Fotos: Reprodução

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar.

Chico Buarque e Miltinho, em “Angélica”

 

A abertura da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco completou trinta anos em 4 de setembro de 2020. Fosse outra a conjuntura, por certo haveria uma missa ou ato ecumênico junto ao memorial em homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura militar. A pandemia do novo coronavírus, que àquela altura havia contagiado 4 milhões e matado 125 mil pessoas no Brasil, impossibilitou a realização de qualquer celebração no local. As aglomerações estavam proibidas desde março, assim como as aulas presenciais, os shows e as peças de teatro.

Pelo mesmo motivo, não houve nenhuma apresentação especial da peça Comum, montada desde 2016 pelo grupo Pandora, formado ali mesmo, em Perus, e nenhuma edição da trilha Ditadura Nunca Mais, passeio pelo cemitério organizado pela agência Queixadas, sediada na comunidade cultural Quilombaque.

Passados trinta anos desde a revelação da vala, somente cinco desaparecidos foram identificados. Análises das outras 1.044 ossadas continuavam a ser feitas, agora no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. A expectativa era de que o nome de pelo menos mais um desaparecido fosse revelado no último trimestre do ano, assim que as atividades presenciais no laboratório fossem retomadas. Talvez ficasse para 2021. Seguindo os protocolos de segurança, as universidades públicas seguiam fechadas ou com atividades exclusivamente remotas no final de setembro.

Reuniões do Grupo de Trabalho Perus continuaram a acontecer, também remotamente, com a presença dos gestores, de familiares e de entidades de defesa dos direitos humanos. Naquele 4 de setembro, alguns familiares somavam três décadas de resistência. Outros, com o tempo, foram substituídos por um filho, uma sobrinha, de modo que a família continuava ali, engajada e esperançosa. Naomi, sobrinha de Hiroaki Torigoe; Hanya, filha de Hiran Pereira; Togo, filho de Thomaz Meirelles; Elisa Prestes Massena, neta de João Massena Melo; todos à espera de uma resposta nova para a velha pergunta: onde estão os desaparecidos?

Um total de quarenta indivíduos compunha a lista dos buscados em setembro de 2020:

Abílio Clemente Filho
Ana Rosa Kucinski Silva
Aylton Adalberto Mortati
Davi Capistrano da Costa
Edgar Aquino Duarte
Eduardo Collier Filho
Elson Costa
Fernando de Santa Cruz Oliveira
Francisco José de Oliveira
Grenaldo Jesus da Silva
Heleny Ferreira Telles Guariba
Hiram de Lima Pereira
Hiroaki Torigoe
Honestino Monteiro Guimarães
Ieda Santos Delgado
Isis Dias de Oliveira
Issami Nakamura Okano
Itair José Veloso
Jayme Amorim de Miranda
João Maria Ximenes
João Massena Melo
Joel Vasconcelos Santos
Jorge Leal Gonçalves Pereira
José Milton Barbosa
José Montenegro de Lima
José Padilha Aguilar
José Roman
Luís Ignácio Maranhão Filho
Luiz Almeida Araújo
Luiz Hirata
Marlene Rachid Papembrok
Olimpio de Carvalho
Orlando da Silva Rosa Bonfim Junior
Paulo César Botelho Massa
Paulo de Tarso Celestino Silva
Paulo Stuart Wright
Thomaz Antonio da Silva Meirelles Neto
Vitor Luís Papandreu
Walter de Souza Ribeiro
Wilson Silva

Uns com mais dedicação, outros com menos, irmãos, filhos e netos desses quarenta desaparecidos mantinham viva a busca por seus familiares. Para alguns, esses tios, pais e avós, desaparecidos há quase 50 anos, não eram mais do que nomes numa lista ou retratos na parede: pessoas que jamais puderam conhecer pessoalmente ou olhar nos olhos. Ainda assim, sentiam que era preciso continuar cobrando: uma explicação oficial para seu desaparecimento, a identificação de seus restos mortais, o direito de sepultá-los. Só então seria possível admitir que a busca havia chegado ao fim.

Até 4 de setembro de 2020, essa busca havia sido concluída, com êxito, para os familiares de apenas cinco pessoas dentre as mais de mil que tiveram seus restos mortais ocultados na vala: Dênis Casemiro, identificado em 1991; Frederico Eduardo Mayr, identificado em 1992; Flávio Carvalho Molina, identificado em 2005; Dimas Antônio Casemiro, identificado em 2018; e Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, também identificado em 2018.

 

Dênis Casemiro (1942-1971), identificado em 1991

Rapaz simples de Votuporanga, no interior de São Paulo, Dênis Casemiro trabalhava como lavrador e como pedreiro, intercalando os períodos de plantio e colheita com as atividades de reforma e construção civil. Começara a frequentar o Sindicato dos Lavradores de Votuporanga em 1963 e fora assíduo nas reuniões e plenárias até que o Sindicato foi fechado e a diretoria cassada após o golpe civil-militar de 1964.

Dênis era filho do lavrador e militante comunista Antônio Casemiro Sobrinho, que chegou a se candidatar a uma vaga na Câmara Municipal pelo PCB, e de Maria dos Anjos Casemiro. Um de seus irmãos, Dimas, quatro anos mais novo, atuava no movimento estudantil em Votuporanga.

Aos 24 anos, em 1967, Dênis mudou-se para a capital do Estado em busca de um trabalho com melhor remuneração. Foi morar com uma irmã em Arthur Alvim, na Zona Leste da cidade, onde continuou trabalhando como pedreiro. Em poucos meses, ainda em 1967, foi admitido como operador de máquinas na fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, e se fixou na cidade. No final daquele ano, conheceu o torneiro mecânico Devanir José de Carvalho e foi apresentado por ele à Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB que havia optado pela luta armada.

As primeiras ações seriam realizadas no começo de 1968 e Dênis estaria nelas. Numa das ocasiões, participara de um assalto a uma agência do Bradesco localizada na Rua Turiassu, em Perdizes, com a função de, com o auxílio de uma arma, fechar o trânsito no quarteirão do banco. Em outra ocasião, repetiu a mesma função num assalto a uma agência da Light, também em São Paulo, conforme depoimento prestado ao Dops.

Dênis apresentou seu irmão Dimas a Devanir e os três militaram juntos na Ala Vermelha por alguns meses, até tomarem caminhos distintos. Ainda em 1969, Devanir envolveu-se na organização do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) junto com Dimas, enquanto Dênis, agora membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), mudou-se para a região do Bico do Papagaio, na divisa entre Pará, Tocantins e Maranhão, e passou a trabalhar num sítio nos arredores de Imperatriz (MA), com a missão de organizar um foco guerrilheiro.

Acredita-se que Dênis, já na clandestinidade, tenha sido capturado e preso naquela região em abril de 1971 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Conduzido ao Dops de São Paulo, foi submetido a interrogatórios e torturas por cerca de um mês.

O também preso político Waldemar Andreus contou em depoimento ter reconhecido Dênis na carceragem do Dops. Também natural de Votuporanga, Waldemar foi surpreendido quando um dos carcereiros retirou o capuz que cobria o rosto de Dênis.

— Êi, eu não te conheço?

Dênis demorou alguns instantes antes de responder.

— Não te conheço – disse, sorrindo.

Na ocasião, o lavrador, pedreiro e operário pensou ter escapado da morte. Chegou a sentir alívio. A retirada do capuz funcionava como uma espécie de oficialização da prisão. Agora, outros presos eram testemunhas de que ele estava ali, naquela cela, sob a tutela do Estado. Certamente, as sessões de torturas acabariam e sua vida seria poupada.

O equívoco não poderia ter sido maior. Dênis foi fuzilado em 18 de maio de 1971.

Para os agentes do Dops, havia chegado a hora de criar uma outra versão para aquela execução, que transformasse a vítima em culpada pela própria morte, como é de praxe ainda hoje nos assassinatos cometidos pela Polícia Militar. Além disso, era preciso sumir com o corpo. E, se possível, contabilizar mais alguns pontos na guerra ideológica, desonrando a imagem do militante. Como? Atribuindo a ele a pecha de delator.

Um relatório foi produzido em 19 de maio daquele ano, redigido e assinado por Fleury. Segundo o delegado, o preso tentara fugir enquanto era transportado do Rio de Janeiro para São Paulo. Perto da entrada para Taubaté (SP), Dênis teria revelado aos agentes que a VPR mantinha um centro de treinamento em Ubatuba, no litoral, e estaria disposto a indicar o caminho. A Veraneio teria seguido pela Rodovia Tamoios, rumo a Ubatuba. “Ao iniciarem a descida da serra, o preso alegou que necessitava com urgência realizar necessidades fisiológicas”, escreveu Fleury no relatório. “Dada a insistência do preso, dei ordem para a viatura estacionar e o mesmo descer à estrada”.

O relato não é preciso em relação ao local nem ao horário.

“Eis que então, em movimento brusco e completamente inesperado, (Dênis) conseguiu apoderar-se da arma do policial que se encontrava próximo. O outro policial, diante do ocorrido, fez um disparo contra o preso, que, deixando a arma cair, mergulhou em um matagal”, prossegue Fleury. Até aqui, a farsa produzida pelos agentes do Dops listava três ações altamente improváveis: a revelação de que haveria um esconderijo da VPR em Ubatuba, a habilidade para sacar um revólver de um policial com as calças arriadas, e a imprudência de deixar a arma cair durante a retirada.

O relato continuava: “Imediatamente perdemos de vista o preso e iniciamos intensiva busca no local, onde foram feitos vários disparos. Porém a busca revelou-se infrutífera e então nos dirigimos à cidade de Ubatuba, que era a localidade mais próxima do local da ocorrência. (…) Pela manhã, por volta de dez horas, este Departamento foi cientificado pela Autoridade de Ubatuba, de que o fugitivo havia sido internado na Santa Casa Local.” Na sequência, ainda de acordo com o insólito relato do delegado Fleury, a equipe chefiada por ele teria seguido em direção à Santa Casa e, no caminho, cruzado acidentalmente com outra viatura, conduzida pelo delegado de polícia de Ubatuba, que trazia o fugitivo com o objetivo de entregá-lo aos agentes do Dops para que fosse levado a outro hospital, em São Paulo, onde poderia ser melhor atendido.

Reacomodado na Veraneio do Dops, Dênis teria sido transportado ao Hospital das Clínicas de São Paulo. Infelizmente, veio a falecer a caminho do hospital.

Recolhido ao IML, seu corpo foi periciado pelos legistas Renato Cappelano e Paulo Augusto de Queiroz Rocha, cúmplices na farsa. Em vez de acusar a morte como decorrente das torturas sofridas nas dependências do Dops, os médicos subscreveram a versão de Fleury e indicaram somente as trajetórias das balas que o atingiram. Nenhuma referência às perfurações que sofrera no pulmão e no fígado, nem às marcas visíveis de tortura em seu rosto. Também nenhuma análise sobre os tiros que o atingiram nas palmas das mãos, evento que, em geral, indica rendição ou eliminação sumária, com a vítima cercada e desarmada. A causa da morte: hemorragia interna traumática.

O corpo de Dênis foi encaminhado para o Cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foi enterrado no dia 19 de maio, na sepultura 82 da rua 14, conforme anotação feita no livro de registros da necrópole. “De cor branca, sexo masculino, com 40 anos presumíveis e todos os demais dados ignorados”, dizia a nota. Aqui, outras duas farsas chamam atenção. Os dados pessoais de Dênis constavam nos relatórios do Dops e no laudo do IML. Enterrá-lo como se esses dados fossem ignorados foi, também, uma forma deliberada de dificultar sua localização. A mesma intenção é observada na opção por atribuir a ele 40 anos de idade. Dênis tinha 28 anos quando foi morto e as equipes do Dops e do IML tinham essa informação. Nenhuma comunicação oficial da morte foi feita pelas autoridades.

A farsa começou a ser desmontada em 1979. Em 22 de agosto, dia da votação do projeto de lei da anistia, Suzana Lisbôa, Iara Xavier e outros familiares de desaparecidos políticos foram a Brasília e denunciaram no Congresso Nacional que o corpo de Dênis Casemiro estava enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus. Ele não era desaparecido coisa nenhuma. Estava morto. E as autoridades sabiam disso, uma vez que seu nome estava no livro de registros do cemitério. A anotação fazia referência ao laudo do IML e citava o nome do médico responsável: Renato Cappelano. Se havia registro no cemitério, administrado pela Prefeitura, e também no IML, vinculado ao governo do Estado, como até agora nenhuma autoridade o declarara morto?

