Fotos: Reprodução

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar.

Chico Buarque e Miltinho, em “Angélica”

 

A abertura da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco completou trinta anos em 4 de setembro de 2020. Fosse outra a conjuntura, por certo haveria uma missa ou ato ecumênico junto ao memorial em homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura militar. A pandemia do novo coronavírus, que àquela altura havia contagiado 4 milhões e matado 125 mil pessoas no Brasil, impossibilitou a realização de qualquer celebração no local. As aglomerações estavam proibidas desde março, assim como as aulas presenciais, os shows e as peças de teatro.

Pelo mesmo motivo, não houve nenhuma apresentação especial da peça Comum, montada desde 2016 pelo grupo Pandora, formado ali mesmo, em Perus, e nenhuma edição da trilha Ditadura Nunca Mais, passeio pelo cemitério organizado pela agência Queixadas, sediada na comunidade cultural Quilombaque.

Passados trinta anos desde a revelação da vala, somente cinco desaparecidos foram identificados. Análises das outras 1.044 ossadas continuavam a ser feitas, agora no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. A expectativa era de que o nome de pelo menos mais um desaparecido fosse revelado no último trimestre do ano, assim que as atividades presenciais no laboratório fossem retomadas. Talvez ficasse para 2021. Seguindo os protocolos de segurança, as universidades públicas seguiam fechadas ou com atividades exclusivamente remotas no final de setembro.

Reuniões do Grupo de Trabalho Perus continuaram a acontecer, também remotamente, com a presença dos gestores, de familiares e de entidades de defesa dos direitos humanos. Naquele 4 de setembro, alguns familiares somavam três décadas de resistência. Outros, com o tempo, foram substituídos por um filho, uma sobrinha, de modo que a família continuava ali, engajada e esperançosa. Naomi, sobrinha de Hiroaki Torigoe; Hanya, filha de Hiran Pereira; Togo, filho de Thomaz Meirelles; Elisa Prestes Massena, neta de João Massena Melo; todos à espera de uma resposta nova para a velha pergunta: onde estão os desaparecidos?

Um total de quarenta indivíduos compunha a lista dos buscados em setembro de 2020:

Abílio Clemente Filho
Ana Rosa Kucinski Silva
Aylton Adalberto Mortati
Davi Capistrano da Costa
Edgar Aquino Duarte
Eduardo Collier Filho
Elson Costa
Fernando de Santa Cruz Oliveira
Francisco José de Oliveira
Grenaldo Jesus da Silva
Heleny Ferreira Telles Guariba
Hiram de Lima Pereira
Hiroaki Torigoe
Honestino Monteiro Guimarães
Ieda Santos Delgado
Isis Dias de Oliveira
Issami Nakamura Okano
Itair José Veloso
Jayme Amorim de Miranda
João Maria Ximenes
João Massena Melo
Joel Vasconcelos Santos
Jorge Leal Gonçalves Pereira
José Milton Barbosa
José Montenegro de Lima
José Padilha Aguilar
José Roman
Luís Ignácio Maranhão Filho
Luiz Almeida Araújo
Luiz Hirata
Marlene Rachid Papembrok
Olimpio de Carvalho
Orlando da Silva Rosa Bonfim Junior
Paulo César Botelho Massa
Paulo de Tarso Celestino Silva
Paulo Stuart Wright
Thomaz Antonio da Silva Meirelles Neto
Vitor Luís Papandreu
Walter de Souza Ribeiro
Wilson Silva

Uns com mais dedicação, outros com menos, irmãos, filhos e netos desses quarenta desaparecidos mantinham viva a busca por seus familiares. Para alguns, esses tios, pais e avós, desaparecidos há quase 50 anos, não eram mais do que nomes numa lista ou retratos na parede: pessoas que jamais puderam conhecer pessoalmente ou olhar nos olhos. Ainda assim, sentiam que era preciso continuar cobrando: uma explicação oficial para seu desaparecimento, a identificação de seus restos mortais, o direito de sepultá-los. Só então seria possível admitir que a busca havia chegado ao fim.

Até 4 de setembro de 2020, essa busca havia sido concluída, com êxito, para os familiares de apenas cinco pessoas dentre as mais de mil que tiveram seus restos mortais ocultados na vala: Dênis Casemiro, identificado em 1991; Frederico Eduardo Mayr, identificado em 1992; Flávio Carvalho Molina, identificado em 2005; Dimas Antônio Casemiro, identificado em 2018; e Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, também identificado em 2018.

 

Dênis Casemiro (1942-1971), identificado em 1991

Rapaz simples de Votuporanga, no interior de São Paulo, Dênis Casemiro trabalhava como lavrador e como pedreiro, intercalando os períodos de plantio e colheita com as atividades de reforma e construção civil. Começara a frequentar o Sindicato dos Lavradores de Votuporanga em 1963 e fora assíduo nas reuniões e plenárias até que o Sindicato foi fechado e a diretoria cassada após o golpe civil-militar de 1964.

Dênis era filho do lavrador e militante comunista Antônio Casemiro Sobrinho, que chegou a se candidatar a uma vaga na Câmara Municipal pelo PCB, e de Maria dos Anjos Casemiro. Um de seus irmãos, Dimas, quatro anos mais novo, atuava no movimento estudantil em Votuporanga.

Aos 24 anos, em 1967, Dênis mudou-se para a capital do Estado em busca de um trabalho com melhor remuneração. Foi morar com uma irmã em Arthur Alvim, na Zona Leste da cidade, onde continuou trabalhando como pedreiro. Em poucos meses, ainda em 1967, foi admitido como operador de máquinas na fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, e se fixou na cidade. No final daquele ano, conheceu o torneiro mecânico Devanir José de Carvalho e foi apresentado por ele à Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB que havia optado pela luta armada.

As primeiras ações seriam realizadas no começo de 1968 e Dênis estaria nelas. Numa das ocasiões, participara de um assalto a uma agência do Bradesco localizada na Rua Turiassu, em Perdizes, com a função de, com o auxílio de uma arma, fechar o trânsito no quarteirão do banco. Em outra ocasião, repetiu a mesma função num assalto a uma agência da Light, também em São Paulo, conforme depoimento prestado ao Dops.

Dênis apresentou seu irmão Dimas a Devanir e os três militaram juntos na Ala Vermelha por alguns meses, até tomarem caminhos distintos. Ainda em 1969, Devanir envolveu-se na organização do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) junto com Dimas, enquanto Dênis, agora membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), mudou-se para a região do Bico do Papagaio, na divisa entre Pará, Tocantins e Maranhão, e passou a trabalhar num sítio nos arredores de Imperatriz (MA), com a missão de organizar um foco guerrilheiro.

Acredita-se que Dênis, já na clandestinidade, tenha sido capturado e preso naquela região em abril de 1971 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Conduzido ao Dops de São Paulo, foi submetido a interrogatórios e torturas por cerca de um mês.

O também preso político Waldemar Andreus contou em depoimento ter reconhecido Dênis na carceragem do Dops. Também natural de Votuporanga, Waldemar foi surpreendido quando um dos carcereiros retirou o capuz que cobria o rosto de Dênis.

— Êi, eu não te conheço?

Dênis demorou alguns instantes antes de responder.

— Não te conheço – disse, sorrindo.

Na ocasião, o lavrador, pedreiro e operário pensou ter escapado da morte. Chegou a sentir alívio. A retirada do capuz funcionava como uma espécie de oficialização da prisão. Agora, outros presos eram testemunhas de que ele estava ali, naquela cela, sob a tutela do Estado. Certamente, as sessões de torturas acabariam e sua vida seria poupada.

O equívoco não poderia ter sido maior. Dênis foi fuzilado em 18 de maio de 1971.

Para os agentes do Dops, havia chegado a hora de criar uma outra versão para aquela execução, que transformasse a vítima em culpada pela própria morte, como é de praxe ainda hoje nos assassinatos cometidos pela Polícia Militar. Além disso, era preciso sumir com o corpo. E, se possível, contabilizar mais alguns pontos na guerra ideológica, desonrando a imagem do militante. Como? Atribuindo a ele a pecha de delator.

Um relatório foi produzido em 19 de maio daquele ano, redigido e assinado por Fleury. Segundo o delegado, o preso tentara fugir enquanto era transportado do Rio de Janeiro para São Paulo. Perto da entrada para Taubaté (SP), Dênis teria revelado aos agentes que a VPR mantinha um centro de treinamento em Ubatuba, no litoral, e estaria disposto a indicar o caminho. A Veraneio teria seguido pela Rodovia Tamoios, rumo a Ubatuba. “Ao iniciarem a descida da serra, o preso alegou que necessitava com urgência realizar necessidades fisiológicas”, escreveu Fleury no relatório. “Dada a insistência do preso, dei ordem para a viatura estacionar e o mesmo descer à estrada”.

O relato não é preciso em relação ao local nem ao horário.

“Eis que então, em movimento brusco e completamente inesperado, (Dênis) conseguiu apoderar-se da arma do policial que se encontrava próximo. O outro policial, diante do ocorrido, fez um disparo contra o preso, que, deixando a arma cair, mergulhou em um matagal”, prossegue Fleury. Até aqui, a farsa produzida pelos agentes do Dops listava três ações altamente improváveis: a revelação de que haveria um esconderijo da VPR em Ubatuba, a habilidade para sacar um revólver de um policial com as calças arriadas, e a imprudência de deixar a arma cair durante a retirada.

O relato continuava: “Imediatamente perdemos de vista o preso e iniciamos intensiva busca no local, onde foram feitos vários disparos. Porém a busca revelou-se infrutífera e então nos dirigimos à cidade de Ubatuba, que era a localidade mais próxima do local da ocorrência. (…) Pela manhã, por volta de dez horas, este Departamento foi cientificado pela Autoridade de Ubatuba, de que o fugitivo havia sido internado na Santa Casa Local.” Na sequência, ainda de acordo com o insólito relato do delegado Fleury, a equipe chefiada por ele teria seguido em direção à Santa Casa e, no caminho, cruzado acidentalmente com outra viatura, conduzida pelo delegado de polícia de Ubatuba, que trazia o fugitivo com o objetivo de entregá-lo aos agentes do Dops para que fosse levado a outro hospital, em São Paulo, onde poderia ser melhor atendido.

