em relação às ossadas do Cemitério Dom Bosco e reiterava a falta de perspectiva em relação a novas identificações. Foi a primeira vez que um relatório foi entregue aos familiares. “Das 1.047 ossadas restantes, duas estão em processo de identificação por exame de DNA na Universidade Federal de Minas Gerais”, escreveu o novo chefe do departamento, referindo-se a mais uma tentativa de identificação que não daria em nada. “Isto posto, magnífico reitor, damos por concluída a etapa dos trabalhos referentes a 1.045 das 1.049 ossadas da vala comum do Cemitério de Perus, presentemente sob a guarda do DML da Unicamp, todas devidamente catalogadas e numeradas, as quais, sob a ótica pericial da metodologia utilizada, estão a partir de hoje à disposição da justiça”.

Em fevereiro do ano seguinte, esgotadas as possibilidades de avançar com as análises em Campinas, iniciaram-se as tratativas para que as 1.047 ossadas restantes fossem transferidas para o Instituto Oscar Freire, vinculado à Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, o que só seria consumado em 2001.

O Departamento de Medicina Legal da Unicamp foi extinto em 1999, sem que nenhum outro desaparecido fosse identificado. Badan Palhares, ainda se envolveria em outros casos de grande visibilidade e repercussão, entre eles a produção, em 1996, de um controvertido laudo em que afirmava que Paulo Cesar Farias, tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, fora assassinado pela namorada Suzana Marcolino. Ela teria praticado suicídio em seguida. A versão, na época, foi amplamente contestada por outros peritos, que entendiam o crime como duplo homicídio. Queima de arquivo, diziam. PC Farias, pivô dos escândalos de corrupção culminaram com o impeachment de Collor em 1992, sabia demais. Palhares manteve-se no cargo de professor titular de medicina legal até 2003, quando se aposentou.

Antes que a primeira década do século XXI chegasse ao fim, as ossadas de um terceiro desaparecido político exumadas da vala clandestina seriam identificadas. E Badan Palhares viraria réu numa Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal, acusado de “descaso, negligência, desinteresse e desrespeito perante o inalienável direito das famílias de enterrar seus entes queridos”.

 

Leia no próximo capítulo: Um terceiro desaparecido é identificado. Badan Palhares, Paulo Maluf e Romeu Tuma são processados. O Estado brasileiro é condenado a retomar as análises das ossadas. O uso de valas clandestinas para ocultar vítimas da ditadura é denunciado pelas Comissões da Verdade.