Ao lado do registro feito em seu nome no livro do cemitério, em 19 de maio de 1971, havia ainda uma anotação mais recente, feita com caneta azul: “exumado em 17/11/75”. Nenhuma indicação do local de reinumação. Seu destino tinha sido a vala clandestina.

Os restos mortais de Dênis Casemiro foram os primeiros a serem identificados após a revelação da vala, em setembro de 1990. Badan Palhares, chefe do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, anunciou sua localização no dia 8 de julho de 1991. Era de Dênis a ossada número 47, uma das 1.049 analisadas pela equipe de Palhares.

Em 11 de agosto de 1991, uma urna com seus remanescentes ósseos foi velada na Sé, juntamente com as urnas dos também desaparecidos políticos, agora identificados, Sônia de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana, em cerimônia presidida pelo cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.

No dia seguinte, a urna viajou de avião para São José do Rio Preto e, de lá, seguiu até Votuporanga, aonde chegou à noite. Velados na Câmara Municipal durante a madrugada, seus ossos foram transferidos para a igreja Matriz, onde foi celebrada missa de corpo presente pela manhã. No altar, ao lado do caixão coberto com a bandeira do Brasil, foi colocado um exemplar do livro Brasil: Nunca Mais, de 1985, primeira publicação a elencar nomes de torturadores, métodos de tortura e uma primeira lista de mortos e desaparecidos políticos. Dênis era um desses nomes.

 

Frederico Eduardo Mayr (1948-1972), identificado em 1992

Frederico gostava de praia. Não era raro sair da aula no Colégio Mallet Soares, então na Rua Xavier da Silveira, perto do Corte do Cantagalo, e correr para dar um mergulho ou encontrar os amigos na orla de Copacabana. Cursando o ginasial e, em seguida, o científico, Frederico praticava pesca submarina e era escoteiro. Dos 7 aos 16, foi membro da Tropa Baden Powell de escotismo, com a qual fazia expedições ao Morro Dois Irmãos e à Floresta da Tijuca. Em casa, desenhava e pintava.

Nascido em Timbó, cidade vizinha de Blumenau, no interior de Santa Catarina, Frederico vivia no Rio desde criança, junto com os pais, Carlos Henrique Mayr e Gertrud Mayr. O gosto pelas artes plásticas contribuiu para que Frederico escolhesse a arquitetura como profissão quando chegou a hora de prestar vestibular.

Frederico tinha 18 anos quando foi admitido na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estava no primeiro semestre do curso quando o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto foi alvejado e morto por um policial militar durante um protesto pacífico no restaurante Calabouço, tradicional ponto de encontro de estudantes no centro do Rio, onde o bandejão era subsidiado e mantido pela União Metropolitana dos Estudantes.

O episódio serviu de fagulha para radicalizar o movimento estudantil naquele tumultuado ano de 1968. Não demorou para Frederico se aproximar do movimento. No ano seguinte, foi incorporado à Ação Libertadora Nacional. Uma das primeiras ações armadas de que participou, ainda em 1969, rendeu a ele uma ação na justiça militar. À revelia, ou seja, sem que ele fosse ouvido ou constituísse advogado de defesa, Frederico foi condenado a três anos em regime fechado. Foragido, partiu para Cuba, onde fez treinamento de guerrilha e viveu por quase dois anos, voltando ao Brasil somente no final de 1971, agora em outra organização, uma dissidência da ALN intitulada Movimento de Libertação Popular (Molipo).

Frederico foi baleado em São Paulo, na Avenida Paulista, no dia 23 de fevereiro de 1972, e levado para o DOI-Codi. Seu martírio foi descrito no documento “Aos bispos do Brasil”, elaborado em fevereiro de 1973 pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil e encaminhado à CNBB por ocasião da XIII Assembleia Geral dos Bispos do Brasil. No total, a carta descrevia as execuções, sob tortura, de vinte e oito presos políticos, como Virgílio Gomes da Silva, Chael Charles Schreier, Joaquim Alencar de Seixas e Eduardo Leite, conhecido como Bacuri. Frederico era um deles.

“Foi levado para o DOI/SP, à Rua Tutóia, 721, onde foi intensamente torturado durante todo o dia e toda a noite, submetido a choques elétricos, ‘cadeira do dragão’, ‘pau-de-arara’ e violentos espancamentos, apesar de ferido no abdome”, descrevia o documento, referindo-se ao ferimento provocado pelo tiro que o atingiu no momento da captura. “Durante o período em que estava sendo torturado, foi visto várias vezes. Numa delas, aplicaram-lhe um banho frio no Xadrez 1 do DOI para que se reanimasse. Foi visto, ainda, sentado num banco existente na entrada do prédio onde se localizam as câmaras de tortura, todo ensanguentado e cheio de hematomas, chegando a conversar rapidamente com um preso político.”

A carta endereçada aos bispos listava as pessoas que teriam sido responsáveis por sua morte: o escrivão Gaeta, o policial federal Aderbal Monteiro, um capitão do Exército conhecido por Átila, um policial conhecido por Zé Bonitinho ou Oberdã, um investigador loiro de quem não foi possível obter a identidade. “Todos assistidos diretamente pelo major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra”, acrescentava o documento, “que chegou a propor a Frederico a concessão de sua vida em troca de informações”.

Frederico Mayr foi morto no DOI-Codi de São Paulo, sob tortura, na manhã seguinte à prisão. Sua morte, aos 23 anos, foi consumada com três disparos desferidos contra o peito. Na ocasião, foi deliberada a estratégia de desaparecimento: a partir daquele momento, Frederico passaria a se chamar Eugênio Magalhães Sardinha. Foi esse o nome utilizado na ficha de requisição do exame necroscópico encaminhada pelo Dops ao IML. Curiosamente, no topo da folha fora acrescido o verdadeiro nome, em caixa alta: Frederico Eduardo Mayr.

O laudo, assinado pelos médicos legistas Isaac Abramovitc e Walter Sayeg, descreve sucintamente três perfurações por projétil na região do tórax, duas delas com trajetória descendente, ou seja, os disparos foram feitos de cima para baixo. Eugênio, ou melhor, Frederico teve os dois pulmões perfurados pelas balas. Nenhuma palavra é dita sobre as torturas que desfiguraram o rosto da vítima, como revelam as fotografias produzidas durante o exame e arquivadas no IML. A certidão de óbito foi emitida em nome de Eugênio Magalhães Sardinha no próprio dia 24 de fevereiro. Foi também com o nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha que o corpo de Frederico foi enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus.

Todo o tempo, as autoridades conheciam o nome verdadeiro de Frederico. Ao dar entrada no DOI-Codi, agentes do Dops trataram de elaborar a ficha individual do preso, com o nome verdadeiro e os tradicionais retratos de frente e de perfil, acrescidos de uma plaquinha com o número 1112. A mesma ficha informava corretamente que ele fora preso na véspera, na Avenida Paulista.

Foram divulgadas três versões diferentes e contraditórias para sua morte. Em uma delas, Frederico morrera no dia 23 de fevereiro, a caminho do hospital, depois de ter sido ferido num tiroteio na Avenida Paulista. Em outra, no dia 24, fugindo de um “ponto”, como eram conhecidos os encontros marcados com outros militantes da mesma organização, no Jardim da Glória, bairro vizinho à Vila Mariana.

Finalmente, foi divulgada a versão de que ele teria sido morto num improvável tiroteio com a polícia enquanto ocupava um Fusca ao lado de outros guerrilheiros. Segundo essa versão, os guerrilheiros teriam começado a atirar contra a viatura sem terem sido provocados. Os policiais revidaram e Frederico foi atingido. Ponto. Nenhuma informação sobre os outros ocupantes do carro, se teriam sido presos, abatidos ou se estavam foragidos. Nenhuma explicação de como alguém dentro de um carro pode ser alvejado três vezes no peito, e em trajetória descendente.

Ao detalhar a versão oficial no livro A ditadura escancarada, Elio Gaspari chama o caso de “patético”, “tamanha a onipotência na manipulação da realidade”.

Os restos mortais de Frederico Mayr foram identificados pela equipe chefiada por Badan Palhares, na Unicamp, em junho de 1992. Repetindo o que fizera no ano anterior por ocasião da identificação de Dênis Casemiro, o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, celebrou uma missa na Sé em memória de três desaparecidos recém-identificados por Palhares: Frederico Eduardo Mayr, Emanuel Bezerra dos Santos e Helber José Gomes Goulart. Seus restos mortais puderam ser finalmente trasladados para o Rio de Janeiro e sepultados no jazigo da família em 13 de julho de 1992.

 

Flávio Carvalho Molina (1947-1971), identificado em 2005

Flávio Carvalho Molina tinha 21 anos quando rabiscou os seguintes versos: “Posso não estar presente / Mas por mais que me ausente / Sempre estarei aqui”. De fato, sua ausência foi muito presente ao longo de trinta e quatro anos de busca e indignação.

Quando escreveu o poema Minha presença, Flávio estudava Química na Ilha do Fundão, o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) localizado perto do Aeroporto do Galeão, na Zona Norte do Rio, à beira da Baía de Guanabara.

Flávio era o terceiro numa família de cinco irmãos, filho de Álvaro Andrade Lopes Molina e Maria Helena Carvalho Molina. Carioca, cursara o Ensino Fundamental no tradicional Colégio São Bento e o Ensino Médio na mesma escola do também desaparecido Frederico Mayr: o Colégio Mallet Soares, em Copacabana. Entrou na faculdade em 1968, o ano das grandes rebeliões de estudantes, e foi logo preso pela primeira vez, por participar de uma manifestação estudantil. Fichado, foi liberado no dia seguinte.

Em 1969, membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), trancou a matrícula na faculdade e entrou para a clandestinidade. Procurado, Flávio conseguiu cruzar a fronteira com o Uruguai e partiu para Cuba, onde ficou exilado por quase dois anos, de novembro de 1969 a meados de 1971. Voltou ao Brasil como militante do Molipo, dissidência da ALN.

Flávio foi preso entre os dias 4 e 6 de novembro de 1971, conforme os relatos nem sempre coincidentes das testemunhas. Morreu no dia 7, no DOI-Codi. O exame necroscópico foi realizado pelo IML no mesmo dia 7 de novembro de 1971, pelos médicos-legistas Renato Capellano e José Henrique da Fonseca. Em vez de constar o nome verdadeiro, a certidão de óbito foi emitida em nome de Álvaro Lopes Peralta, codinome adotado por Flávio na clandestinidade. Álvaro Lopes, como o pai, e Peralta, forma pela qual seu padrinho costumava lhe chamar.

“O laudo atesta dois ferimentos pérfuro-contusos, causados por projéteis de arma de fogo na região do tórax, e conclui que a morte foi ocasionada por ‘anemia aguda consecutiva a hemorragia interna traumática’”, diz o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. “Sua certidão de óbito informa que a morte teria ocorrido nas esquinas das ruas Padre Marchetti e Xavier de Almeida, no bairro do Ipiranga, em São Paulo”.

A morte de Flávio Molina permaneceu em sigilo até o dia 29 de agosto de 1972, quando o jornal O Globo a noticiou como consequência de confronto com policiais, sem mais detalhes. Começou ali o périplo dos familiares em busca de informações sobre o paradeiro do rapaz.

Somente em 1978 surgiu uma evidência definitiva: um ofício, assinado por Romeu Tuma, em que o delegado do Dops remetia ao juiz auditor Carlos Augusto Cardoso de Moraes Rego o atestado de óbito de Álvaro Lopes Peralta anexado às fichas de Flávio no Dops. O episódio fez lembrar aquele axioma segundo o qual toda mentira tem perna curta. Ocorre que Álvaro Lopes Peralta estava sendo julgado, à revelia e com esse nome, na auditoria da Marinha, no Rio, por praticar atividades subversivas. O juiz auditor, então, protocolou um ofício pedindo ao Dops tudo o que dissesse respeito ao réu. “Em atendimento aos termos do ofício 1243/78 datado de 12 de julho último, dessa digna auditoria”, respondeu Romeu Tuma, então chefe do Dops, “encaminhamos a Vossa Excelência informações prestadas pela Divisão de Ordem Social desse departamento, bem como certidão de óbito expedida em nome de Álvaro Lopes Peralta, nome falso de Flávio Carvalho Molina”. Estava decifrada a identidade falsa. E também a opção deliberada por ocultá-lo.

O documento escrito por Tuma confirmou a suspeita de que as autoridades sempre souberam que Álvaro Lopes Peralta e Flávio Carvalho Molina eram a mesma pessoa. Se sabiam, por que não divulgaram a morte no dia seguinte nos jornais, como era praxe, e usando o nome verdadeiro? Por que não avisaram sua família? E por que escolheram enterrar com o nome de guerra? Para dificultar sua localização, era evidente.