Reacomodado na Veraneio do Dops, Dênis teria sido transportado ao Hospital das Clínicas de São Paulo. Infelizmente, veio a falecer a caminho do hospital.

Recolhido ao IML, seu corpo foi periciado pelos legistas Renato Cappelano e Paulo Augusto de Queiroz Rocha, cúmplices na farsa. Em vez de acusar a morte como decorrente das torturas sofridas nas dependências do Dops, os médicos subscreveram a versão de Fleury e indicaram somente as trajetórias das balas que o atingiram. Nenhuma referência às perfurações que sofrera no pulmão e no fígado, nem às marcas visíveis de tortura em seu rosto. Também nenhuma análise sobre os tiros que o atingiram nas palmas das mãos, evento que, em geral, indica rendição ou eliminação sumária, com a vítima cercada e desarmada. A causa da morte: hemorragia interna traumática.

O corpo de Dênis foi encaminhado para o Cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foi enterrado no dia 19 de maio, na sepultura 82 da rua 14, conforme anotação feita no livro de registros da necrópole. “De cor branca, sexo masculino, com 40 anos presumíveis e todos os demais dados ignorados”, dizia a nota. Aqui, outras duas farsas chamam atenção. Os dados pessoais de Dênis constavam nos relatórios do Dops e no laudo do IML. Enterrá-lo como se esses dados fossem ignorados foi, também, uma forma deliberada de dificultar sua localização. A mesma intenção é observada na opção por atribuir a ele 40 anos de idade. Dênis tinha 28 anos quando foi morto e as equipes do Dops e do IML tinham essa informação. Nenhuma comunicação oficial da morte foi feita pelas autoridades.

A farsa começou a ser desmontada em 1979. Em 22 de agosto, dia da votação do projeto de lei da anistia, Suzana Lisbôa, Iara Xavier e outros familiares de desaparecidos políticos foram a Brasília e denunciaram no Congresso Nacional que o corpo de Dênis Casemiro estava enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus. Ele não era desaparecido coisa nenhuma. Estava morto. E as autoridades sabiam disso, uma vez que seu nome estava no livro de registros do cemitério. A anotação fazia referência ao laudo do IML e citava o nome do médico responsável: Renato Cappelano. Se havia registro no cemitério, administrado pela Prefeitura, e também no IML, vinculado ao governo do Estado, como até agora nenhuma autoridade o declarara morto?

Ao lado do registro feito em seu nome no livro do cemitério, em 19 de maio de 1971, havia ainda uma anotação mais recente, feita com caneta azul: “exumado em 17/11/75”. Nenhuma indicação do local de reinumação. Seu destino tinha sido a vala clandestina.

Os restos mortais de Dênis Casemiro foram os primeiros a serem identificados após a revelação da vala, em setembro de 1990. Badan Palhares, chefe do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, anunciou sua localização no dia 8 de julho de 1991. Era de Dênis a ossada número 47, uma das 1.049 analisadas pela equipe de Palhares.

Em 11 de agosto de 1991, uma urna com seus remanescentes ósseos foi velada na Sé, juntamente com as urnas dos também desaparecidos políticos, agora identificados, Sônia de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana, em cerimônia presidida pelo cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.

No dia seguinte, a urna viajou de avião para São José do Rio Preto e, de lá, seguiu até Votuporanga, aonde chegou à noite. Velados na Câmara Municipal durante a madrugada, seus ossos foram transferidos para a igreja Matriz, onde foi celebrada missa de corpo presente pela manhã. No altar, ao lado do caixão coberto com a bandeira do Brasil, foi colocado um exemplar do livro Brasil: Nunca Mais, de 1985, primeira publicação a elencar nomes de torturadores, métodos de tortura e uma primeira lista de mortos e desaparecidos políticos. Dênis era um desses nomes.

 

Frederico Eduardo Mayr (1948-1972), identificado em 1992

Frederico gostava de praia. Não era raro sair da aula no Colégio Mallet Soares, então na Rua Xavier da Silveira, perto do Corte do Cantagalo, e correr para dar um mergulho ou encontrar os amigos na orla de Copacabana. Cursando o ginasial e, em seguida, o científico, Frederico praticava pesca submarina e era escoteiro. Dos 7 aos 16, foi membro da Tropa Baden Powell de escotismo, com a qual fazia expedições ao Morro Dois Irmãos e à Floresta da Tijuca. Em casa, desenhava e pintava.

Nascido em Timbó, cidade vizinha de Blumenau, no interior de Santa Catarina, Frederico vivia no Rio desde criança, junto com os pais, Carlos Henrique Mayr e Gertrud Mayr. O gosto pelas artes plásticas contribuiu para que Frederico escolhesse a arquitetura como profissão quando chegou a hora de prestar vestibular.

Frederico tinha 18 anos quando foi admitido na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estava no primeiro semestre do curso quando o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto foi alvejado e morto por um policial militar durante um protesto pacífico no restaurante Calabouço, tradicional ponto de encontro de estudantes no centro do Rio, onde o bandejão era subsidiado e mantido pela União Metropolitana dos Estudantes.

O episódio serviu de fagulha para radicalizar o movimento estudantil naquele tumultuado ano de 1968. Não demorou para Frederico se aproximar do movimento. No ano seguinte, foi incorporado à Ação Libertadora Nacional. Uma das primeiras ações armadas de que participou, ainda em 1969, rendeu a ele uma ação na justiça militar. À revelia, ou seja, sem que ele fosse ouvido ou constituísse advogado de defesa, Frederico foi condenado a três anos em regime fechado. Foragido, partiu para Cuba, onde fez treinamento de guerrilha e viveu por quase dois anos, voltando ao Brasil somente no final de 1971, agora em outra organização, uma dissidência da ALN intitulada Movimento de Libertação Popular (Molipo).

Frederico foi baleado em São Paulo, na Avenida Paulista, no dia 23 de fevereiro de 1972, e levado para o DOI-Codi. Seu martírio foi descrito no documento “Aos bispos do Brasil”, elaborado em fevereiro de 1973 pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil e encaminhado à CNBB por ocasião da XIII Assembleia Geral dos Bispos do Brasil. No total, a carta descrevia as execuções, sob tortura, de vinte e oito presos políticos, como Virgílio Gomes da Silva, Chael Charles Schreier, Joaquim Alencar de Seixas e Eduardo Leite, conhecido como Bacuri. Frederico era um deles.

“Foi levado para o DOI/SP, à Rua Tutóia, 721, onde foi intensamente torturado durante todo o dia e toda a noite, submetido a choques elétricos, ‘cadeira do dragão’, ‘pau-de-arara’ e violentos espancamentos, apesar de ferido no abdome”, descrevia o documento, referindo-se ao ferimento provocado pelo tiro que o atingiu no momento da captura. “Durante o período em que estava sendo torturado, foi visto várias vezes. Numa delas, aplicaram-lhe um banho frio no Xadrez 1 do DOI para que se reanimasse. Foi visto, ainda, sentado num banco existente na entrada do prédio onde se localizam as câmaras de tortura, todo ensanguentado e cheio de hematomas, chegando a conversar rapidamente com um preso político.”

A carta endereçada aos bispos listava as pessoas que teriam sido responsáveis por sua morte: o escrivão Gaeta, o policial federal Aderbal Monteiro, um capitão do Exército conhecido por Átila, um policial conhecido por Zé Bonitinho ou Oberdã, um investigador loiro de quem não foi possível obter a identidade. “Todos assistidos diretamente pelo major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra”, acrescentava o documento, “que chegou a propor a Frederico a concessão de sua vida em troca de informações”.

Frederico Mayr foi morto no DOI-Codi de São Paulo, sob tortura, na manhã seguinte à prisão. Sua morte, aos 23 anos, foi consumada com três disparos desferidos contra o peito. Na ocasião, foi deliberada a estratégia de desaparecimento: a partir daquele momento, Frederico passaria a se chamar Eugênio Magalhães Sardinha. Foi esse o nome utilizado na ficha de requisição do exame necroscópico encaminhada pelo Dops ao IML. Curiosamente, no topo da folha fora acrescido o verdadeiro nome, em caixa alta: Frederico Eduardo Mayr.

O laudo, assinado pelos médicos legistas Isaac Abramovitc e Walter Sayeg, descreve sucintamente três perfurações por projétil na região do tórax, duas delas com trajetória descendente, ou seja, os disparos foram feitos de cima para baixo. Eugênio, ou melhor, Frederico teve os dois pulmões perfurados pelas balas. Nenhuma palavra é dita sobre as torturas que desfiguraram o rosto da vítima, como revelam as fotografias produzidas durante o exame e arquivadas no IML. A certidão de óbito foi emitida em nome de Eugênio Magalhães Sardinha no próprio dia 24 de fevereiro. Foi também com o nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha que o corpo de Frederico foi enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus.

Todo o tempo, as autoridades conheciam o nome verdadeiro de Frederico. Ao dar entrada no DOI-Codi, agentes do Dops trataram de elaborar a ficha individual do preso, com o nome verdadeiro e os tradicionais retratos de frente e de perfil, acrescidos de uma plaquinha com o número 1112. A mesma ficha informava corretamente que ele fora preso na véspera, na Avenida Paulista.

Foram divulgadas três versões diferentes e contraditórias para sua morte. Em uma delas, Frederico morrera no dia 23 de fevereiro, a caminho do hospital, depois de ter sido ferido num tiroteio na Avenida Paulista. Em outra, no dia 24, fugindo de um “ponto”, como eram conhecidos os encontros marcados com outros militantes da mesma organização, no Jardim da Glória, bairro vizinho à Vila Mariana.

Finalmente, foi divulgada a versão de que ele teria sido morto num improvável tiroteio com a polícia enquanto ocupava um Fusca ao lado de outros guerrilheiros. Segundo essa versão, os guerrilheiros teriam começado a atirar contra a viatura sem terem sido provocados. Os policiais revidaram e Frederico foi atingido. Ponto. Nenhuma informação sobre os outros ocupantes do carro, se teriam sido presos, abatidos ou se estavam foragidos. Nenhuma explicação de como alguém dentro de um carro pode ser alvejado três vezes no peito, e em trajetória descendente.

Ao detalhar a versão oficial no livro A ditadura escancarada, Elio Gaspari chama o caso de “patético”, “tamanha a onipotência na manipulação da realidade”.