Normalmente, somente as pessoas que militavam na mesma organização política conheciam os codinomes dos militantes. E essas pessoas, também na clandestinidade, estariam impossibilitadas por motivos óbvios de denunciar um desaparecimento na delegacia ou reclamar um corpo no IML. Por outro lado, apenas em situações excepcionais os familiares conheciam os codinomes, uma medida de segurança adotada nas organizações para não colocar ninguém em risco. Enterrar Flávio com o nome falso era uma forma de evitar que ele fosse encontrado pela família. Outra tática era fazer com que o corpo desaparecesse: a exumação seguida de reinumação numa vala que não constava em nenhum mapa ou documento oficial.

Em 1981, em visita ao Cemitério Dom Bosco, Gilberto Molina, seu irmão quatro anos mais velho, ficou sabendo da existência da vala clandestina. Toninho Eustáquio, o administrador, afirmou que a ossada de Flávio deveria estar ali, misturada com centenas de outras ossadas. Somente em 1990, quando a vala foi revelada, sua família pôde sonhar com a identificação: um sonho longo, sujeito a percalços diversos.

Foi preciso esperar mais quinze anos até que os restos mortais de Flávio Carvalho Molina fossem identificados, por meio de estudo de compatibilidade genética, em um laboratório particular de São Paulo, o Genomic. Até então, tinham sido malsucedidas todas as tentativas, primeiramente na Unicamp e em seguida na USP. Também resultaram inconclusivos os testes feitos com material genético da família em outros laboratórios, inclusive fora do país.

Em 10 de outubro de 2005, uma urna com os remanescentes ósseos de Flávio Molina foi entregue a Gilberto na sede da Procuradoria da República em São Paulo, então na Rua Peixoto Gomide com a Avenida Paulista. No dia seguinte, a urna foi enterrada no Cemitério São João Batista, no Rio, em cerimônia com a família. A mãe de Flávio, Maria Helena Molina, havia perdido a visão. Coube ao filho Gilberto narrar em seus ouvidos cada etapa da despedida.

 

Dimas Antônio Casemiro (1946-1971), identificado em 2018

Quatro anos mais novo que Dênis Casemiro, Dimas teve seus remanescentes ósseos identificados em 2018, vinte e sete anos após a identificação dos restos mortais de seu irmão.

Nascido em Votuporanga (SP), filho de Antônio Casemiro Sobrinho e Maria dos Anjos Casemiro, Dimas completou 18 anos três semanas antes do golpe de 1964. Atuou no movimento estudantil em sua cidade e se aproximou do socialismo por influência do pai, que militava no PCB. Em Votuporanga, trabalhou como corretor de seguros e como tipógrafo.

Em 1969, Dimas se mudou para a capital junto com a esposa, Maria Helena Zanini, e o filho de 2 anos, Fabiano. Em São Paulo, não demorou a ser recrutado para a Ala Vermelha, organização em que já militava seu irmão.

Ainda em 1969, a Ala Vermelha começou a se desmantelar. Muitos de seus membros migraram para outras organizações ou criaram dissidências. Dênis foi para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e se mandou para a região Norte do país, incumbido de formar um foco guerrilheiro. Dimas e o amigo Devanir Carvalho, metalúrgico do ABC que tinha sido apresentado a ele por Dênis, estavam entre os trabalhadores que organizaram o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).

No MRT, Devanir virou “Henrique” e Dimas virou “Rei”. A razão é prosaica. Ao manusear os panfletos da organização com a destreza de quem tinha sido tipógrafo e mantivera uma gráfica antes de entrar na clandestinidade, Dimas deixou “Henrique” boquiaberto. “Esse cara é o rei do papel”, comentara o amigo. Pronto, virou apelido.

Do núcleo paulistano do MRT faziam parte, entre outros, o mecânico Joaquim Alencar de Seixas e seu filho Ivan, então com 15 anos. Já em março de 1970, o MRT se associou à VPR para uma ação ousada que fora decidida às pressas: sequestrar o cônsul do Japão, Nobuo Okushi, e exigir a libertação de Shizuo Ozawa, o “Mario Japa”, um militante da VPR que estava sendo muito torturado para que delatasse a localização do centro de treinamento comandado por Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. Como resgate, foi exigida a libertação do Mario Japa e de outros quatro presos políticos.

“Henrique”, do MRT, participou do sequestro ao lado de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, da VPR, entre outros militantes. A ação foi bem-sucedida e os cinco companheiros foram libertados, inclusive o “Mario Japa”, que motivara o sequestro.

Nos meses seguintes, no entanto, seria cobrada a fatura: os sequestradores se tornaram os principais alvos dos agentes do Dops, a ponto de oito deles terem sido presos e cinco executados, entre eles “Bacuri” e “Henrique”.

“Henrique” foi preso no dia 5 de abril de 1971 e torturado até a morte, no dia 7. A réplica dos guerrilheiros veio dez dias depois em forma de radicalização. Em 15 de abril, com o apoio de militantes da ALN, dirigentes do MRT executaram Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz e diretor da Fiesp, notório financiador da Operação Bandeirantes (Oban), precursora do DOI-Codi, e entusiasta das sessões de tortura que costumava acompanhar pessoalmente no número 921 da Rua Tutóia. Aquele seria o começo da queda de Dimas.

A repressão deflagrou uma operação de guerra com a missão de assassinar o maior número possível de militantes do MRT e da ALN como retaliação pela morte de seu grande financiador. Nos dias 16 e 17 de abril, foram presos e assassinados Joaquim Alencar de Seixas e Dimas Casemiro, ambos acusados de matar Boilesen. Suas famílias foram igualmente presas. As esposas e os filhos foram levados para o DOI-Codi: Pedrina, mulher de Devanir, Maria Helena, mulher de Dimas, e Fanny, mulher de Joaquim, bem como as duas filhas de Joaquim, os dois filhos de Devanir e o filho único de Dimas. As crianças foram liberadas em seguida e puderam se hospedar na casa de parentes. Ieda e Iara Seixas, já maiores de idade, continuaram presas, assim como Ivan.

Na manhã seguinte, dia 17, as duas foram obrigadas a entrar numa Veraneio e foram levadas para o bairro da Saúde. Os agentes exigiam que elas indicassem o endereço de Dimas. Elas se recusavam a revelar. Afirmavam que tinham entrado de olhos vendados na casa do “Rei” e que tudo o que sabiam é que deveria ser perto do Bosque da Saúde, local em que haviam trocado de carro e coberto os olhos para a última etapa do percurso. Mais tarde, Ieda entenderia que era tudo parte de uma grande armação. Gilberto Faria Lima, um agente duplo de codinome Zorro, infiltrado no MRT, já havia revelado o endereço aos torturadores.

Ieda contou em depoimento à Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, em 2013, que permaneceu no carro, detida, enquanto os agentes cercaram a casa. Dimas saiu pela porta correndo e atirava com um revólver contra seus algozes enquanto corria. Os agentes revidaram com tiros de fuzil. Acertaram o alvo pelas costas. Uma, duas, três, quatro vezes. Na fuga, Dimas tropeçou e caiu de cara num monte de cascalho, o rosto agora arrebentado por conta do impacto, as costas ensopadas de sangue.

Segundo o documento para requisição de exame de necropsia, Dimas morreu durante uma troca de tiros com agentes da repressão no dia 17 de abril, na via pública, no bairro da Água Funda, exatamente conforme o testemunho de Ieda. Sua morte foi divulgada nos jornais no dia 18 e, no dia 19, foi produzido o laudo do exame necroscópico, assinado pelo médico-legista João Pagenotto. O documento registrou quatro ferimentos causados por arma de fogo, no pescoço, braço, mão e coxa. Segundo o mesmo laudo, o corpo de Dimas teria sido sepultado no cemitério de Perus às 10 horas do dia 20.

O enterro de Dimas foi anotado no livro de registros do Cemitério Dom Bosco. Seu corpo foi inumado na sepultura número 35 da rua 12 no dia 20 de abril de 1971. Uma outra anotação foi feita na mesma página, ao lado direito: “Exumado em 2/9/1975”. Nenhuma informação sobre o destino dos restos mortais.

Pouco tempo após a morte de Dimas, sua mulher e seu filho voltaram a morar em Votuporanga. A casa em que eles moravam em São Paulo fora invadida e saqueada pelos agentes nos dias que se seguiram à execução do militante do MRT. Até que Maria Helena fosse solta, a diversão dos policiais era ir ao DOI-Codi usando roupas e o relógio de Dimas para que a jovem viúva reparasse e sentisse mais um pouco da crueldade dos algozes de seu marido. Seu crime? Ser casada com um “terrorista”.

Maria Helena morreu de câncer no final dos anos 1980, antes que a vala de Perus fosse revelada. Não pôde testemunhar a identificação da ossada de seu cunhado, Dênis, em 1991, nem a de seu marido, Dimas, em 2018. Naquele ano, a identificação dos restos mortais de Dimas Casemiro foi comunicada a seu filho Fabiano, em 19 de fevereiro. Foi preciso esperar alguns meses até a liberação do material e a emissão de uma nova certidão de óbito.

No dia 30 de agosto de 2018, a urna com os remanescentes ósseos de Dimas Antonio Casemiro pôde ser sepultada no cemitério de Votuporanga.

 

Aluísio Palhano Pedreira Ferreira (1922-1971), identificado em 2018

Aluísio Palhano já não era jovem quando foi preso e assassinado pelo sistema repressivo. Nascido em 1922, filho de João Alves Pedreira Ferreira e Henise Palhano Pedreira Ferreira, esse militante da Vanguarda Popular Revolucionária tinha 48 anos quando desapareceu, em 20 de maio de 1971.

Aluísio também não era de família pobre nem tinha origem humilde, como eram os casos de Dênis e Dimas Casemiro. Filho de um fazendeiro de Pirajuí, no interior de São Paulo, cursou o primário no colégio Mackenzie, um dos mais tradicionais de São Paulo, e o ginásio no colégio Salesiano de Niterói (RJ), para onde se mudou aos 10 anos, após a morte do pai.

Tinha 21 anos quando foi aprovado num concurso para trabalhar no Banco do Brasil, em 1943. No mesmo ano, matriculou-se no curso de direito da Universidade Federal Fluminense, onde se bacharelou em 1948. Junto com a carreira de bancário e de advogado, Aluísio fez carreira também como sindicalista. Nos anos 1950, foi por dois mandatos presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. Em seguida, ocupou também a presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec) e, um ano depois, tornou-se presidente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), uma recém-fundada organização intersindical de abrangência nacional.

O Ato Institucional número 1, de 1964, cassou seu mandato e seus direitos políticos. Aluísio também foi exonerado do Banco do Brasil. Asilou-se no México entre julho e dezembro e transferiu-se para Cuba no ano seguinte. Ali, trabalhou com colheita de cana e, principalmente, foi locutor na Rádio Havana.

Em 1970, voltou ao Brasil como clandestino e foi atuar na Vanguarda Popular Revolucionária. Um de seus principais contatos na organização era justamente o agente policial infiltrado José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que muito provavelmente o entregou aos órgãos de segurança.

Na carceragem do DOI-Codi, Aluísio contou ao também preso político Altino Rodrigues Dantas Júnior, ex-presidente da UNE, que fora sequestrado na rua, em São Paulo, no dia 9 de maio de 1971, e levado no dia seguinte para o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), no Rio. No dia 16 de maio, foi trazido de volta ao DOI-Codi de São Paulo, onde foi torturado. Nesse intervalo, teria passado também pelo centro de tortura conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), provavelmente no dia 13, conforme testemunho da ex-presa política Inês Etiénne Romeu.

Aluísio teria sido torturado até a morte na noite de 20 de maio conforme relato enviado por Altino em carta ao general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, então ministro do Supremo Tribunal Militar, em agosto de 1978. “Na noite do dia 20 para o dia 21 daquele mês de maio, por volta das 23 horas, ouvi quando o retiraram da cela contígua à minha e o conduziram para a sala de torturas”, escreveu. “A sessão de tortura se prolongou até alta madrugada do dia 21, provavelmente, 2 ou 4 horas da manhã, momento em que se fez silêncio”.

“Alguns minutos depois, fui conduzido a essa mesma sala de torturas, que estava suja de sangue, mais que de costume”, continua a carta de Altino. “Perante vários torturadores, particularmente excitados naqueles dias, ouvi de um deles, conhecido pelo codinome de JC (Dirceu Gravina), a seguinte afirmação: ‘Acabamos de matar o seu amigo; agora é a sua vez’”.

Morto no DOI-Codi, Aluísio foi dado como desaparecido. Era casado com Leda Pimenta Pedreira Ferreira, com quem teve dois filhos.

Não foi encontrado qualquer registro de entrada no Cemitério Dom Bosco em nome de Aluísio Palhano. O ex-sindicalista tornou-se um dos procurados de Perus em razão da data e do local da sua morte, uma vez que praticamente todos os outros militantes políticos mortos no DOI-Codi em 1971 tiveram como destino aquela necrópole.

Em 2005, uma sobrinha-neta de Aluísio, Clarisse Mantuano, lançou um curta-metragem sobre o tio-avô. Em “Um companheiro”, a trajetória de Aluísio e um breve perfil biográfico dele são narrados por sua cunhada, Branca Eloysa. Segundo ela, a família custou a se convencer que aquilo havia acontecido. Até 1976, quando saíram as primeiras listas de mortos e desaparecidos, Branca acreditava que ele estava clandestino ou exilado e que iria voltar a qualquer momento.

No dia 3 de dezembro de 2018, a ossada de Aluísio Palhano foi identificada no laboratório da Comissão Internacional para Pessoas Desaparecidas (ICMP), em Sarajevo, na Bósnia. O DNA retirado de um fragmento de seu esqueleto era compatível com o DNA de sua filha Márcia.

Quando a abertura da vala de Perus completou trinta anos, em setembro de 2020, os restos mortais de Aluísio Palhano ainda não tinham sido sepultados pela família. Optou-se por esperar a conclusão dos trabalhos de perícia no CAAF-Unifesp na esperança de localizar o crânio de Aluísio, não encontrado junto com os demais ossos.

 

História em construção

Este capítulo buscou consolidar informações sobre a vida, a morte e a luta por memória e justiça empreendida pelos familiares dos cinco desaparecidos identificados até setembro de 2020 dentre as mais de mil ossadas exumadas da vala clandestina de Perus.

Essas informações foram obtidas por meio de entrevistas feitas pelo autor com amigos e familiares, pesquisa realizada em jornais de época e, principalmente, a partir da leitura de livros, artigos, dossiês e relatórios elaborados ao longo desses trinta anos.

Neste sentido, são dignos de nota o Dossiê mortos e desaparecidos políticos no Brasil 1964-1985, organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e publicado em 1995; o livro Direito à memória e à verdade, lançado em 2007 pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos; o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em especial o volume III, intitulado Mortos e desaparecidos políticos; o Memorial mortos e desaparecidos publicado no portal Memórias da Ditadura; transcrições de depoimentos e audiências públicas realizadas pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva; bem como verbetes elaborados pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

 

Leia no último capítulo: Quando extermínio, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres permanecem na democracia. A necropolítica. Os riscos da concessão dos cemitérios públicos. O Brasil das milícias. Onde está o Amarildo?

Foto: Danilo Ramos/Rede Brasil Atual

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

Ivan Lins e Vitor Martins, em “Aos nossos filhos”

 

— Os comunistas estão chegando.

— Eu vi. Que absurdo.

O burburinho foi se alastrando como rastilho de pólvora no mausoléu da Polícia Militar. Uma afronta. Na mesma hora da cerimônia em homenagem aos policiais mortos no cumprimento do dever. Só podia ser provocação.

O encontro no Cemitério do Araçá no Dia de Finados era uma tradição de décadas. Naquele sábado, 2 de novembro de 2013, não haveria de ser diferente. Cadeiras de plástico dispostas em fileiras nas duas laterais da praça cívica acomodavam autoridades da corporação, devidamente paramentadas com suas insígnias e medalhas. E também representantes do Poder Legislativo e da Secretaria de Segurança Pública do Estado.

Empossado em 1º de janeiro, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, fez-se representar pelo superintendente do Serviço Funerário, Sérgio Trani, que ouviu o bochicho como se não estivesse ali. Que comunistas seriam esses? Onde eles estariam?

Cerimônia bonita, com apresentação do coral da PM, flores e orações. O inspirador conjunto escultórico com dezesseis estátuas em bronze esculpidas por Vilmo Rosada e distribuídas pela praça intensificava o caráter solene da cerimônia, marcada para as 9 horas da manhã. Logo atrás das cadeiras, os dois ossários verticais somavam mais de duas centenas de nichos reservados aos “heróis da PM”, como são chamados por seus pares os policiais mortos em serviço. Descendo as escadas, três andares igualmente destinados às sepulturas de policiais militares completam o imponente mausoléu.

— Queria saber o que esses comunistas estão fazendo num cemitério; não são todos ateus? — provocou um parlamentar que fizera carreira na polícia.

— E você viu que tem até terrorista aí no meio? — comentou outro.

— Os terroristas de sempre.

A poucos metros dali, junto ao ossário geral, os “comunistas” davam início à sua própria celebração: um ato ecumênico pelo dever e pelo direito de sepultar os mortos, conforme impresso no cartaz de divulgação. Ativistas de direitos humanos, ex-presos políticos, jornalistas, artistas e parlamentares de esquerda reuniam-se para homenagear os mortos e desaparecidos da ditadura militar.

O encontro, promovido anualmente no Dia de Finados, cada edição num cemitério diferente, era uma iniciativa conjunta de uma série de organizações, entre as quais a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça, com apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, do Conselho Latino Americano de Igrejas e do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, além de todas as Comissões da Verdade em atividade naquele momento em São Paulo: a Nacional, a da Assembleia Legislativa (Alesp) e a da Câmara Municipal. No ano anterior, fizeram no cemitério de Vila Formosa. Agora, fariam no Araçá, onde as ossadas de Perus tinham sido mais uma vez abandonadas.

Também no Araçá, quase um século antes, duas centenas de covas clandestinas teriam sido abertas, nas noites de 15 e 16 de julho de 1917, para enterrar, às pressas e sem avisar as famílias, trabalhadores em greve assassinados pela repressão. São Paulo fervia na primeira greve geral da história do Brasil. A morte do jovem operário José Martinez, pela cavalaria, no início do mês, deflagrara a ampliação do movimento grevista e sua radicalização, como narrou em 2017, ano do centenário, o jornalista José Luiz Del Roio no livro A Greve de 1917. Policiais também foram mortos pelos manifestantes, que organizaram emboscadas, e estão homenageados nas esculturas do mausoléu. Não faltavam motivos para fazer no Araça o encontro daquele ano.

Um dos “terroristas de sempre” que chegou ao Araçá para participar do ato foi o deputado estadual Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade Rubens Paiva, na Alesp. Com seu apoio, por meio de uma emenda parlamentar, os artistas Celso Sim e Anna Ferrari haviam acabado de montar uma instalação ali mesmo no ossário geral, cujos nichos abrigavam centenas de sacos com esqueletos sob a custódia do IML e, desde 2001, as agora 1.046 ossadas de Perus – uma vez que três das 1.049 encontradas na vala já haviam sido identificadas, em 1991, 1992 e 2005. A inauguração da obra estava agendada para o dia seguinte, 3 de novembro, um domingo, como uma das atrações da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo.

Celso e Anna haviam corrido durante a semana para deixar tudo pronto antes do feriado. Uma nota publicada na imprensa havia noticiado que a inauguração seria no próprio dia 2, o que motivou os artistas a improvisarem duas sessões extraordinárias naquela tarde, logo após o ato ecumênico. Uma espécie de pré-estreia.

Por volta das 10 horas, Adriano Diogo conversava com Celso Sim quando familiares de mortos e desaparecidos começaram a chegar. Celso explicava que o ossário não comportaria o ato ecumênico porque havia um limite de vinte pessoas por vez no espaço. Mas o labirinto de paredes coloridas construído na área externa poderia ser utilizado. O gerador de energia, os spots de luz, o equipamento de som, todo o resto estava à disposição dos organizadores do ato inter-religioso.

Aos 73 anos, Anivaldo Padilha, líder da igreja metodista preso na Oban em 1970 e exilado de 1971 a 1984, foi um dos primeiros a chegar. Maria Rita Kehl, psicanalista e membro da Comissão Nacional da Verdade, rondava a instalação, curiosa para saber como tinha ficado. Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo desde 2007, também compareceu, assim como religiosos do candomblé, da umbanda e de outras igrejas cristãs. Passava das 10h30 quando o Coral Luther King, comandado pelo maestro Martinho Lutero, começou a se apresentar. Atores leram trechos da peça Antígona, de Sófocles.

Por volta das 11h30, o ato em memória dos mortos e desaparecidos políticos ainda não havia terminado quando os policiais militares, o chefe da corporação e alguns parlamentares da “bancada da bala” começaram a deixar o mausoléu. Antes de partir, alguns deles resolveram descer até o ossário geral para ver de perto a balbúrdia dos “comunistas”. Somente agora, notavam a instalação de Celso e Anna. Aparentemente, os artistas haviam invadido o ossário geral e colocado caixas de som, projetores, spots de luz. Notaram, também, que a instalação fazia apologia da ocupação artística de cemitérios e crematórios. Uma profanação! Quem tinha autorizado? Desta vez o novo prefeito tinha ido longe demais.

O pior não era isso, notaram. Junto à entrada do ossário, os artistas haviam fixado um totem de mármore em homenagem aos “terroristas” mortos durante a “revolução” de 1964. Como se não bastasse, haviam fixado também um painel com um texto no qual outro “comunista”, Ivan Seixas, discorria sobre a vala de Perus, sua origem e suas implicações na perpetuação da violência de Estado.

No início da tarde, a aglomeração em torno do ossário geral havia se dispersado. Milhares de famílias de diversos bairros de São Paulo e também do interior garantiram o movimento intenso e a profusão de flores sobre lápides e jazigos até o fechamento dos portões, às 19h.

Naquela madrugada, a instalação de Celso Sim e Anna Ferrari foi depredada.

— Vem pra cá imediatamente — Wilton Assis, o administrador, avisou Celso por telefone por volta das 7h30. — Aconteceu um crime aqui no Araçá. Destruíram tua obra. Tem um monte de ossos espalhados pelo cemitério.

Quando Celso chegou, meia hora depois, os funcionários corriam para guardar os ossos rapidamente e, assim, evitar que os frequentadores os vissem, principalmente as crianças. Era domingo, o dia mais movimentado da semana, e logo após Finados. Em pouco tempo, o cemitério ficaria lotado.

A pressa em resolver a situação comprometeu a qualidade da perícia. A equipe da Polícia Civil chegou apenas depois de Celso, quando os sepultadores já tinham devolvido os ossos nos sacos e nos nichos – sabe-se lá se nos sacos e nos nichos corretos. As ossadas de Perus, verificou-se depois, não tinham sido afetadas pela ação. Os vândalos haviam arrombado as tampas dos nichos mais próximos à entrada do ossário e não chegaram a mexer nas mais de sessenta gavetas ocupadas pelo material proveniente da vala, armazenadas mais ao fundo. Essas, pelo menos, continuavam em seus devidos lugares.

Para Celso Sim e para o administrador do cemitério, não havia dúvidas de que o vandalismo tivera motivação política. Aquele atentado, feito em repúdio à obra e ao ato ecumênico da véspera, não era a primeira manifestação de viés conservador registrado no Araçá naquele semestre. Um mês antes, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania havia fixado lambe-lambes no muro do cemitério, de frente para a Avenida Doutor Arnaldo, com fotografias dos protestos ocorridos na cidade meses antes, nas chamadas jornadas de junho. A censura foi imediata. Um ou dois dias depois, as imagens amanheceram rasgadas e pichadas. “Viva PM!”, dizia uma das pichações.

O vandalismo não se restringiu ao vilipêndio das ossadas. Estátuas foram derrubadas. Dentro do ossário geral, ora convertido em instalação artística, dois dos cinco monolitos de mármore utilizados como tela de projeção na obra de Celso Sim e Anna Ferrari tinham sido derrubados e despedaçados, cada um pesando mais de meia tonelada.

Ao saber do atentado, os membros da Comissão Nacional da Verdade telefonaram para Celso e disseram a ele que gostariam de ir a São Paulo para a inauguração. Por isso, pediam que ele adiasse a vernissage por uma semana.

— Em três dias eu resolvo e já quero inaugurar — Celso respondeu.