Os restos mortais de Frederico Mayr foram identificados pela equipe chefiada por Badan Palhares, na Unicamp, em junho de 1992. Repetindo o que fizera no ano anterior por ocasião da identificação de Dênis Casemiro, o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, celebrou uma missa na Sé em memória de três desaparecidos recém-identificados por Palhares: Frederico Eduardo Mayr, Emanuel Bezerra dos Santos e Helber José Gomes Goulart. Seus restos mortais puderam ser finalmente trasladados para o Rio de Janeiro e sepultados no jazigo da família em 13 de julho de 1992.

 

Flávio Carvalho Molina (1947-1971), identificado em 2005

Flávio Carvalho Molina tinha 21 anos quando rabiscou os seguintes versos: “Posso não estar presente / Mas por mais que me ausente / Sempre estarei aqui”. De fato, sua ausência foi muito presente ao longo de trinta e quatro anos de busca e indignação.

Quando escreveu o poema Minha presença, Flávio estudava Química na Ilha do Fundão, o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) localizado perto do Aeroporto do Galeão, na Zona Norte do Rio, à beira da Baía de Guanabara.

Flávio era o terceiro numa família de cinco irmãos, filho de Álvaro Andrade Lopes Molina e Maria Helena Carvalho Molina. Carioca, cursara o Ensino Fundamental no tradicional Colégio São Bento e o Ensino Médio na mesma escola do também desaparecido Frederico Mayr: o Colégio Mallet Soares, em Copacabana. Entrou na faculdade em 1968, o ano das grandes rebeliões de estudantes, e foi logo preso pela primeira vez, por participar de uma manifestação estudantil. Fichado, foi liberado no dia seguinte.

Em 1969, membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), trancou a matrícula na faculdade e entrou para a clandestinidade. Procurado, Flávio conseguiu cruzar a fronteira com o Uruguai e partiu para Cuba, onde ficou exilado por quase dois anos, de novembro de 1969 a meados de 1971. Voltou ao Brasil como militante do Molipo, dissidência da ALN.

Flávio foi preso entre os dias 4 e 6 de novembro de 1971, conforme os relatos nem sempre coincidentes das testemunhas. Morreu no dia 7, no DOI-Codi. O exame necroscópico foi realizado pelo IML no mesmo dia 7 de novembro de 1971, pelos médicos-legistas Renato Capellano e José Henrique da Fonseca. Em vez de constar o nome verdadeiro, a certidão de óbito foi emitida em nome de Álvaro Lopes Peralta, codinome adotado por Flávio na clandestinidade. Álvaro Lopes, como o pai, e Peralta, forma pela qual seu padrinho costumava lhe chamar.

“O laudo atesta dois ferimentos pérfuro-contusos, causados por projéteis de arma de fogo na região do tórax, e conclui que a morte foi ocasionada por ‘anemia aguda consecutiva a hemorragia interna traumática’”, diz o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. “Sua certidão de óbito informa que a morte teria ocorrido nas esquinas das ruas Padre Marchetti e Xavier de Almeida, no bairro do Ipiranga, em São Paulo”.

A morte de Flávio Molina permaneceu em sigilo até o dia 29 de agosto de 1972, quando o jornal O Globo a noticiou como consequência de confronto com policiais, sem mais detalhes. Começou ali o périplo dos familiares em busca de informações sobre o paradeiro do rapaz.

Somente em 1978 surgiu uma evidência definitiva: um ofício, assinado por Romeu Tuma, em que o delegado do Dops remetia ao juiz auditor Carlos Augusto Cardoso de Moraes Rego o atestado de óbito de Álvaro Lopes Peralta anexado às fichas de Flávio no Dops. O episódio fez lembrar aquele axioma segundo o qual toda mentira tem perna curta. Ocorre que Álvaro Lopes Peralta estava sendo julgado, à revelia e com esse nome, na auditoria da Marinha, no Rio, por praticar atividades subversivas. O juiz auditor, então, protocolou um ofício pedindo ao Dops tudo o que dissesse respeito ao réu. “Em atendimento aos termos do ofício 1243/78 datado de 12 de julho último, dessa digna auditoria”, respondeu Romeu Tuma, então chefe do Dops, “encaminhamos a Vossa Excelência informações prestadas pela Divisão de Ordem Social desse departamento, bem como certidão de óbito expedida em nome de Álvaro Lopes Peralta, nome falso de Flávio Carvalho Molina”. Estava decifrada a identidade falsa. E também a opção deliberada por ocultá-lo.

O documento escrito por Tuma confirmou a suspeita de que as autoridades sempre souberam que Álvaro Lopes Peralta e Flávio Carvalho Molina eram a mesma pessoa. Se sabiam, por que não divulgaram a morte no dia seguinte nos jornais, como era praxe, e usando o nome verdadeiro? Por que não avisaram sua família? E por que escolheram enterrar com o nome de guerra? Para dificultar sua localização, era evidente.

Normalmente, somente as pessoas que militavam na mesma organização política conheciam os codinomes dos militantes. E essas pessoas, também na clandestinidade, estariam impossibilitadas por motivos óbvios de denunciar um desaparecimento na delegacia ou reclamar um corpo no IML. Por outro lado, apenas em situações excepcionais os familiares conheciam os codinomes, uma medida de segurança adotada nas organizações para não colocar ninguém em risco. Enterrar Flávio com o nome falso era uma forma de evitar que ele fosse encontrado pela família. Outra tática era fazer com que o corpo desaparecesse: a exumação seguida de reinumação numa vala que não constava em nenhum mapa ou documento oficial.

Em 1981, em visita ao Cemitério Dom Bosco, Gilberto Molina, seu irmão quatro anos mais velho, ficou sabendo da existência da vala clandestina. Toninho Eustáquio, o administrador, afirmou que a ossada de Flávio deveria estar ali, misturada com centenas de outras ossadas. Somente em 1990, quando a vala foi revelada, sua família pôde sonhar com a identificação: um sonho longo, sujeito a percalços diversos.

Foi preciso esperar mais quinze anos até que os restos mortais de Flávio Carvalho Molina fossem identificados, por meio de estudo de compatibilidade genética, em um laboratório particular de São Paulo, o Genomic. Até então, tinham sido malsucedidas todas as tentativas, primeiramente na Unicamp e em seguida na USP. Também resultaram inconclusivos os testes feitos com material genético da família em outros laboratórios, inclusive fora do país.

Em 10 de outubro de 2005, uma urna com os remanescentes ósseos de Flávio Molina foi entregue a Gilberto na sede da Procuradoria da República em São Paulo, então na Rua Peixoto Gomide com a Avenida Paulista. No dia seguinte, a urna foi enterrada no Cemitério São João Batista, no Rio, em cerimônia com a família. A mãe de Flávio, Maria Helena Molina, havia perdido a visão. Coube ao filho Gilberto narrar em seus ouvidos cada etapa da despedida.

 

Dimas Antônio Casemiro (1946-1971), identificado em 2018

Quatro anos mais novo que Dênis Casemiro, Dimas teve seus remanescentes ósseos identificados em 2018, vinte e sete anos após a identificação dos restos mortais de seu irmão.

Nascido em Votuporanga (SP), filho de Antônio Casemiro Sobrinho e Maria dos Anjos Casemiro, Dimas completou 18 anos três semanas antes do golpe de 1964. Atuou no movimento estudantil em sua cidade e se aproximou do socialismo por influência do pai, que militava no PCB. Em Votuporanga, trabalhou como corretor de seguros e como tipógrafo.

Em 1969, Dimas se mudou para a capital junto com a esposa, Maria Helena Zanini, e o filho de 2 anos, Fabiano. Em São Paulo, não demorou a ser recrutado para a Ala Vermelha, organização em que já militava seu irmão.

Ainda em 1969, a Ala Vermelha começou a se desmantelar. Muitos de seus membros migraram para outras organizações ou criaram dissidências. Dênis foi para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e se mandou para a região Norte do país, incumbido de formar um foco guerrilheiro. Dimas e o amigo Devanir Carvalho, metalúrgico do ABC que tinha sido apresentado a ele por Dênis, estavam entre os trabalhadores que organizaram o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).

No MRT, Devanir virou “Henrique” e Dimas virou “Rei”. A razão é prosaica. Ao manusear os panfletos da organização com a destreza de quem tinha sido tipógrafo e mantivera uma gráfica antes de entrar na clandestinidade, Dimas deixou “Henrique” boquiaberto. “Esse cara é o rei do papel”, comentara o amigo. Pronto, virou apelido.

Do núcleo paulistano do MRT faziam parte, entre outros, o mecânico Joaquim Alencar de Seixas e seu filho Ivan, então com 15 anos. Já em março de 1970, o MRT se associou à VPR para uma ação ousada que fora decidida às pressas: sequestrar o cônsul do Japão, Nobuo Okushi, e exigir a libertação de Shizuo Ozawa, o “Mario Japa”, um militante da VPR que estava sendo muito torturado para que delatasse a localização do centro de treinamento comandado por Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. Como resgate, foi exigida a libertação do Mario Japa e de outros quatro presos políticos.

“Henrique”, do MRT, participou do sequestro ao lado de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, da VPR, entre outros militantes. A ação foi bem-sucedida e os cinco companheiros foram libertados, inclusive o “Mario Japa”, que motivara o sequestro.

Nos meses seguintes, no entanto, seria cobrada a fatura: os sequestradores se tornaram os principais alvos dos agentes do Dops, a ponto de oito deles terem sido presos e cinco executados, entre eles “Bacuri” e “Henrique”.

“Henrique” foi preso no dia 5 de abril de 1971 e torturado até a morte, no dia 7. A réplica dos guerrilheiros veio dez dias depois em forma de radicalização. Em 15 de abril, com o apoio de militantes da ALN, dirigentes do MRT executaram Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz e diretor da Fiesp, notório financiador da Operação Bandeirantes (Oban), precursora do DOI-Codi, e entusiasta das sessões de tortura que costumava acompanhar pessoalmente no número 921 da Rua Tutóia. Aquele seria o começo da queda de Dimas.