Ele e Anna optaram por expor o ato de violência em vez de disfarçá-lo. Ajustaram os equipamentos para que os vídeos fossem projetados nos fragmentos de mármore espalhados pelo chão. Representantes da CNV conseguiram se organizar e chegaram a tempo de prestigiar a abertura oficial, entre eles o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. A instalação, intitulada Penetrável Genet, havia se transformado em gesto de resistência, um segundo ato em memória dos mortos e desaparecidos políticos promovido na mesma semana e no mesmo local. A repercussão era muito maior do que a prevista antes da depredação. No dia 4, uma imagem do casal de criadores diante de um monolito despedaçado estampava a primeira página da Folha de S.Paulo.

O inquérito policial aberto para apurar aquela ocorrência foi concluído pouco tempo depois sem que nenhum suspeito fosse citado – e sem que nenhuma das pessoas presentes à cerimônia no mausoléu da PM fosse interrogada. Para os “comunistas”, havia restado uma certeza: aquele local não era adequado para guardar as ossadas de Perus.

***

Meses antes do episódio no Araçá, em abril daquele ano, o recém-empossado prefeito Fernando Haddad havia se reunido com os principais coletivos dedicados ao tema da memória e da verdade, entre eles a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. A intenção do prefeito, ainda no primeiro semestre de mandato, era fazer uma consulta sobre as principais reivindicações nessa área. Ele havia acabado de criar a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, inédita em São Paulo, e vinha definindo com o secretário Rogério Sottili as principais atribuições e objetivos da pasta.

Memória e verdade ainda não constituíam uma coordenação específica dentro da Secretaria, como aconteceria em seguida, sob a condução da até então chefe de gabinete de Sottili, Carla Borges, que já havia trabalhado com ele em Brasília no período em que Sottili foi secretário-executivo da Secretaria Geral da Presidência. Convidado em dezembro para inaugurar uma secretaria municipal de direitos humanos, Sottili mudou-se para São Paulo cheio de ideias para a pasta. Herdara da campanha eleitoral o compromisso de criar uma Comissão da Verdade da Prefeitura, mas ainda não tinha clareza sobre outros programas e políticas públicas que deveriam ser elaboradas no âmbito do direito à memória e à verdade. A reunião de abril tinha essa função.

Naquela reunião, foram propostas medidas diversas, como a criação de centros de memória e a alteração dos nomes de ruas que, ainda, homenageavam torturadores e outros violadores de direitos, como Sérgio Paranhos Fleury, notório torturador e chefe do Dops, eternizado nas placas de sinalização de uma rua na Vila Leopoldina. Entretanto, ficara evidente que havia uma demanda maior que todas as outras: retomar as análises das ossadas de Perus e encontrar um destino para elas.

Lideranças dos coletivos por memória, verdade e justiça trouxeram a denúncia da Equipe Argentina de Antropologia Forense de que o ossário geral do Araçá não era um local adequado para armazenar aquele material. Havia infiltrações, problemas de temperatura e de umidade, sinais de fungos e nenhum cuidado com a preservação arqueológica. Não apenas os trabalhos estavam estagnados, uma constante na história das ossadas, como havia o perigo de comprometer sua integridade física e a viabilidade das identificações. As intempéries poderiam destruir as moléculas necessárias para a análise genética.

Agora, havia uma diferença importante em relação a 1990, quando a prefeita Luiza Erundina assumira para si a responsabilidade por firmar convênios e monitorar os trabalhos com as ossadas. Desde 1995, quando foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) – primeiramente vinculada ao Ministério da Justiça e, a partir dos anos 2000, à Secretaria Especial de Direitos Humanos – a responsabilidade por investigar mortos e desaparecidos, incluindo os trabalhos com as ossadas suspeitas de pertencer a perseguidos políticos, era da comissão. Em razão disso, não seria possível retomar os trabalhos sem o protagonismo do Governo Federal.

Também não seria possível proceder às análises sem recorrer a alguma estrutura policial, fosse o IML ou a Polícia Científica. Essas instituições exerciam uma espécie de oligopólio da medicina legal no país. Nenhuma análise em ossos humanos seria reconhecida pelo Estado sem a assinatura de algum perito de uma dessas instituições, o que fazia com que os familiares torcessem o nariz.

As tratativas começaram ali mesmo. Uma pequena reforma no ossário seria iniciada imediatamente, com recursos do Serviço Funerário, para conter as infiltrações. Sottili, em nome da Prefeitura, aproveitaria uma viagem a Brasília para conversar sobre as ossadas com Maria do Rosário, gaúcha de Veranópolis como ele e titular da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Era preciso aproveitar o que parecia uma importante conjunção astral: pela primeira vez após muitos anos, Governo Federal e Governo Municipal eram administrados por políticos do mesmo partido e sensíveis à luta por memória, verdade e justiça. O Brasil tinha uma ex-presa política na Presidência da República. Os astros estavam alinhados, e esse alinhamento não duraria para sempre.

A sensação de urgência aumentaria após o atentado no Dia de Finados.

***

— É preciso tirar esses ossos daqui.

Rogério Sottili estava especialmente agitado após o vandalismo no cemitério. Os telefonemas se sucediam num ritmo impressionante. De um lado, familiares de mortos e desaparecidos, repletos de razão, exigiam alguma providência.

— Vocês vão deixar os ossos serem roubados ou destruídos?

Vocês, no caso, eram os servidores da Prefeitura. Na condição de secretário municipal, Sottili personificava as expectativas em relação às ossadas. Não apenas ele, toda a equipe de direito à memória e verdade, já constituída como coordenação, e também os responsáveis pelo Serviço Funerário e pela Secretaria de Serviços, à qual os cemitérios eram vinculados. A pressão para que a solução fosse rápida superava a pressão para que fosse a melhor possível. Havia urgência. E muita.

— Precisa resolver isso logo — Sottili conversou com Maria do Rosário a fim de colocá-la a par dos acontecimentos recentes, ciente de que a CEMDP deveria liderar a busca de uma saída.

O atentado ao ossário ainda repercutia na imprensa quando a ministra tomou a iniciativa de convocar para janeiro de 2014 dois dias de reuniões sobre as ossadas. Os encontros seriam feitos no escritório da Presidência da República em São Paulo.

O gabinete regional da Presidência ocupava todo o terceiro andar do edifício do Banco do Brasil, na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. Foram convidados os membros da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade, além de familiares de mortos e desaparecidos e a equipe da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A Presidência também providenciou passagens para os coordenadores da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) e da Equipe Peruana de Antropologia Forense (EPAF), que se somariam imediatamente aos trabalhos, primeiro como consultores e, em seguida, como membros do comitê científico.

Coordenadora de Direito à Memória e à Verdade na Prefeitura, Carla Borges ficou surpresa ao chegar à reunião com alguma antecedência e descobrir que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência tinha convidado a superintendente da Polícia Técnico-Científica de São Paulo, Norma Bonaccorso.

Norma era a gestora à frente do IML. E também uma das pessoas citadas na ação civil pública movida em 2008 pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão. Na ocasião, fora processada por não ter feito o uso adequado do equipamento adquirido pela Secretaria de Segurança Pública para realizar a análise de DNA das ossadas de Perus, uma omissão que contribuiu para prolongar ainda mais a espera dos familiares.

Carla anteviu a reação dos familiares e ligou para o chefe, que estava a caminho:

— Rogério, vai ter uma pessoa do IML na reunião — avisou. — Os familiares vão cair matando em cima da gente.

Carla e Rogério tinham a sensação permanente de caminhar na corda bamba. E sem sombrinha. Um gesto, um comentário mal colocado, uma proposta que fosse mal recebida por aqueles que se dedicavam havia três décadas à busca pelos desaparecidos poderia fazer com que todo o empenho na retomada das análises desmoronasse.

Desta vez, a superintendente se mostrou especialmente solícita. Afirmou que o IML da Rua Teodoro Sampaio estava à disposição para receber as ossadas e se encarregar dos trabalhos de perícia.

— Estamos num outro momento. Vamos reescrever essa história — prometeu.

A proposta recebeu o apoio de Eugênia Gonzaga. Na concepção da procuradora da República, a mesma que conseguira judicializar a questão por meio das ações civis públicas movidas cinco anos antes, não haveria como fugir do IML. Era melhor mandar as ossadas para lá do que esperar que elas fossem destruídas por fungos e infiltrações.

Sottili concordava. Não tinha escapatória. Primeiro, por implicações legais, uma vez que somente o IML poderia ser legalmente responsável pelas análises e pelas eventuais identificações que viessem a acontecer. Segundo, em razão da ausência de alternativa. Quem mais estaria apto a desenvolver esse trabalho no Brasil?

Adriano Diogo, por sua vez, arregalou os olhos. Que proposta era aquela? O que Amelinha ou Ivan achavam disso? O que Crimeia diria?

— Já vi esse filme — Amelinha reagiu. — De novo essa história de mandar pro IML.

Não havia solução fácil. Quinze anos depois, os familiares viam-se novamente envolvidos nas mesmas discussões travadas em 1998 e mediadas pelo então secretário estadual de Justiça, Belisário dos Santos Jr., e pelo jovem procurador da República dos Direitos do Cidadão, Marlon Weichert, que parecia cair de paraquedas num tema que desconhecia por completo. Agora, como naquela época, o IML parecia monopolizar as análises periciais em ossos humanos. Tanto Nelson Massini e Badan Palhares, da Unicamp, quanto Daniel Muñoz, da USP, só puderam coordenar os trabalhos com as ossadas nos anos 1990 e 2000 porque conciliavam a atividade universitária com o cargo de perito do IML.

— A sugestão de levar as ossadas para o IML não tem o apoio dos familiares — Adriano comentou. Era melhor não perder tempo nessa proposta.

Aventou-se como alternativa a hipótese de abrigar as ossadas numa universidade, um local de ciência, e montar um convênio para que um perito do IML pudesse executar ali os trabalhos, um formato parecido com o que fora adotado no Departamento de Medicina Legal da Unicamp e no Instituto Oscar Freire, da USP. Deixar as ossadas sob a tutela do IML não parecia viável.

— Assim é bem melhor — Amelinha concordou. — Mas que universidade?

— Vocês estão loucos de mandar de novo para a universidade? — agora era Crimeia quem falava. — Não basta a forma como fomos tratados na Unicamp e na USP?

Pronto. Estaca zero. Um olhava pela janela, outro tamborilava no tampo da mesa. A construção de uma solução conjunta parecia cada vez mais distante. Todos ali pareciam ter razão. Todos argumentos eram razoáveis. Nada servia, nem o IML nem as universidades.

— E a Unifesp? — Ivan lembrou que a Universidade Federal de São Paulo havia criado sua própria Comissão da Verdade em meados do ano anterior, pouco antes do atentado ao Araçá. Havia, ali, uma nova gestão na reitoria e também uma equipe dedicada. Edson Teles, filho de Amelinha, era professor no campus de Guarulhos.

Rogério comentou que já havia feito uma primeira consulta à reitora, Soraya Smaili, quando a recebera em seu gabinete, juntamente com a professora Ana Nemi, integrante da Comissão da Verdade da Unifesp, em dezembro. A reitora fora convidada para conversar sobre outros temas, relacionados à coordenação de políticas para idosos, com a coordenadora Guiomar Lopes e o secretário. Sottili aproveitara para introduzir o tema das ossadas. Soraya ficara entusiasmada com a possibilidade de contribuir com os trabalhos, mas se mostrara reticente diante da hipótese de assumir a guarda do material ou a responsabilidade pela perícia.

— Acabamos de assumir a reitoria — Soraya declinou. — A Unifesp vem de um processo difícil, após oito meses de greve, e temos um monte de coisa para ajustar para colocar a casa em ordem.

Ainda segundo Soraya, professores vinculados à Comissão da Verdade da Unifesp haviam viajado a Buenos Aires, conhecido as avós da Praça de Maio, grupo de mães de desaparecidos políticos mortos durante a ditadura argentina, e visitado a Equipe Argentina de Antropologia Forense, a EAAF, especializada na análise de ossadas do período da repressão. Desde então, havia uma ideia pouco concreta de criar algo parecido na Unifesp. No entanto, não havia na Unifesp um espaço adequado para aquela investigação nem docentes especialistas no assunto. Em resumo: seria impossível.

Mesmo assim, Sottili concluiu seu relato na reunião de janeiro comentando que nada impedia que alguém procurasse novamente a reitora.

— Alguém aqui tem relação pessoal com a Soraya?

Ninguém tinha.

Embora pouco se tenha avançado naquela reunião, os encaminhamentos foram definidos. Carla Borges faria uma visita técnica ao IML acompanhada de um dos peritos estrangeiros e de familiares a fim de conferir a estrutura e a necessidade de reformas. Foi um desastre. O entra e sai de policiais e de cadáveres, a proximidade das mesas de necropsia, o movimento permanente de presidiários que chegavam para fazer exame de corpo de delito, famílias desesperadas à procura do pai que sumiu, do filho que não voltou para casa, o choro de quem deixava a câmara fria após reconhecer um parente, tudo ali confirmava a sensação de que seria impossível realizar naquele ambiente um trabalho delicado e meticuloso como a análise daquelas ossadas.

Faltava um espaço com entrada independente, calmo, que comportasse as equipes de antropologia e arqueologia forense. Faltava segurança para a guarda daquele material e também um sistema de climatização apto a conservar em condições adequadas as 1.046 caixas que viriam do Araçá. A hipótese, já remota, de transferir as ossadas para o IML foi definitivamente descartada.

Amelinha, por sua vez, foi escalada para insistir com a reitora. Ela tinha um plano.

— Vou ligar para a Léo.

Professora de sociologia e pró-reitora de Extensão da Unifesp até tomar posse como ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2012, Eleonora Menicucci, a Léo, tinha militado em duas organizações armadas, a Política Operária (Polop) e o Partido Operário Comunista (POC), e passara uma temporada com Dilma Rousseff na Torre das Donzelas, a ala feminina do Presídio Tiradentes, um dos principais locais de detenção de presos políticos no início dos anos 1970.

Sottili tomou a iniciativa de também contatar Eleonora naquela semana, em nome da Prefeitura, para que houvesse uma abordagem institucional. Tanto para Amelinha quanto para Sottili, Eleonora prometeu que falaria com a reitora.

Um grupo de familiares pediu uma reunião com Soraya, na reitoria da Unifesp, e Eleonora telefonou para ela na hora exata em que a reunião começaria. Já estavam na sala, à espera de Soraya, o próprio Sottili, um representante da Cruz Vermelha e familiares de desaparecido. Soraya pediu licença para atender à ministra.

— Soraya, você vai receber uma proposta agora, que é de abrigar as ossadas de Perus e se responsabilizar pela análise desse material.

A reitora quase caiu da cadeira.

— Mas…

— O que está acontecendo é o seguinte. As ossadas estão há mais de uma década no Araçá, num local sem condições de abrigar esse material, e agora estão querendo levar para o IML, o que não é aceitável.

— Mas a Unifesp não pode… A gente não tem espaço, não tem recursos, não sabe nem por onde começar.

— Fica tranquila que a gente vai ajudar. Vou conversar com o ministro da Educação. Nós vamos conseguir os recursos, as coisas vão acontecer.

A reitora resistia. Temia repetir a experiência da Unicamp, ou seja, pegar o trabalho e depois não ter condições de dar continuidade a ele. Principalmente, não tinha confiança. Seu medo era que o Governo prometesse recursos, colocasse no orçamento, mas depois não empenhasse o valor prometido. E a Unifesp, ela sabia, não estava numa situação confortável para absorver contingenciamentos não previstos.

De fato, aquele seria um ano muito difícil para as universidades federais como um todo. Os repasses do Governo para o ensino superior cairiam de R$ 8,7 bilhões em 2013 para R$ 7,8 bilhões em 2014, uma redução de 10%. A Unifesp fecharia o ano com dívidas, o que nunca tinha acontecido, desde sua fundação, em 1994.

Soraya ainda tentava processar aquele pedido da ministra quando o telefone tocou novamente, antes que ela tivesse voltado para a reunião.

— Soraya, aqui é a Amelinha. Só você vai poder resolver isso. Não podemos aceitar que esse trabalho vá para o IML. Tem que ir para a Unifesp, não tem outro lugar. A gente confia em você.

Não teve jeito. Soraya entendeu que não podia dizer não. Sentiu que era um daqueles momentos da História em que não se tem opção.

De volta à reunião, a reitora ouviu cada palavra. Sottili reiterou a proposta de se firmar um termo de cooperação e garantir recursos que viriam da Secretaria de Direitos Humanos, via Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Prefeitura de São Paulo, via Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, e também do Ministério da Educação, por meio de rubricas específicas que ampliariam o repasse para a universidade.

— Vou precisar de muito apoio — Soraya resumiu, aceitando o desafio.

Nas semanas seguintes, uma nova rodada de conversas foi feita em Brasília. Primeiro com Eleonora Menicucci e Henrique Paim, ministro da Educação empossado em janeiro, que garantiu os repasses e o apoio institucional à Unifesp. Em seguida, com Ideli Salvatti, que em março substituíra Maria do Rosário na Secretaria de Direitos Humanos. Sottili foi pessoalmente falar com Ideli no dia seguinte à posse.

— Ideli, você tem nove meses até o fim do mandato — Sottili comentou. — Você quer entrar para a História? Destrava Perus. Se a gente botar de pé um centro de antropologia forense na Unifesp e conseguir identificar algumas ossadas, você vai ter desempenhado um papel importantíssimo em algo que tem uma relevância histórica enorme.

Foi como um “abre-te, Sésamo”. A ministra se envolveria tão completamente com o tema que, passados seis meses, os trabalhos já estavam em andamento.

Nos primeiros dias de abril de 2014, em meio à “descomemoração” dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964, foi finalmente firmado um protocolo de intenções entre a Secretaria de Direitos Humanos, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Unifesp.

Coube à equipe da Prefeitura encontrar um local que pudesse ser alugado pela Unifesp para servir de abrigo às ossadas e também para acolher os trabalhos de análise. Carla Borges e Clara Castellano, coordenadora-adjunta de Direito à Memória e à Verdade, consultaram todos os classificados de imóveis que puderam encontrar. Uma condição era que ficasse nos arredores do campus paulistano da Unifesp, entre a Vila Mariana e a Vila Clementino, perto do Hospital São Paulo. Ao longo de um mês, Clara cumpriu expediente na rua, visitando casas, mentalizando reformas, negociando valores. Chegou a visitar um castelinho na Vila Mariana, mas a opção foi descartada.

Em junho, Carla e Clara conseguiram finalmente encontrar uma casa na Rua Joaquim Távora, a três quarteirões da Rua Vergueiro, que cabia no orçamento e se encaixava nas especificações técnicas detalhadas pela equipe peruana. Principalmente: o proprietário do imóvel concordava com as reformas que precisariam ser feitas. E, como a casa tinha dois pavimentos, um no nível da rua e um descendo um lance de escadas, seria possível adiantar as adaptações no andar debaixo para já iniciar os trabalhos enquanto o andar de cima fosse reformado.

As primeiras 433 caixas com ossos foram transferidas do Araçá para o número 168 da Rua Joaquim Távora no final de agosto. As demais precisariam aguardar o término da reforma para que houvesse um cômodo adequado para abrigá-las.

No dia 4 de setembro de 2014, quando a revelação da vala clandestina completou 24 anos, foi finalmente assinado um acordo de cooperação técnica entre a Unifesp, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A universidade ficaria encarregada do espaço físico, a Prefeitura seria responsável pelos insumos e o Governo Federal pelos profissionais.

Nasciam assim o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) e o Grupo de Trabalho Perus (GTP), ao qual caberia a missão de proceder à análise das ossadas exumadas em 1990 no Cemitério Dom Bosco.

***

Numa das paredes do CAAF, 41 desaparecidos pareciam observar os trabalhos de limpeza e análise das ossadas.

Eram 41 cartazes, com os rostos e os nomes de 41 pessoas suspeitas de estarem entre as ossadas analisadas. Eles haviam sido fixados ali pela equipe de ante-mortem, pesquisadores responsáveis por reunir informações sobre os desaparecidos suspeitos de terem sido enterrados no cemitério de Perus e transferidos para a vala clandestina nos anos 1970. Quanto mais detalhadas as informações, mais viável sua identificação.

A investigação combinava histórias de vida e dados físicos. Interessava saber informações antropométricas, como altura, e o histórico de fraturas ósseas do desaparecido. E também se ele fizera parte do movimento estudantil ou de alguma organização armada, se havia testemunhas de sua prisão ou tortura, se saíra alguma nota no jornal dizendo que ele havia morrido em tiroteio com a polícia ou sido atropelado por um caminhão ao tentar fugir ao cerco policial.

Os laudos produzidos no IML eram igualmente valiosos. Perfurações a bala no fêmur ou no esterno ou indicações de afundamento de ossos na bacia ou no crânio, tudo isso ajudaria na hora de comparar com os esqueletos em análise, um trabalho que parecia recomeçar da estaca zero, uma vez que a triagem e as fichas  feitas pela Unicamp careciam de rigor científico e organização, tornando-as pouco úteis, conforme os novos peritos perceberam.

Ao longo de todo o primeiro ano, profissionais como os arqueólogos Márcia Hattori e Rafael Souza trabalharam nesse levantamento. O primeiro passo foi consultar os coletivos de familiares, os relatórios das Comissões da Verdade, os dossiês de mortos e desaparecidos publicados na década anterior e também as fichas e os arquivos da Unicamp para chegar à lista de 41 pessoas procuradas. Entre essas, havia as mais prováveis e as menos prováveis.

O topo do ranking era formado pelos desaparecidos políticos cujos nomes constavam dos livros do Cemitério Dom Bosco como tendo sido exumados de suas sepulturas entre 1975 e 1976 sem nenhuma referência aos locais de reinumação. Dimas Casemiro, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira, registrado no livro de entrada com o nome falso de Dario Marcondes, integravam esse grupo. Em seguida vinham aqueles que também foram sepultados no cemitério e que, segundo os livros, tinham sido reinumados no mesmo local, embora escavações feitas nas sepulturas individuais a eles atribuídas tenham falhado nas tentativas de localização. Hirohaki Torigoe (enterrado com o nome de Massahiro Nakamura), José Milton Barbosa (enterrado com o nome de Helio José da Silva) e Luiz Hirata compunham esse segundo grupo.

Havia, em seguida, um rol com sete pessoas que, segundo relatos e testemunhos, desapareceram em São Paulo nos primeiros anos da década de 1970 e que tinham sido vistas em centros de tortura ou presídios da cidade pouco antes de desaparecer: Abílio Clemente Filho, Aluísio Palhano, Aylton Mortati, Devanir José de Carvalho, Edgar Aquino Duarte, Luiz Almeida Araújo e Paulo Stuart Wright. Uma outra seção, maior do que as outras e com menos chance de localização, reunia dezenove desaparecidos que não foram vistos em nenhuma prisão nem estavam fichados no IML, mas que teriam sumido em São Paulo ou teriam passado pela cidade naquele período. São eles Ana Rosa Kucinski, Davi Capistrano. Eduardo Collier Filho, Elson Costa, Fernando Santa Cruz, Heleny Guariba, Hiram de Lima Pereira, Honestino Guimarães, Ieda Santos Delgado, Isis Dias de Oliveira, João Massena Melo, José Montenegro de Lima, José Roman, Luís Ignácio Maranhão Filho, Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior, Paulo César Botelho Massa, Paulo de Tarso, Celestino Silva, Walter de Souza Ribeiro Silva.

Por fim, nove nomes foram incluídos na lista de procurados por solicitação de familiares. Seis deles eram de desaparecidos políticos relacionados na lei 9.140/1995 – Itair José Veloso, Jayme Amorim de Miranda, Joel Vasconcelos Santos, Jorge Leal Gonçalves Pereira, Thomaz Antonio da Silva Meirelles Neto e Vitor Luís Papandreu – e três não tinham qualquer histórico de militância política ou maiores detalhes sobre seu desaparecimento: José Padilha Aguiar, Marlene Rachid Papembrok e Olímpio de Carvalho. Uma dessas pessoas, José Padilha, foi incluída na lista somente em 2014, quando o CAAF foi formado. Sua filha Vilma procurou a Secretaria de Direitos Humanos quando soube que qualquer pessoa desaparecida em São Paulo entre 1971 e 1974 poderia ter sido ocultada na vala de Perus, e que os trabalhos de identificação não eram restritos aos militantes políticos.

— Meu pai sumiu em 1971 — contou. — A polícia disse para a minha mãe que ele deve ter fugido com outra mulher e ficou por isso mesmo.

Padilha foi incorporado ao rol de desaparecidos procurados e sua filha foi entrevistada pela equipe de ante-mortem do CAAF. A busca por seu paradeiro incluiu tratativas com a Secretaria de Segurança Pública do Paraná, onde seu documento de identidade tinha sido emitido, e consultas ao IML e ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. Buscando as fichas de mortos desconhecidos e não reclamados compatíveis com a data do desaparecimento e comparando os dados físicos anotados no IML com as imagens e informações oferecidas pelos familiares, a equipe do CAAF conseguiu confirmar: o pai de Vilma tinha sido atropelado por um trem e enterrado como indigente em Perus em 1971. Como não foi possível confirmar se seu corpo teria ido para a vala clandestina, sua ficha segue na lista de procurados com possibilidade de associação genética.