A repressão deflagrou uma operação de guerra com a missão de assassinar o maior número possível de militantes do MRT e da ALN como retaliação pela morte de seu grande financiador. Nos dias 16 e 17 de abril, foram presos e assassinados Joaquim Alencar de Seixas e Dimas Casemiro, ambos acusados de matar Boilesen. Suas famílias foram igualmente presas. As esposas e os filhos foram levados para o DOI-Codi: Pedrina, mulher de Devanir, Maria Helena, mulher de Dimas, e Fanny, mulher de Joaquim, bem como as duas filhas de Joaquim, os dois filhos de Devanir e o filho único de Dimas. As crianças foram liberadas em seguida e puderam se hospedar na casa de parentes. Ieda e Iara Seixas, já maiores de idade, continuaram presas, assim como Ivan.

Na manhã seguinte, dia 17, as duas foram obrigadas a entrar numa Veraneio e foram levadas para o bairro da Saúde. Os agentes exigiam que elas indicassem o endereço de Dimas. Elas se recusavam a revelar. Afirmavam que tinham entrado de olhos vendados na casa do “Rei” e que tudo o que sabiam é que deveria ser perto do Bosque da Saúde, local em que haviam trocado de carro e coberto os olhos para a última etapa do percurso. Mais tarde, Ieda entenderia que era tudo parte de uma grande armação. Gilberto Faria Lima, um agente duplo de codinome Zorro, infiltrado no MRT, já havia revelado o endereço aos torturadores.

Ieda contou em depoimento à Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, em 2013, que permaneceu no carro, detida, enquanto os agentes cercaram a casa. Dimas saiu pela porta correndo e atirava com um revólver contra seus algozes enquanto corria. Os agentes revidaram com tiros de fuzil. Acertaram o alvo pelas costas. Uma, duas, três, quatro vezes. Na fuga, Dimas tropeçou e caiu de cara num monte de cascalho, o rosto agora arrebentado por conta do impacto, as costas ensopadas de sangue.

Segundo o documento para requisição de exame de necropsia, Dimas morreu durante uma troca de tiros com agentes da repressão no dia 17 de abril, na via pública, no bairro da Água Funda, exatamente conforme o testemunho de Ieda. Sua morte foi divulgada nos jornais no dia 18 e, no dia 19, foi produzido o laudo do exame necroscópico, assinado pelo médico-legista João Pagenotto. O documento registrou quatro ferimentos causados por arma de fogo, no pescoço, braço, mão e coxa. Segundo o mesmo laudo, o corpo de Dimas teria sido sepultado no cemitério de Perus às 10 horas do dia 20.

O enterro de Dimas foi anotado no livro de registros do Cemitério Dom Bosco. Seu corpo foi inumado na sepultura número 35 da rua 12 no dia 20 de abril de 1971. Uma outra anotação foi feita na mesma página, ao lado direito: “Exumado em 2/9/1975”. Nenhuma informação sobre o destino dos restos mortais.

Pouco tempo após a morte de Dimas, sua mulher e seu filho voltaram a morar em Votuporanga. A casa em que eles moravam em São Paulo fora invadida e saqueada pelos agentes nos dias que se seguiram à execução do militante do MRT. Até que Maria Helena fosse solta, a diversão dos policiais era ir ao DOI-Codi usando roupas e o relógio de Dimas para que a jovem viúva reparasse e sentisse mais um pouco da crueldade dos algozes de seu marido. Seu crime? Ser casada com um “terrorista”.

Maria Helena morreu de câncer no final dos anos 1980, antes que a vala de Perus fosse revelada. Não pôde testemunhar a identificação da ossada de seu cunhado, Dênis, em 1991, nem a de seu marido, Dimas, em 2018. Naquele ano, a identificação dos restos mortais de Dimas Casemiro foi comunicada a seu filho Fabiano, em 19 de fevereiro. Foi preciso esperar alguns meses até a liberação do material e a emissão de uma nova certidão de óbito.

No dia 30 de agosto de 2018, a urna com os remanescentes ósseos de Dimas Antonio Casemiro pôde ser sepultada no cemitério de Votuporanga.

 

Aluísio Palhano Pedreira Ferreira (1922-1971), identificado em 2018

Aluísio Palhano já não era jovem quando foi preso e assassinado pelo sistema repressivo. Nascido em 1922, filho de João Alves Pedreira Ferreira e Henise Palhano Pedreira Ferreira, esse militante da Vanguarda Popular Revolucionária tinha 48 anos quando desapareceu, em 20 de maio de 1971.

Aluísio também não era de família pobre nem tinha origem humilde, como eram os casos de Dênis e Dimas Casemiro. Filho de um fazendeiro de Pirajuí, no interior de São Paulo, cursou o primário no colégio Mackenzie, um dos mais tradicionais de São Paulo, e o ginásio no colégio Salesiano de Niterói (RJ), para onde se mudou aos 10 anos, após a morte do pai.

Tinha 21 anos quando foi aprovado num concurso para trabalhar no Banco do Brasil, em 1943. No mesmo ano, matriculou-se no curso de direito da Universidade Federal Fluminense, onde se bacharelou em 1948. Junto com a carreira de bancário e de advogado, Aluísio fez carreira também como sindicalista. Nos anos 1950, foi por dois mandatos presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. Em seguida, ocupou também a presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec) e, um ano depois, tornou-se presidente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), uma recém-fundada organização intersindical de abrangência nacional.

O Ato Institucional número 1, de 1964, cassou seu mandato e seus direitos políticos. Aluísio também foi exonerado do Banco do Brasil. Asilou-se no México entre julho e dezembro e transferiu-se para Cuba no ano seguinte. Ali, trabalhou com colheita de cana e, principalmente, foi locutor na Rádio Havana.

Em 1970, voltou ao Brasil como clandestino e foi atuar na Vanguarda Popular Revolucionária. Um de seus principais contatos na organização era justamente o agente policial infiltrado José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que muito provavelmente o entregou aos órgãos de segurança.

Na carceragem do DOI-Codi, Aluísio contou ao também preso político Altino Rodrigues Dantas Júnior, ex-presidente da UNE, que fora sequestrado na rua, em São Paulo, no dia 9 de maio de 1971, e levado no dia seguinte para o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), no Rio. No dia 16 de maio, foi trazido de volta ao DOI-Codi de São Paulo, onde foi torturado. Nesse intervalo, teria passado também pelo centro de tortura conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), provavelmente no dia 13, conforme testemunho da ex-presa política Inês Etiénne Romeu.

Aluísio teria sido torturado até a morte na noite de 20 de maio conforme relato enviado por Altino em carta ao general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, então ministro do Supremo Tribunal Militar, em agosto de 1978. “Na noite do dia 20 para o dia 21 daquele mês de maio, por volta das 23 horas, ouvi quando o retiraram da cela contígua à minha e o conduziram para a sala de torturas”, escreveu. “A sessão de tortura se prolongou até alta madrugada do dia 21, provavelmente, 2 ou 4 horas da manhã, momento em que se fez silêncio”.

“Alguns minutos depois, fui conduzido a essa mesma sala de torturas, que estava suja de sangue, mais que de costume”, continua a carta de Altino. “Perante vários torturadores, particularmente excitados naqueles dias, ouvi de um deles, conhecido pelo codinome de JC (Dirceu Gravina), a seguinte afirmação: ‘Acabamos de matar o seu amigo; agora é a sua vez’”.

Morto no DOI-Codi, Aluísio foi dado como desaparecido. Era casado com Leda Pimenta Pedreira Ferreira, com quem teve dois filhos.

Não foi encontrado qualquer registro de entrada no Cemitério Dom Bosco em nome de Aluísio Palhano. O ex-sindicalista tornou-se um dos procurados de Perus em razão da data e do local da sua morte, uma vez que praticamente todos os outros militantes políticos mortos no DOI-Codi em 1971 tiveram como destino aquela necrópole.

Em 2005, uma sobrinha-neta de Aluísio, Clarisse Mantuano, lançou um curta-metragem sobre o tio-avô. Em “Um companheiro”, a trajetória de Aluísio e um breve perfil biográfico dele são narrados por sua cunhada, Branca Eloysa. Segundo ela, a família custou a se convencer que aquilo havia acontecido. Até 1976, quando saíram as primeiras listas de mortos e desaparecidos, Branca acreditava que ele estava clandestino ou exilado e que iria voltar a qualquer momento.

No dia 3 de dezembro de 2018, a ossada de Aluísio Palhano foi identificada no laboratório da Comissão Internacional para Pessoas Desaparecidas (ICMP), em Sarajevo, na Bósnia. O DNA retirado de um fragmento de seu esqueleto era compatível com o DNA de sua filha Márcia.

Quando a abertura da vala de Perus completou trinta anos, em setembro de 2020, os restos mortais de Aluísio Palhano ainda não tinham sido sepultados pela família. Optou-se por esperar a conclusão dos trabalhos de perícia no CAAF-Unifesp na esperança de localizar o crânio de Aluísio, não encontrado junto com os demais ossos.

 

História em construção

Este capítulo buscou consolidar informações sobre a vida, a morte e a luta por memória e justiça empreendida pelos familiares dos cinco desaparecidos identificados até setembro de 2020 dentre as mais de mil ossadas exumadas da vala clandestina de Perus.

Essas informações foram obtidas por meio de entrevistas feitas pelo autor com amigos e familiares, pesquisa realizada em jornais de época e, principalmente, a partir da leitura de livros, artigos, dossiês e relatórios elaborados ao longo desses trinta anos.

Neste sentido, são dignos de nota o Dossiê mortos e desaparecidos políticos no Brasil 1964-1985, organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e publicado em 1995; o livro Direito à memória e à verdade, lançado em 2007 pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos; o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em especial o volume III, intitulado Mortos e desaparecidos políticos; o Memorial mortos e desaparecidos publicado no portal Memórias da Ditadura; transcrições de depoimentos e audiências públicas realizadas pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva; bem como verbetes elaborados pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

 

Leia no último capítulo: Quando extermínio, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres permanecem na democracia. A necropolítica. Os riscos da concessão dos cemitérios públicos. O Brasil das milícias. Onde está o Amarildo?

Foto: Danilo Ramos/Rede Brasil Atual

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

Ivan Lins e Vitor Martins, em “Aos nossos filhos”

 

— Os comunistas estão chegando.

— Eu vi. Que absurdo.

O burburinho foi se alastrando como rastilho de pólvora no mausoléu da Polícia Militar. Uma afronta. Na mesma hora da cerimônia em homenagem aos policiais mortos no cumprimento do dever. Só podia ser provocação.

O encontro no Cemitério do Araçá no Dia de Finados era uma tradição de décadas. Naquele sábado, 2 de novembro de 2013, não haveria de ser diferente. Cadeiras de plástico dispostas em fileiras nas duas laterais da praça cívica acomodavam autoridades da corporação, devidamente paramentadas com suas insígnias e medalhas. E também representantes do Poder Legislativo e da Secretaria de Segurança Pública do Estado.

Empossado em 1º de janeiro, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, fez-se representar pelo superintendente do Serviço Funerário, Sérgio Trani, que ouviu o bochicho como se não estivesse ali. Que comunistas seriam esses? Onde eles estariam?

Cerimônia bonita, com apresentação do coral da PM, flores e orações. O inspirador conjunto escultórico com dezesseis estátuas em bronze esculpidas por Vilmo Rosada e distribuídas pela praça intensificava o caráter solene da cerimônia, marcada para as 9 horas da manhã. Logo atrás das cadeiras, os dois ossários verticais somavam mais de duas centenas de nichos reservados aos “heróis da PM”, como são chamados por seus pares os policiais mortos em serviço. Descendo as escadas, três andares igualmente destinados às sepulturas de policiais militares completam o imponente mausoléu.

— Queria saber o que esses comunistas estão fazendo num cemitério; não são todos ateus? — provocou um parlamentar que fizera carreira na polícia.

— E você viu que tem até terrorista aí no meio? — comentou outro.

— Os terroristas de sempre.

A poucos metros dali, junto ao ossário geral, os “comunistas” davam início à sua própria celebração: um ato ecumênico pelo dever e pelo direito de sepultar os mortos, conforme impresso no cartaz de divulgação. Ativistas de direitos humanos, ex-presos políticos, jornalistas, artistas e parlamentares de esquerda reuniam-se para homenagear os mortos e desaparecidos da ditadura militar.

O encontro, promovido anualmente no Dia de Finados, cada edição num cemitério diferente, era uma iniciativa conjunta de uma série de organizações, entre as quais a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça, com apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, do Conselho Latino Americano de Igrejas e do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, além de todas as Comissões da Verdade em atividade naquele momento em São Paulo: a Nacional, a da Assembleia Legislativa (Alesp) e a da Câmara Municipal. No ano anterior, fizeram no cemitério de Vila Formosa. Agora, fariam no Araçá, onde as ossadas de Perus tinham sido mais uma vez abandonadas.

Também no Araçá, quase um século antes, duas centenas de covas clandestinas teriam sido abertas, nas noites de 15 e 16 de julho de 1917, para enterrar, às pressas e sem avisar as famílias, trabalhadores em greve assassinados pela repressão. São Paulo fervia na primeira greve geral da história do Brasil. A morte do jovem operário José Martinez, pela cavalaria, no início do mês, deflagrara a ampliação do movimento grevista e sua radicalização, como narrou em 2017, ano do centenário, o jornalista José Luiz Del Roio no livro A Greve de 1917. Policiais também foram mortos pelos manifestantes, que organizaram emboscadas, e estão homenageados nas esculturas do mausoléu. Não faltavam motivos para fazer no Araça o encontro daquele ano.

Um dos “terroristas de sempre” que chegou ao Araçá para participar do ato foi o deputado estadual Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade Rubens Paiva, na Alesp. Com seu apoio, por meio de uma emenda parlamentar, os artistas Celso Sim e Anna Ferrari haviam acabado de montar uma instalação ali mesmo no ossário geral, cujos nichos abrigavam centenas de sacos com esqueletos sob a custódia do IML e, desde 2001, as agora 1.046 ossadas de Perus – uma vez que três das 1.049 encontradas na vala já haviam sido identificadas, em 1991, 1992 e 2005. A inauguração da obra estava agendada para o dia seguinte, 3 de novembro, um domingo, como uma das atrações da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo.

Celso e Anna haviam corrido durante a semana para deixar tudo pronto antes do feriado. Uma nota publicada na imprensa havia noticiado que a inauguração seria no próprio dia 2, o que motivou os artistas a improvisarem duas sessões extraordinárias naquela tarde, logo após o ato ecumênico. Uma espécie de pré-estreia.

Por volta das 10 horas, Adriano Diogo conversava com Celso Sim quando familiares de mortos e desaparecidos começaram a chegar. Celso explicava que o ossário não comportaria o ato ecumênico porque havia um limite de vinte pessoas por vez no espaço. Mas o labirinto de paredes coloridas construído na área externa poderia ser utilizado. O gerador de energia, os spots de luz, o equipamento de som, todo o resto estava à disposição dos organizadores do ato inter-religioso.

Aos 73 anos, Anivaldo Padilha, líder da igreja metodista preso na Oban em 1970 e exilado de 1971 a 1984, foi um dos primeiros a chegar. Maria Rita Kehl, psicanalista e membro da Comissão Nacional da Verdade, rondava a instalação, curiosa para saber como tinha ficado. Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo desde 2007, também compareceu, assim como religiosos do candomblé, da umbanda e de outras igrejas cristãs. Passava das 10h30 quando o Coral Luther King, comandado pelo maestro Martinho Lutero, começou a se apresentar. Atores leram trechos da peça Antígona, de Sófocles.

Por volta das 11h30, o ato em memória dos mortos e desaparecidos políticos ainda não havia terminado quando os policiais militares, o chefe da corporação e alguns parlamentares da “bancada da bala” começaram a deixar o mausoléu. Antes de partir, alguns deles resolveram descer até o ossário geral para ver de perto a balbúrdia dos “comunistas”. Somente agora, notavam a instalação de Celso e Anna. Aparentemente, os artistas haviam invadido o ossário geral e colocado caixas de som, projetores, spots de luz. Notaram, também, que a instalação fazia apologia da ocupação artística de cemitérios e crematórios. Uma profanação! Quem tinha autorizado? Desta vez o novo prefeito tinha ido longe demais.

O pior não era isso, notaram. Junto à entrada do ossário, os artistas haviam fixado um totem de mármore em homenagem aos “terroristas” mortos durante a “revolução” de 1964. Como se não bastasse, haviam fixado também um painel com um texto no qual outro “comunista”, Ivan Seixas, discorria sobre a vala de Perus, sua origem e suas implicações na perpetuação da violência de Estado.

No início da tarde, a aglomeração em torno do ossário geral havia se dispersado. Milhares de famílias de diversos bairros de São Paulo e também do interior garantiram o movimento intenso e a profusão de flores sobre lápides e jazigos até o fechamento dos portões, às 19h.

Naquela madrugada, a instalação de Celso Sim e Anna Ferrari foi depredada.

— Vem pra cá imediatamente — Wilton Assis, o administrador, avisou Celso por telefone por volta das 7h30. — Aconteceu um crime aqui no Araçá. Destruíram tua obra. Tem um monte de ossos espalhados pelo cemitério.

Quando Celso chegou, meia hora depois, os funcionários corriam para guardar os ossos rapidamente e, assim, evitar que os frequentadores os vissem, principalmente as crianças. Era domingo, o dia mais movimentado da semana, e logo após Finados. Em pouco tempo, o cemitério ficaria lotado.

A pressa em resolver a situação comprometeu a qualidade da perícia. A equipe da Polícia Civil chegou apenas depois de Celso, quando os sepultadores já tinham devolvido os ossos nos sacos e nos nichos – sabe-se lá se nos sacos e nos nichos corretos. As ossadas de Perus, verificou-se depois, não tinham sido afetadas pela ação. Os vândalos haviam arrombado as tampas dos nichos mais próximos à entrada do ossário e não chegaram a mexer nas mais de sessenta gavetas ocupadas pelo material proveniente da vala, armazenadas mais ao fundo. Essas, pelo menos, continuavam em seus devidos lugares.

Para Celso Sim e para o administrador do cemitério, não havia dúvidas de que o vandalismo tivera motivação política. Aquele atentado, feito em repúdio à obra e ao ato ecumênico da véspera, não era a primeira manifestação de viés conservador registrado no Araçá naquele semestre. Um mês antes, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania havia fixado lambe-lambes no muro do cemitério, de frente para a Avenida Doutor Arnaldo, com fotografias dos protestos ocorridos na cidade meses antes, nas chamadas jornadas de junho. A censura foi imediata. Um ou dois dias depois, as imagens amanheceram rasgadas e pichadas. “Viva PM!”, dizia uma das pichações.

O vandalismo não se restringiu ao vilipêndio das ossadas. Estátuas foram derrubadas. Dentro do ossário geral, ora convertido em instalação artística, dois dos cinco monolitos de mármore utilizados como tela de projeção na obra de Celso Sim e Anna Ferrari tinham sido derrubados e despedaçados, cada um pesando mais de meia tonelada.

Ao saber do atentado, os membros da Comissão Nacional da Verdade telefonaram para Celso e disseram a ele que gostariam de ir a São Paulo para a inauguração. Por isso, pediam que ele adiasse a vernissage por uma semana.

— Em três dias eu resolvo e já quero inaugurar — Celso respondeu.

Ele e Anna optaram por expor o ato de violência em vez de disfarçá-lo. Ajustaram os equipamentos para que os vídeos fossem projetados nos fragmentos de mármore espalhados pelo chão. Representantes da CNV conseguiram se organizar e chegaram a tempo de prestigiar a abertura oficial, entre eles o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. A instalação, intitulada Penetrável Genet, havia se transformado em gesto de resistência, um segundo ato em memória dos mortos e desaparecidos políticos promovido na mesma semana e no mesmo local. A repercussão era muito maior do que a prevista antes da depredação. No dia 4, uma imagem do casal de criadores diante de um monolito despedaçado estampava a primeira página da Folha de S.Paulo.

O inquérito policial aberto para apurar aquela ocorrência foi concluído pouco tempo depois sem que nenhum suspeito fosse citado – e sem que nenhuma das pessoas presentes à cerimônia no mausoléu da PM fosse interrogada. Para os “comunistas”, havia restado uma certeza: aquele local não era adequado para guardar as ossadas de Perus.