Embora ainda não tenha sido possível entregar a Vilma os remanescentes ósseos de seu pai, o GTP conseguiu desempenhar, neste episódio, um primeiro gesto significativo de reparação história e cidadania oferecendo uma resposta oficial que, por quase cinquenta anos, o Estado não conseguira – ou não tentara – dar à família de Padilha. Não, ele não tinha fugido com outra mulher.

Após a consolidação da lista com os 41 desaparecidos, surgiu a ideia de fixar cartazes com os rostos e os nomes de todos eles na parede. Uma forma de lembrar, diariamente, o motivo pelo qual estavam ali. Uma maneira de reafirmar, a cada segunda-feira, a razão pela qual trabalhavam naquelas análises.

Logo a galeria dos desaparecidos gerou um primeiro impasse, um primeiro episódio de tensão. Em visita ao CAAF, Suzana Lisbôa notou que um dos retratos era do cabo do Exército Vitor Luiz Papandreu, fuzilado na Casa da Morte, em Petrópolis, em 1971. Espantou-se:

— Esse cara era um cachorro. O que seu retrato está fazendo aqui?

Cachorro era uma gíria usada pelos integrantes do aparato repressivo para se referir ao informante que não era funcionário do sistema de informação, mas que passava a colaborar em troca de informação, mas que passava a colaborar em troca de benefícios pessoais ou para que cessassem as torturas. O termo teria sido cunhado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Dops, devido à obediência canina desses colaboradores, sobretudo daqueles que mudavam de lado e, como infiltrados, passavam a delatar antigos companheiros.

Foi o psiquiatra Amilcar Lobo, médico que auxiliava nas sessões de tortura na Casa da Morte, o primeiro a relatar o fuzilamento de Papandreu e a revelar sua participação na captura de guerrilheiros. “Era um rapaz jovem, de estatura alta, magro, de cabelos claros”, narrou em suas memórias, publicadas em 1989. “Ouço-o, observo-o e conversamos longamente. Constato que ele realmente apresenta ideias delirantes. (…) O major, no entanto, o chama por um nome que soa aos meus ouvidos como ‘Papaleo’ e este rapaz o atende prontamente. (…) Sampaio (o major) me diz que dentro de pouco tempo este rapaz deveria ir a Goiás conhecer outros subversivos de uma outra organização comunista. Digo-lhe que, provavelmente, nesse curto espaço de tempo, o preso não teria condições de viajar”. O major Sampaio o teria alvejado com um tiro na cabeça em seguida.

Após contar que muitos companheiros teriam sido delatados e mortos por causa dele, Suzana conseguiu que o retrato de Papandreu fosse retirado da parede.

Em 2017, um último nome foi incluído na lista de desaparecidos procurados pelo CAAF nas ossadas de Perus. Somavam, agora, 42 pessoas, das quais 41 seguiam expostas na parede. João Maria Ximenes militava no Partido Comunista Brasileiro e cursava economia na PUC de São Paulo quando desapareceu, em 1974. Seu caso foi investigado pela Comissão da Verdade da PUC e levado ao CAAF pela ex-presa política Rosalina Santa Cruz, professora daquela universidade e membro da Comissão.

***

Não havia um dia em que Aline não olhava para aqueles rostos antes de vestir as luvas e dar início ao trabalho. Era uma espécie de deferência, um olhar respeitoso, um pedido de licença.

No início de 2015, Aline Feitoza era uma das doze pessoas que trabalhavam diariamente no CAAF. Sua função, juntamente com outras antropólogas, arqueólogas e estagiários do curso de História, era abrir as caixas trazidas do Araçá, higienizar os ossos e depurá-los para que outra profissional, em seguida, cuidasse de analisá-los: quais ossos havia na caixa e quais estavam faltando, qual o sexo e a idade presumida daquele indivíduo, se havia mais de um indivíduo ali, se algum osso havia sido ferido por fratura ou arma de fogo, se havia alguma especificidade na dentição. Ainda naquele semestre, Aline passaria a se ocupar dessa outra etapa. Enquanto Márcia Hattori e outros profissionais cuidavam do ante-mortem, Aline integrava o grupo de post-mortem.

Os trabalhos de limpeza e análises das ossadas se estenderam por muito mais tempo do que o previsto. As primeiras reportagens publicadas na imprensa informavam que triagem e catalogação estariam encerradas um ano após o início dos trabalhos. Em meados de 2015, no entanto, os ossos das primeiras 433 caixas ainda estavam em estudo. Ao mesmo tempo, a reforma na sede do CAAF ainda não havia terminado, o que impedia o transporte de todas as ossadas para lá.

A permanência do material no ossário geral do cemitério do Araçá provocava calafrios nos familiares e nas entidades de direitos humanos. O atentado à instalação de Celso Sim e Anna Ferrari caminhava para completar dois anos quando o Ministério Público Federal, por intermédio da procuradora Eugênia Gonzaga, agora à frente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República, conseguiu emplacar uma solução provisória.

No dia 15 de agosto, devidamente escoltadas por agentes da Guarda Civil Metropolitana, as caixas que ainda estavam no Araçá foram transferidas para uma sala-cofre no prédio da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Agora sob a custódia do Ministério Público Federal, as caixas ficariam num ambiente com temperatura adequada e com segurança 24 horas. Somente em meados de 2016, concluída a ampliação da sede, o CAAF pôde reunir todas as 1.046 caixas e dar sequência aos procedimentos de limpeza e análise das ossadas que haviam passado uma temporada no MPF. A última caixa seria aberta em dezembro de 2019.

Na investigação post-mortem, o mais importante era anotar com precisão e rigor cada detalhe dos esqueletos, uma caixa de cada vez. As anotações iriam corroborar a planilha das compatibilidades. Qual ossada poderia ser de Dimas Casemiro, um homem branco, de 25 anos e 1,80 metro? Qual poderia ser de Luiz Hirata ou de Heleny Guariba? Numa etapa posterior, amostras das ossadas compatíveis seriam encaminhadas para análise genética juntamente com amostras de sangue de possíveis familiares.

Já em 2014, ficara estabelecido que todas as caixas seriam abertas e todas as ossadas seriam periciadas, sem exceção. Essa orientação viria a provocar a primeira cisão no comitê científico do Grupo de Trabalho Perus. Sob coordenação do médico legista Samuel Ferreira, vinculado à Secretaria Nacional de Segurança Pública e à Polícia Científica de Brasília, o comitê científico lograra juntar peritos da Equipe Argentina de Antropologia Forense, sob a coordenação de Luis Fondebrider, e peritos da Equipe Peruana de Antropologia Forense, coordenada por José Pablo Baraybar. Com ampla experiência internacional, esses profissionais assumiram a tarefa de implementar os protocolos a serem seguidos na Unifesp e formar os profissionais brasileiros que tocariam o barco durante o tempo necessário para a conclusão dos trabalhos, estimado inicialmente em três anos e mais tarde redimensionado para terminar em 2022.

Os argentinos eram velhos conhecidos dos familiares de mortos e desaparecidos no Brasil. Fondebrider, pioneiro da antropologia forense na América do Sul, estivera na abertura da vala de Perus em 1990 e por mais de uma ocasião pôde acompanhar etapas distintas das tentativas de identificação ocorridas nos anos que se seguiram à abertura. Mais recentemente, a equipe argentina tivera a oportunidade de analisar as ossadas retiradas do Araçá com suspeita de pertencerem ao desaparecido Hiroaki Torigoe e elaborara um relatório demolidor, reduzindo a pó as fichas produzidas na Unicamp nos anos 1990. Já os peruanos haviam se destacado no cenário mundial por trabalhos de identificação realizados para o Tribunal Penal Internacional nas regiões das guerras da Bósnia, Croácia e Kosovo, também nos anos 1990.

Ainda em 2014, argentinos e peruanos começaram a discordar quanto à metodologia a ser adotada no âmbito do GTP. Grosso modo, os argentinos entendiam que era preciso priorizar as ossadas compatíveis com os desaparecidos políticos, procurados pelos familiares desde os anos 1970. Neste sentido, sugeriam deixar temporariamente de lado as ossadas que não fossem compatíveis com os militantes políticos buscados. Segundo esta abordagem, os peritos não deveriam perder tempo com esqueletos de crianças ou de pessoas com idade presumida de mais de 50 anos, por exemplo, uma vez que não havia crianças nem pessoas com mais de 50 entre os desaparecidos listados.

Já os peruanos faziam coro com as recomendações feitas pelo Estado brasileiro e pela Prefeitura de São Paulo no sentido de investigar e classificar todas as ossadas. O que embasava essa abordagem era o entendimento de que a violência de Estado vitimara todas essas pessoas e que, neste sentido, todo desaparecimento era político, fosse ele provocado por uma política de genocídio que estimulava a truculência policial ou a atuação de grupos paramilitares, fosse por meio da perseguição a opositores da ditadura.

O objetivo deste grupo, ao qual os peruanos aderiram, era construir um banco de dados sobre as ossadas que permitisse a qualquer pessoa procurar seu familiar desaparecido, desde que o desaparecimento tenha ocorrido em São Paulo entre 1971, ano da inauguração do cemitério, e 1976, ano da exumação em massa e da reinumação das mais de mil ossadas na vala clandestina. Casos como o de Vilma, que poderiam recorrer ao CAAF para localizar seu pai José Padilha, só seriam possíveis se houvesse essa amplitude no universo das análises.

Em dezembro de 2014, apenas três meses após a inauguração oficial do CAAF, os membros da EAAF se retiraram com um e-mail de despedida enviado aos membros do GTP. “O motivo de tal decisão, amplamente discutido por aqueles de nós que participaram do projeto, baseia-se em nosso desacordo com a forma como foi decidido conduzir a investigação”, dizia a carta assinada pela perita Patricia Bernardi. “Sempre entendemos que o projeto original era tentar determinar se entre os remanescentes de Perus havia alguns dos que desapareceram por motivos políticos durante a última ditadura militar no Brasil. Essa ideia original transformou-se em uma análise muito mais ampla, o que implica tentar analisar todos os esqueletos, considerando que todos os restos mortais correspondem a pessoas não identificadas, independentemente das motivações de seu desaparecimento”.

Superado o desfalque, os trabalhos se mantiveram da forma como fora acordado: um processo lento e exaustivo que, em setembro de 2017, resultou num primeiro lote de 100 amostras ósseas encaminhadas para análise genética juntamente com 77 amostras de sangue colhidas de familiares de 33 desaparecidos. Um segundo lote seria encaminhado em setembro do ano seguinte. Até 2019, três outros lotes totalizariam 750 amostras com fragmentos ósseos enviadas para se verificar a compatibilidade genética com as amostras de sangue.

Coordenador do comitê científico do CAAF, Samuel diz ter viajado mais de 40 mil quilômetros para colher amostras de sangue de irmãos e irmãs, filhos e filhas, uma ou outra mãe de desaparecido, não somente em São Paulo e no interior do Estado, mas também no Rio de Janeiro e em Estados como Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Os donos das 1.046 ossadas poderiam estar em todos esses lugares.

Médico legista e geneticista forense vinculado à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e à polícia científica em Brasília, Samuel quis ir pessoalmente a cada encontro com familiares para coletar material. Em cada local, uma oportunidade de conhecer mais detalhes sobre a história de vida dos desaparecidos procurados e restabelecer um vínculo de confiança que, para muitos familiares, havia se esgarçado ao longo das quase três décadas de negligência e omissão.

Na ausência de um laboratório no Brasil apto a realizar um número tão grande de análises sem comprometer as demandas do dia a dia, razão pela qual seria inviável aproveitar a estrutura do IML ou de outro endereço relacionado aos órgãos de segurança pública, foi firmado um convênio com a Comissão Internacional para Pessoas Desaparecidas, ICMP na sigla em inglês, um centro de análises genéticas sem fins lucrativos estabelecido pela ONU em Sarajevo, na Bósnia, com o objetivo original de analisar remanescentes do conflito na ex-Iugoslávia.

Em 14 de setembro de 2017, um marco nas atividades do GTP, Samuel desembarcou pessoalmente em Sarajevo para levar as 100 amostras ao ICMP. O primeiro lote foi entregue ao diretor de Ciência e Tecnologia do Instituto, Thomas Parsons. A convite da CEMDP, Helder Nasser o acompanhou na viagem. Nasser é sobrinho de Edgar Aquino Duarte, desaparecido em 1973, um dos suspeitos de estarem na vala.

***

— Sr. Fabiano Casemiro?