***

Meses antes do episódio no Araçá, em abril daquele ano, o recém-empossado prefeito Fernando Haddad havia se reunido com os principais coletivos dedicados ao tema da memória e da verdade, entre eles a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. A intenção do prefeito, ainda no primeiro semestre de mandato, era fazer uma consulta sobre as principais reivindicações nessa área. Ele havia acabado de criar a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, inédita em São Paulo, e vinha definindo com o secretário Rogério Sottili as principais atribuições e objetivos da pasta.

Memória e verdade ainda não constituíam uma coordenação específica dentro da Secretaria, como aconteceria em seguida, sob a condução da até então chefe de gabinete de Sottili, Carla Borges, que já havia trabalhado com ele em Brasília no período em que Sottili foi secretário-executivo da Secretaria Geral da Presidência. Convidado em dezembro para inaugurar uma secretaria municipal de direitos humanos, Sottili mudou-se para São Paulo cheio de ideias para a pasta. Herdara da campanha eleitoral o compromisso de criar uma Comissão da Verdade da Prefeitura, mas ainda não tinha clareza sobre outros programas e políticas públicas que deveriam ser elaboradas no âmbito do direito à memória e à verdade. A reunião de abril tinha essa função.

Naquela reunião, foram propostas medidas diversas, como a criação de centros de memória e a alteração dos nomes de ruas que, ainda, homenageavam torturadores e outros violadores de direitos, como Sérgio Paranhos Fleury, notório torturador e chefe do Dops, eternizado nas placas de sinalização de uma rua na Vila Leopoldina. Entretanto, ficara evidente que havia uma demanda maior que todas as outras: retomar as análises das ossadas de Perus e encontrar um destino para elas.

Lideranças dos coletivos por memória, verdade e justiça trouxeram a denúncia da Equipe Argentina de Antropologia Forense de que o ossário geral do Araçá não era um local adequado para armazenar aquele material. Havia infiltrações, problemas de temperatura e de umidade, sinais de fungos e nenhum cuidado com a preservação arqueológica. Não apenas os trabalhos estavam estagnados, uma constante na história das ossadas, como havia o perigo de comprometer sua integridade física e a viabilidade das identificações. As intempéries poderiam destruir as moléculas necessárias para a análise genética.

Agora, havia uma diferença importante em relação a 1990, quando a prefeita Luiza Erundina assumira para si a responsabilidade por firmar convênios e monitorar os trabalhos com as ossadas. Desde 1995, quando foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) – primeiramente vinculada ao Ministério da Justiça e, a partir dos anos 2000, à Secretaria Especial de Direitos Humanos – a responsabilidade por investigar mortos e desaparecidos, incluindo os trabalhos com as ossadas suspeitas de pertencer a perseguidos políticos, era da comissão. Em razão disso, não seria possível retomar os trabalhos sem o protagonismo do Governo Federal.

Também não seria possível proceder às análises sem recorrer a alguma estrutura policial, fosse o IML ou a Polícia Científica. Essas instituições exerciam uma espécie de oligopólio da medicina legal no país. Nenhuma análise em ossos humanos seria reconhecida pelo Estado sem a assinatura de algum perito de uma dessas instituições, o que fazia com que os familiares torcessem o nariz.

As tratativas começaram ali mesmo. Uma pequena reforma no ossário seria iniciada imediatamente, com recursos do Serviço Funerário, para conter as infiltrações. Sottili, em nome da Prefeitura, aproveitaria uma viagem a Brasília para conversar sobre as ossadas com Maria do Rosário, gaúcha de Veranópolis como ele e titular da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Era preciso aproveitar o que parecia uma importante conjunção astral: pela primeira vez após muitos anos, Governo Federal e Governo Municipal eram administrados por políticos do mesmo partido e sensíveis à luta por memória, verdade e justiça. O Brasil tinha uma ex-presa política na Presidência da República. Os astros estavam alinhados, e esse alinhamento não duraria para sempre.

A sensação de urgência aumentaria após o atentado no Dia de Finados.

***

— É preciso tirar esses ossos daqui.

Rogério Sottili estava especialmente agitado após o vandalismo no cemitério. Os telefonemas se sucediam num ritmo impressionante. De um lado, familiares de mortos e desaparecidos, repletos de razão, exigiam alguma providência.

— Vocês vão deixar os ossos serem roubados ou destruídos?

Vocês, no caso, eram os servidores da Prefeitura. Na condição de secretário municipal, Sottili personificava as expectativas em relação às ossadas. Não apenas ele, toda a equipe de direito à memória e verdade, já constituída como coordenação, e também os responsáveis pelo Serviço Funerário e pela Secretaria de Serviços, à qual os cemitérios eram vinculados. A pressão para que a solução fosse rápida superava a pressão para que fosse a melhor possível. Havia urgência. E muita.

— Precisa resolver isso logo — Sottili conversou com Maria do Rosário a fim de colocá-la a par dos acontecimentos recentes, ciente de que a CEMDP deveria liderar a busca de uma saída.

O atentado ao ossário ainda repercutia na imprensa quando a ministra tomou a iniciativa de convocar para janeiro de 2014 dois dias de reuniões sobre as ossadas. Os encontros seriam feitos no escritório da Presidência da República em São Paulo.

O gabinete regional da Presidência ocupava todo o terceiro andar do edifício do Banco do Brasil, na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. Foram convidados os membros da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade, além de familiares de mortos e desaparecidos e a equipe da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A Presidência também providenciou passagens para os coordenadores da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) e da Equipe Peruana de Antropologia Forense (EPAF), que se somariam imediatamente aos trabalhos, primeiro como consultores e, em seguida, como membros do comitê científico.

Coordenadora de Direito à Memória e à Verdade na Prefeitura, Carla Borges ficou surpresa ao chegar à reunião com alguma antecedência e descobrir que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência tinha convidado a superintendente da Polícia Técnico-Científica de São Paulo, Norma Bonaccorso.

Norma era a gestora à frente do IML. E também uma das pessoas citadas na ação civil pública movida em 2008 pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão. Na ocasião, fora processada por não ter feito o uso adequado do equipamento adquirido pela Secretaria de Segurança Pública para realizar a análise de DNA das ossadas de Perus, uma omissão que contribuiu para prolongar ainda mais a espera dos familiares.

Carla anteviu a reação dos familiares e ligou para o chefe, que estava a caminho:

— Rogério, vai ter uma pessoa do IML na reunião — avisou. — Os familiares vão cair matando em cima da gente.

Carla e Rogério tinham a sensação permanente de caminhar na corda bamba. E sem sombrinha. Um gesto, um comentário mal colocado, uma proposta que fosse mal recebida por aqueles que se dedicavam havia três décadas à busca pelos desaparecidos poderia fazer com que todo o empenho na retomada das análises desmoronasse.

Desta vez, a superintendente se mostrou especialmente solícita. Afirmou que o IML da Rua Teodoro Sampaio estava à disposição para receber as ossadas e se encarregar dos trabalhos de perícia.

— Estamos num outro momento. Vamos reescrever essa história — prometeu.

A proposta recebeu o apoio de Eugênia Gonzaga. Na concepção da procuradora da República, a mesma que conseguira judicializar a questão por meio das ações civis públicas movidas cinco anos antes, não haveria como fugir do IML. Era melhor mandar as ossadas para lá do que esperar que elas fossem destruídas por fungos e infiltrações.

Sottili concordava. Não tinha escapatória. Primeiro, por implicações legais, uma vez que somente o IML poderia ser legalmente responsável pelas análises e pelas eventuais identificações que viessem a acontecer. Segundo, em razão da ausência de alternativa. Quem mais estaria apto a desenvolver esse trabalho no Brasil?

Adriano Diogo, por sua vez, arregalou os olhos. Que proposta era aquela? O que Amelinha ou Ivan achavam disso? O que Crimeia diria?

— Já vi esse filme — Amelinha reagiu. — De novo essa história de mandar pro IML.

Não havia solução fácil. Quinze anos depois, os familiares viam-se novamente envolvidos nas mesmas discussões travadas em 1998 e mediadas pelo então secretário estadual de Justiça, Belisário dos Santos Jr., e pelo jovem procurador da República dos Direitos do Cidadão, Marlon Weichert, que parecia cair de paraquedas num tema que desconhecia por completo. Agora, como naquela época, o IML parecia monopolizar as análises periciais em ossos humanos. Tanto Nelson Massini e Badan Palhares, da Unicamp, quanto Daniel Muñoz, da USP, só puderam coordenar os trabalhos com as ossadas nos anos 1990 e 2000 porque conciliavam a atividade universitária com o cargo de perito do IML.

— A sugestão de levar as ossadas para o IML não tem o apoio dos familiares — Adriano comentou. Era melhor não perder tempo nessa proposta.

Aventou-se como alternativa a hipótese de abrigar as ossadas numa universidade, um local de ciência, e montar um convênio para que um perito do IML pudesse executar ali os trabalhos, um formato parecido com o que fora adotado no Departamento de Medicina Legal da Unicamp e no Instituto Oscar Freire, da USP. Deixar as ossadas sob a tutela do IML não parecia viável.

— Assim é bem melhor — Amelinha concordou. — Mas que universidade?

— Vocês estão loucos de mandar de novo para a universidade? — agora era Crimeia quem falava. — Não basta a forma como fomos tratados na Unicamp e na USP?

Pronto. Estaca zero. Um olhava pela janela, outro tamborilava no tampo da mesa. A construção de uma solução conjunta parecia cada vez mais distante. Todos ali pareciam ter razão. Todos argumentos eram razoáveis. Nada servia, nem o IML nem as universidades.

— E a Unifesp? — Ivan lembrou que a Universidade Federal de São Paulo havia criado sua própria Comissão da Verdade em meados do ano anterior, pouco antes do atentado ao Araçá. Havia, ali, uma nova gestão na reitoria e também uma equipe dedicada. Edson Teles, filho de Amelinha, era professor no campus de Guarulhos.

Rogério comentou que já havia feito uma primeira consulta à reitora, Soraya Smaili, quando a recebera em seu gabinete, juntamente com a professora Ana Nemi, integrante da Comissão da Verdade da Unifesp, em dezembro. A reitora fora convidada para conversar sobre outros temas, relacionados à coordenação de políticas para idosos, com a coordenadora Guiomar Lopes e o secretário. Sottili aproveitara para introduzir o tema das ossadas. Soraya ficara entusiasmada com a possibilidade de contribuir com os trabalhos, mas se mostrara reticente diante da hipótese de assumir a guarda do material ou a responsabilidade pela perícia.

— Acabamos de assumir a reitoria — Soraya declinou. — A Unifesp vem de um processo difícil, após oito meses de greve, e temos um monte de coisa para ajustar para colocar a casa em ordem.

Ainda segundo Soraya, professores vinculados à Comissão da Verdade da Unifesp haviam viajado a Buenos Aires, conhecido as avós da Praça de Maio, grupo de mães de desaparecidos políticos mortos durante a ditadura argentina, e visitado a Equipe Argentina de Antropologia Forense, a EAAF, especializada na análise de ossadas do período da repressão. Desde então, havia uma ideia pouco concreta de criar algo parecido na Unifesp. No entanto, não havia na Unifesp um espaço adequado para aquela investigação nem docentes especialistas no assunto. Em resumo: seria impossível.

Mesmo assim, Sottili concluiu seu relato na reunião de janeiro comentando que nada impedia que alguém procurasse novamente a reitora.

— Alguém aqui tem relação pessoal com a Soraya?

Ninguém tinha.

Embora pouco se tenha avançado naquela reunião, os encaminhamentos foram definidos. Carla Borges faria uma visita técnica ao IML acompanhada de um dos peritos estrangeiros e de familiares a fim de conferir a estrutura e a necessidade de reformas. Foi um desastre. O entra e sai de policiais e de cadáveres, a proximidade das mesas de necropsia, o movimento permanente de presidiários que chegavam para fazer exame de corpo de delito, famílias desesperadas à procura do pai que sumiu, do filho que não voltou para casa, o choro de quem deixava a câmara fria após reconhecer um parente, tudo ali confirmava a sensação de que seria impossível realizar naquele ambiente um trabalho delicado e meticuloso como a análise daquelas ossadas.

Faltava um espaço com entrada independente, calmo, que comportasse as equipes de antropologia e arqueologia forense. Faltava segurança para a guarda daquele material e também um sistema de climatização apto a conservar em condições adequadas as 1.046 caixas que viriam do Araçá. A hipótese, já remota, de transferir as ossadas para o IML foi definitivamente descartada.

Amelinha, por sua vez, foi escalada para insistir com a reitora. Ela tinha um plano.

— Vou ligar para a Léo.

Professora de sociologia e pró-reitora de Extensão da Unifesp até tomar posse como ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2012, Eleonora Menicucci, a Léo, tinha militado em duas organizações armadas, a Política Operária (Polop) e o Partido Operário Comunista (POC), e passara uma temporada com Dilma Rousseff na Torre das Donzelas, a ala feminina do Presídio Tiradentes, um dos principais locais de detenção de presos políticos no início dos anos 1970.

Sottili tomou a iniciativa de também contatar Eleonora naquela semana, em nome da Prefeitura, para que houvesse uma abordagem institucional. Tanto para Amelinha quanto para Sottili, Eleonora prometeu que falaria com a reitora.

Um grupo de familiares pediu uma reunião com Soraya, na reitoria da Unifesp, e Eleonora telefonou para ela na hora exata em que a reunião começaria. Já estavam na sala, à espera de Soraya, o próprio Sottili, um representante da Cruz Vermelha e familiares de desaparecido. Soraya pediu licença para atender à ministra.

— Soraya, você vai receber uma proposta agora, que é de abrigar as ossadas de Perus e se responsabilizar pela análise desse material.

A reitora quase caiu da cadeira.

— Mas…

— O que está acontecendo é o seguinte. As ossadas estão há mais de uma década no Araçá, num local sem condições de abrigar esse material, e agora estão querendo levar para o IML, o que não é aceitável.

— Mas a Unifesp não pode… A gente não tem espaço, não tem recursos, não sabe nem por onde começar.

— Fica tranquila que a gente vai ajudar. Vou conversar com o ministro da Educação. Nós vamos conseguir os recursos, as coisas vão acontecer.

A reitora resistia. Temia repetir a experiência da Unicamp, ou seja, pegar o trabalho e depois não ter condições de dar continuidade a ele. Principalmente, não tinha confiança. Seu medo era que o Governo prometesse recursos, colocasse no orçamento, mas depois não empenhasse o valor prometido. E a Unifesp, ela sabia, não estava numa situação confortável para absorver contingenciamentos não previstos.

De fato, aquele seria um ano muito difícil para as universidades federais como um todo. Os repasses do Governo para o ensino superior cairiam de R$ 8,7 bilhões em 2013 para R$ 7,8 bilhões em 2014, uma redução de 10%. A Unifesp fecharia o ano com dívidas, o que nunca tinha acontecido, desde sua fundação, em 1994.

Soraya ainda tentava processar aquele pedido da ministra quando o telefone tocou novamente, antes que ela tivesse voltado para a reunião.

— Soraya, aqui é a Amelinha. Só você vai poder resolver isso. Não podemos aceitar que esse trabalho vá para o IML. Tem que ir para a Unifesp, não tem outro lugar. A gente confia em você.

Não teve jeito. Soraya entendeu que não podia dizer não. Sentiu que era um daqueles momentos da História em que não se tem opção.

De volta à reunião, a reitora ouviu cada palavra. Sottili reiterou a proposta de se firmar um termo de cooperação e garantir recursos que viriam da Secretaria de Direitos Humanos, via Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Prefeitura de São Paulo, via Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, e também do Ministério da Educação, por meio de rubricas específicas que ampliariam o repasse para a universidade.

— Vou precisar de muito apoio — Soraya resumiu, aceitando o desafio.

Nas semanas seguintes, uma nova rodada de conversas foi feita em Brasília. Primeiro com Eleonora Menicucci e Henrique Paim, ministro da Educação empossado em janeiro, que garantiu os repasses e o apoio institucional à Unifesp. Em seguida, com Ideli Salvatti, que em março substituíra Maria do Rosário na Secretaria de Direitos Humanos. Sottili foi pessoalmente falar com Ideli no dia seguinte à posse.

— Ideli, você tem nove meses até o fim do mandato — Sottili comentou. — Você quer entrar para a História? Destrava Perus. Se a gente botar de pé um centro de antropologia forense na Unifesp e conseguir identificar algumas ossadas, você vai ter desempenhado um papel importantíssimo em algo que tem uma relevância histórica enorme.

Foi como um “abre-te, Sésamo”. A ministra se envolveria tão completamente com o tema que, passados seis meses, os trabalhos já estavam em andamento.

Nos primeiros dias de abril de 2014, em meio à “descomemoração” dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964, foi finalmente firmado um protocolo de intenções entre a Secretaria de Direitos Humanos, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Unifesp.

Coube à equipe da Prefeitura encontrar um local que pudesse ser alugado pela Unifesp para servir de abrigo às ossadas e também para acolher os trabalhos de análise. Carla Borges e Clara Castellano, coordenadora-adjunta de Direito à Memória e à Verdade, consultaram todos os classificados de imóveis que puderam encontrar. Uma condição era que ficasse nos arredores do campus paulistano da Unifesp, entre a Vila Mariana e a Vila Clementino, perto do Hospital São Paulo. Ao longo de um mês, Clara cumpriu expediente na rua, visitando casas, mentalizando reformas, negociando valores. Chegou a visitar um castelinho na Vila Mariana, mas a opção foi descartada.

Em junho, Carla e Clara conseguiram finalmente encontrar uma casa na Rua Joaquim Távora, a três quarteirões da Rua Vergueiro, que cabia no orçamento e se encaixava nas especificações técnicas detalhadas pela equipe peruana. Principalmente: o proprietário do imóvel concordava com as reformas que precisariam ser feitas. E, como a casa tinha dois pavimentos, um no nível da rua e um descendo um lance de escadas, seria possível adiantar as adaptações no andar debaixo para já iniciar os trabalhos enquanto o andar de cima fosse reformado.

As primeiras 433 caixas com ossos foram transferidas do Araçá para o número 168 da Rua Joaquim Távora no final de agosto. As demais precisariam aguardar o término da reforma para que houvesse um cômodo adequado para abrigá-las.

No dia 4 de setembro de 2014, quando a revelação da vala clandestina completou 24 anos, foi finalmente assinado um acordo de cooperação técnica entre a Unifesp, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A universidade ficaria encarregada do espaço físico, a Prefeitura seria responsável pelos insumos e o Governo Federal pelos profissionais.

Nasciam assim o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) e o Grupo de Trabalho Perus (GTP), ao qual caberia a missão de proceder à análise das ossadas exumadas em 1990 no Cemitério Dom Bosco.

***

Numa das paredes do CAAF, 41 desaparecidos pareciam observar os trabalhos de limpeza e análise das ossadas.

Eram 41 cartazes, com os rostos e os nomes de 41 pessoas suspeitas de estarem entre as ossadas analisadas. Eles haviam sido fixados ali pela equipe de ante-mortem, pesquisadores responsáveis por reunir informações sobre os desaparecidos suspeitos de terem sido enterrados no cemitério de Perus e transferidos para a vala clandestina nos anos 1970. Quanto mais detalhadas as informações, mais viável sua identificação.

A investigação combinava histórias de vida e dados físicos. Interessava saber informações antropométricas, como altura, e o histórico de fraturas ósseas do desaparecido. E também se ele fizera parte do movimento estudantil ou de alguma organização armada, se havia testemunhas de sua prisão ou tortura, se saíra alguma nota no jornal dizendo que ele havia morrido em tiroteio com a polícia ou sido atropelado por um caminhão ao tentar fugir ao cerco policial.

Os laudos produzidos no IML eram igualmente valiosos. Perfurações a bala no fêmur ou no esterno ou indicações de afundamento de ossos na bacia ou no crânio, tudo isso ajudaria na hora de comparar com os esqueletos em análise, um trabalho que parecia recomeçar da estaca zero, uma vez que a triagem e as fichas  feitas pela Unicamp careciam de rigor científico e organização, tornando-as pouco úteis, conforme os novos peritos perceberam.

Ao longo de todo o primeiro ano, profissionais como os arqueólogos Márcia Hattori e Rafael Souza trabalharam nesse levantamento. O primeiro passo foi consultar os coletivos de familiares, os relatórios das Comissões da Verdade, os dossiês de mortos e desaparecidos publicados na década anterior e também as fichas e os arquivos da Unicamp para chegar à lista de 41 pessoas procuradas. Entre essas, havia as mais prováveis e as menos prováveis.