— Sim. Quem está falando?

— Meu nome é Eugênia Gonzaga. Sou procuradora da República e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Estou ao lado do Samuel Ferreira, que é o coordenador científico da Comissão. Estamos ligando para você em nome do Grupo de Trabalho Perus.

— Pois não.

— Fabiano, este telefonema é para confirmar a identificação dos remanescentes ósseos do teu pai, Dimas Antônio Casemiro. Foi confirmada a compatibilidade genética entre o material que recolhemos com o senhor e seus tios e uma das ossadas enviadas para o laboratório do ICMP, em Sarajevo.

O telefonema foi feito em 19 de fevereiro de 2018, uma segunda-feira. Na sexta-feira anterior, dia 16, a equipe do CAAF fora surpreendida com o resultado positivo encaminhado pelo laboratório da Bósnia. Seguindo o protocolo, a equipe reabriu a caixa das ossadas para comparar o material ali armazenado com todo o prontuário de Dimas Casemiro elaborado nas etapas ante-mortem e post-mortem e verificar se, além do DNA, também as características dos ossos eram de fato compatíveis. Sexo, idade presumida, altura, tudo batia. Os dentes perfeitos, preservados. Cotejaram, então as informações referentes ao exame necroscópico. Quatro perfurações causadas por arma de fogo, um dos projéteis alojado na coxa direita. Haveria alguma marca no fêmur compatível com um ferimento a bala? Sim, havia.

Dimas era irmão de Denis Casemiro, o primeiro desaparecido identificado nas ossadas exumadas da vala clandestina de Perus. Amostras extraídas de seu esqueleto tinham sido encaminhadas ao laboratório no Leste Europeu ainda em setembro de 2017, no primeiro lote enviado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Na mesma semana do anúncio, Samuel viajou a Votuporanga, no interior de São Paulo, para levar a documentação referente à identificação pelo ICMP e também pelo CAAF. A entrega da urna com os remanescentes ósseos foi agendada para o segundo semestre. Em 30 de agosto, Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, os restos mortais de Dimas Casemiro foram sepultados no cemitério de Votuporanga.

Fabiano tinha apenas 4 anos quando o pai foi morto, aos 25 anos, em 1971. Em 2015, Fabiano fora pessoalmente à Vila Mariana para responder a algumas questões e deixar uma amostra de sangue com os peritos. Desde então, não chegara a nutrir expectativas reais de que a ossada do pai seria encontrada. “Hoje, após 47 anos, os restos mortais de meu pai retornam a Votuporanga”, declarou por ocasião do sepultamento. “Termina aqui uma parte da história da nossa família. Longe de ser um momento triste, mas sim o fechamento de um longo ciclo”.

Em 3 de dezembro, outra notícia alvissareira: uma segunda ossada de Perus fora identificada em Sarajevo. Desta vez, o material pertencia a Aluísio Palhano, bancário e sindicalista, militante da Vanguarda Popular Revolucionária delatado pelo agente infiltrado Cabo Ancelmo e torturado até a morte no DOI-Codi, aos 48 anos, em 1972.

Palhano não estava na lista dos mais prováveis, o que fazia aumentar a surpresa pela revelação. Seu nome, verdadeiro ou falso, jamais tinha sido localizado nos livros do Cemitério Dom Bosco. Seus restos mortais eram procurados porque havia fortes indícios de que ele teria sido morto em São Paulo num centro de tortura, o que aumentava exponencialmente a chance de ser enterrado em Perus e, anos depois, integrado a vala clandestina.

No CAAF, repetiu-se mais ou menos a mesma sequência da identificação de Dimas. Assim que chegou a informação do match genético, jargão empregado para confirmar a compatibilidade entre a amostra óssea do esqueleto e a amostra de sangue do familiar, o material reunido na caixa atribuída a Palhano foi disposto sobre a bancada no número 168 da Rua Joaquim Távora. Hora de fazer a contraprova.

Uma característica importante relatada por familiares era certa anomalia no braço esquerdo. Ninguém sabia direito se era uma fratura mal regenerada ou se uma doença degenerativa no cotovelo. O que sabiam é que ele tinha dificuldade para dobrar o braço e que, em razão disso, costumava escondê-lo nas fotografias. Decidiram se demorar mais um pouco entre o úmero e o rádio e não deu outra: uma deformação óssea era visível exatamente na região do cotovelo. Todo o resto também conferia.

Márcia, filha de Palhano, foi quem recebeu o telefonema de Eugênia e Samuel. Ao longo de três décadas, desde 1975, quem tivera maior engajamento na busca por respostas sobre a morte e a ocultação do cadáver de Palhano tinha sido sua cunhada, Branca Eloysa, militante do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Branca morrera em abril, dez meses antes da identificação.

Os restos mortais de Palhano não foram sepultados logo após a identificação. Como seu esqueleto estava armazenado numa caixa sem crânio, a família optou por aguardar a conclusão dos trabalhos de perícia nas ossadas de Perus na expectativa de que o crânio fosse localizado na etapa de reassociação das misturas ósseas. Era sabido que, da mesma forma que algumas caixas não tinham crânio, outras guardavam cinco ou seis.

***

Em 4 de setembro de 2020, quando a revelação da vala de Perus completou 30 anos, nenhuma caixa com remanescentes ósseos aguardava para ser analisada. Todas elas haviam passado pelas etapas de limpeza, lavagem, secagem e perícia. Um último lote com 150 ossadas aguardava para que fossem extraídos fragmentos e encaminhados ao ICMP.

Agora, o laboratório de genética forense já não ficava em Sarajevo, na Bósnia, mas em Haia, na Holanda. De lá, também era esperado um último relatório com uma espécie de reanálise de aproximadamente 20% dos casos analisados anteriormente, aqueles que se mostraram inconclusos porque não fora possível extrair material genético suficiente.

Na Vila Mariana, o próximo passo seria iniciar as análises das caixas com misturas ósseas. Para esta etapa, seria necessário estabelecer um novo protocolo e uma nova fase de formação, uma vez que os peritos brasileiros não detinham a técnica necessária. Cerca de 26% das caixas, segundo estimativa de Samuel Ferreira, continham as tais misturas, ou seja, ossos de mais de um indivíduo, o que iria exigir ao menos mais um ano inteiro de perícia.

O atraso no cronograma era patente e tinha sido potencializado em razão da suspensão das atividades presenciais, tanto na Holanda quanto no Brasil, decorrente da pandemia do novo coronavírus. De fato, o universo parecia conspirar contra os trabalhos de análise e identificação desde meados do ano anterior. Da mesma forma como o fim da gestão Erundina, em São Paulo, e sua substituição por Maluf, em 1993, contribuíra para o abandono gradual dos trabalhos de identificação das ossadas, a ascensão de Bolsonaro ao Governo Federal impingira alguns obstáculos aos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos pelo GTP junto à Unifesp.

Um primeiro abalo importante aconteceu em 11 de abril de 2019, quando um decreto assinado pelo presidente da República extinguiu o GTP. Em seguida, no dia 1o de agosto, a procuradora Eugênia Gonzaga foi exonerada da presidência da CEMDP e substituída por um advogado que, nas redes sociais, havia celebrado o aniversário da “revolução de 1964”. Numa de suas primeiras declarações públicas após assumir o cargo, Marco Vinícius Pereira de Carvalho prometeu rever as prioridades da comissão de modo a buscar “celeridade e economicidade”, conforme expressão usada por ele.

A busca por desaparecidos políticos, em Perus ou no Araguaia, ficou, naturalmente, sob a mira da nova gestão. O trabalho referente à guerrilha do Araguaia, segundo Marco Vinícius, a despeito de estar em fase de cumprimento de sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros, “trata-se de algo impossível ou de extrema dificuldade dadas as várias expedições infrutíferas e o dispêndio de milhares de reais para o referido trabalho, que não tem alcançado muito sucesso”. Sobre as ossadas do Cemitério Dom Bosco, Marco Vinícius declarou que o “dispêndio previsto com envio de ossadas para análise de DNA até o laboratório em Haia, na Holanda, consumirá dos cofres públicos mais de US$ 520 mil”. Um despropósito, segundo ele, uma vez que, “de acordo com informações prestadas pela coordenação geral, até hoje só foram identificadas duas pessoas do cemitério de Perus”.

Em novembro, por orientação do presidente da comissão, foi feita uma proposta para descontinuar os trabalhos na Unifesp e transferir as ossadas para o Instituto de DNA da Polícia Civil do Distrito Federal, onde seriam periciadas pelas equipes da polícia científica. Da mesma maneira, sugeriu-se não mais encaminhar material para análise genética em Haia sob o argumento de que era possível fazer o mesmo serviço no Brasil. A proposta foi rechaçada pela procuradora da República Lisiane Braecher, responsável por acompanhar e garantir o cumprimento da sentença, pelo juiz Eurico Zecchin Maiolino, pelos familiares de mortos e desaparecidos e pela Prefeitura de São Paulo. Observou-se, ainda, que a alternativa proposta não reduziria custos, uma vez que não considerava os gastos fixos com infraestrutura e imóvel, servidores da Unifesp disponibilizados para o trabalho no CAAF sem representar gastos adicionais ao Erário ou os custos em combustível e hora de trabalho necessários para transportar todas as ossadas para Brasília, mesmo que utilizando-se uma aeronave da Aeronáutica.

Se os trabalhos haviam sobrevivido a 2018 e a 2019, isso se dera em razão de dois elementos principais: a existência de uma condenação judicial que obriga a União a envidar os esforços necessários para identificar as ossadas e o esforço incansável dos familiares de mortos e desaparecidos e dos ativistas por memória, verdade e justiça, que, ao longo de 50 anos de luta para conhecer o paradeiro dos desaparecidos, não deixaram a peteca cair.

Trinta anos após a revelação da vala de Perus, a busca pela identificação dos restos mortais de mais de mil pessoas desaparecidas e ocultadas pela ditadura militar caminhava para uma esperada conclusão, prevista para acontecer em 2022. Entre os legados deixados por essa busca está, hoje, a transferência de conhecimento científico e a implantação de um centro de antropologia e arqueologia forense numa instituição de ensino superior – público, gratuito e de qualidade – que deverá permanecer mesmo após a conclusão das análises dessas ossadas.

Num futuro nada distante, essa estrutura e esse conhecimento poderão ser aproveitados para novos trabalhos de antropologia forense, a começar pela necessária análise das ossadas exumadas na região do Araguaia e que, a despeito da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ainda não foram submetidas ao devido processo de perícia e identificação. Também poderão ser utilizados para o estudo de casos de desaparecimento forçado e outras modalidades de violência de Estado na atualidade, como já foi feito, em 2016, num projeto da Unifesp que investigou a truculência da polícia militar nos crimes de maio de 2006 a partir de análise de documentos de perícia de 60 jovens mortos na Baixada Santista.

Ainda em setembro de 2020, um acordo firmado entre Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual de São Paulo e Ministério Público do Trabalho com a multinacional automobilística Volkswagen em decorrência de ação civil pública perpetrada contra a montadora por sua colaboração sistemática com práticas de perseguição e tortura, dentro e fora da fábrica, durante os anos 1970, garantiu uma doação de R$ 2,5 milhões da multinacional para as atividades de análise e identificação nas ossadas de Perus. Em tese, o valor é suficiente para a finalização dos trabalhos.

Finalmente, um relatório produzido no âmbito do CAAF em abril de 2020 e juntado ao processo de ação conciliatória, portanto público, listou como uma de suas ações prioritárias para o período imediatamente posterior à fase de isolamento social dar seguimento ao protocolo de identificação aplicando-o sobre uma das caixas. Segundo o documento, existia um “relatório do ICMP confirmando o match genético”, e caberia aos peritos “seguir aplicação do protocolo de identificação, o que inclui: abertura da caixa, comparação com o arquivo ante-mortem e fazer a revisão do caso”.

No final de 2020, portanto, tudo indicava haver mais um desaparecido em vias de ser identificado. A compatibilidade genética fora indicada pelo laboratório em Haia. Os passos seguintes seriam tirar novamente o esqueleto da caixa e verificar sua compatibilidade com as informações colhidas na investigação ante-mortem e post-mortem. Ou seja, essa caixa talvez viesse a revelar a identidade de uma pessoa que, como tantas outras, foi vítima dos crimes de desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres praticados por um Estado que ainda mata, e muito, no Brasil.

 

Leia no próximo capítulo: Quem foram, onde viveram, o que fizeram e como foram assassinados os cinco desaparecidos políticos cujas ossadas foram identificadas entre as 1.049 ocultadas na vala de Perus. Quem ainda pode estar lá.