O topo do ranking era formado pelos desaparecidos políticos cujos nomes constavam dos livros do Cemitério Dom Bosco como tendo sido exumados de suas sepulturas entre 1975 e 1976 sem nenhuma referência aos locais de reinumação. Dimas Casemiro, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira, registrado no livro de entrada com o nome falso de Dario Marcondes, integravam esse grupo. Em seguida vinham aqueles que também foram sepultados no cemitério e que, segundo os livros, tinham sido reinumados no mesmo local, embora escavações feitas nas sepulturas individuais a eles atribuídas tenham falhado nas tentativas de localização. Hirohaki Torigoe (enterrado com o nome de Massahiro Nakamura), José Milton Barbosa (enterrado com o nome de Helio José da Silva) e Luiz Hirata compunham esse segundo grupo.

Havia, em seguida, um rol com sete pessoas que, segundo relatos e testemunhos, desapareceram em São Paulo nos primeiros anos da década de 1970 e que tinham sido vistas em centros de tortura ou presídios da cidade pouco antes de desaparecer: Abílio Clemente Filho, Aluísio Palhano, Aylton Mortati, Devanir José de Carvalho, Edgar Aquino Duarte, Luiz Almeida Araújo e Paulo Stuart Wright. Uma outra seção, maior do que as outras e com menos chance de localização, reunia dezenove desaparecidos que não foram vistos em nenhuma prisão nem estavam fichados no IML, mas que teriam sumido em São Paulo ou teriam passado pela cidade naquele período. São eles Ana Rosa Kucinski, Davi Capistrano. Eduardo Collier Filho, Elson Costa, Fernando Santa Cruz, Heleny Guariba, Hiram de Lima Pereira, Honestino Guimarães, Ieda Santos Delgado, Isis Dias de Oliveira, João Massena Melo, José Montenegro de Lima, José Roman, Luís Ignácio Maranhão Filho, Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior, Paulo César Botelho Massa, Paulo de Tarso, Celestino Silva, Walter de Souza Ribeiro Silva.

Por fim, nove nomes foram incluídos na lista de procurados por solicitação de familiares. Seis deles eram de desaparecidos políticos relacionados na lei 9.140/1995 – Itair José Veloso, Jayme Amorim de Miranda, Joel Vasconcelos Santos, Jorge Leal Gonçalves Pereira, Thomaz Antonio da Silva Meirelles Neto e Vitor Luís Papandreu – e três não tinham qualquer histórico de militância política ou maiores detalhes sobre seu desaparecimento: José Padilha Aguiar, Marlene Rachid Papembrok e Olímpio de Carvalho. Uma dessas pessoas, José Padilha, foi incluída na lista somente em 2014, quando o CAAF foi formado. Sua filha Vilma procurou a Secretaria de Direitos Humanos quando soube que qualquer pessoa desaparecida em São Paulo entre 1971 e 1974 poderia ter sido ocultada na vala de Perus, e que os trabalhos de identificação não eram restritos aos militantes políticos.

— Meu pai sumiu em 1971 — contou. — A polícia disse para a minha mãe que ele deve ter fugido com outra mulher e ficou por isso mesmo.

Padilha foi incorporado ao rol de desaparecidos procurados e sua filha foi entrevistada pela equipe de ante-mortem do CAAF. A busca por seu paradeiro incluiu tratativas com a Secretaria de Segurança Pública do Paraná, onde seu documento de identidade tinha sido emitido, e consultas ao IML e ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. Buscando as fichas de mortos desconhecidos e não reclamados compatíveis com a data do desaparecimento e comparando os dados físicos anotados no IML com as imagens e informações oferecidas pelos familiares, a equipe do CAAF conseguiu confirmar: o pai de Vilma tinha sido atropelado por um trem e enterrado como indigente em Perus em 1971. Como não foi possível confirmar se seu corpo teria ido para a vala clandestina, sua ficha segue na lista de procurados com possibilidade de associação genética.

Embora ainda não tenha sido possível entregar a Vilma os remanescentes ósseos de seu pai, o GTP conseguiu desempenhar, neste episódio, um primeiro gesto significativo de reparação história e cidadania oferecendo uma resposta oficial que, por quase cinquenta anos, o Estado não conseguira – ou não tentara – dar à família de Padilha. Não, ele não tinha fugido com outra mulher.

Após a consolidação da lista com os 41 desaparecidos, surgiu a ideia de fixar cartazes com os rostos e os nomes de todos eles na parede. Uma forma de lembrar, diariamente, o motivo pelo qual estavam ali. Uma maneira de reafirmar, a cada segunda-feira, a razão pela qual trabalhavam naquelas análises.

Logo a galeria dos desaparecidos gerou um primeiro impasse, um primeiro episódio de tensão. Em visita ao CAAF, Suzana Lisbôa notou que um dos retratos era do cabo do Exército Vitor Luiz Papandreu, fuzilado na Casa da Morte, em Petrópolis, em 1971. Espantou-se:

— Esse cara era um cachorro. O que seu retrato está fazendo aqui?

Cachorro era uma gíria usada pelos integrantes do aparato repressivo para se referir ao informante que não era funcionário do sistema de informação, mas que passava a colaborar em troca de informação, mas que passava a colaborar em troca de benefícios pessoais ou para que cessassem as torturas. O termo teria sido cunhado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Dops, devido à obediência canina desses colaboradores, sobretudo daqueles que mudavam de lado e, como infiltrados, passavam a delatar antigos companheiros.

Foi o psiquiatra Amilcar Lobo, médico que auxiliava nas sessões de tortura na Casa da Morte, o primeiro a relatar o fuzilamento de Papandreu e a revelar sua participação na captura de guerrilheiros. “Era um rapaz jovem, de estatura alta, magro, de cabelos claros”, narrou em suas memórias, publicadas em 1989. “Ouço-o, observo-o e conversamos longamente. Constato que ele realmente apresenta ideias delirantes. (…) O major, no entanto, o chama por um nome que soa aos meus ouvidos como ‘Papaleo’ e este rapaz o atende prontamente. (…) Sampaio (o major) me diz que dentro de pouco tempo este rapaz deveria ir a Goiás conhecer outros subversivos de uma outra organização comunista. Digo-lhe que, provavelmente, nesse curto espaço de tempo, o preso não teria condições de viajar”. O major Sampaio o teria alvejado com um tiro na cabeça em seguida.

Após contar que muitos companheiros teriam sido delatados e mortos por causa dele, Suzana conseguiu que o retrato de Papandreu fosse retirado da parede.

Em 2017, um último nome foi incluído na lista de desaparecidos procurados pelo CAAF nas ossadas de Perus. Somavam, agora, 42 pessoas, das quais 41 seguiam expostas na parede. João Maria Ximenes militava no Partido Comunista Brasileiro e cursava economia na PUC de São Paulo quando desapareceu, em 1974. Seu caso foi investigado pela Comissão da Verdade da PUC e levado ao CAAF pela ex-presa política Rosalina Santa Cruz, professora daquela universidade e membro da Comissão.

***

Não havia um dia em que Aline não olhava para aqueles rostos antes de vestir as luvas e dar início ao trabalho. Era uma espécie de deferência, um olhar respeitoso, um pedido de licença.

No início de 2015, Aline Feitoza era uma das doze pessoas que trabalhavam diariamente no CAAF. Sua função, juntamente com outras antropólogas, arqueólogas e estagiários do curso de História, era abrir as caixas trazidas do Araçá, higienizar os ossos e depurá-los para que outra profissional, em seguida, cuidasse de analisá-los: quais ossos havia na caixa e quais estavam faltando, qual o sexo e a idade presumida daquele indivíduo, se havia mais de um indivíduo ali, se algum osso havia sido ferido por fratura ou arma de fogo, se havia alguma especificidade na dentição. Ainda naquele semestre, Aline passaria a se ocupar dessa outra etapa. Enquanto Márcia Hattori e outros profissionais cuidavam do ante-mortem, Aline integrava o grupo de post-mortem.

Os trabalhos de limpeza e análises das ossadas se estenderam por muito mais tempo do que o previsto. As primeiras reportagens publicadas na imprensa informavam que triagem e catalogação estariam encerradas um ano após o início dos trabalhos. Em meados de 2015, no entanto, os ossos das primeiras 433 caixas ainda estavam em estudo. Ao mesmo tempo, a reforma na sede do CAAF ainda não havia terminado, o que impedia o transporte de todas as ossadas para lá.

A permanência do material no ossário geral do cemitério do Araçá provocava calafrios nos familiares e nas entidades de direitos humanos. O atentado à instalação de Celso Sim e Anna Ferrari caminhava para completar dois anos quando o Ministério Público Federal, por intermédio da procuradora Eugênia Gonzaga, agora à frente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República, conseguiu emplacar uma solução provisória.

No dia 15 de agosto, devidamente escoltadas por agentes da Guarda Civil Metropolitana, as caixas que ainda estavam no Araçá foram transferidas para uma sala-cofre no prédio da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Agora sob a custódia do Ministério Público Federal, as caixas ficariam num ambiente com temperatura adequada e com segurança 24 horas. Somente em meados de 2016, concluída a ampliação da sede, o CAAF pôde reunir todas as 1.046 caixas e dar sequência aos procedimentos de limpeza e análise das ossadas que haviam passado uma temporada no MPF. A última caixa seria aberta em dezembro de 2019.

Na investigação post-mortem, o mais importante era anotar com precisão e rigor cada detalhe dos esqueletos, uma caixa de cada vez. As anotações iriam corroborar a planilha das compatibilidades. Qual ossada poderia ser de Dimas Casemiro, um homem branco, de 25 anos e 1,80 metro? Qual poderia ser de Luiz Hirata ou de Heleny Guariba? Numa etapa posterior, amostras das ossadas compatíveis seriam encaminhadas para análise genética juntamente com amostras de sangue de possíveis familiares.

Já em 2014, ficara estabelecido que todas as caixas seriam abertas e todas as ossadas seriam periciadas, sem exceção. Essa orientação viria a provocar a primeira cisão no comitê científico do Grupo de Trabalho Perus. Sob coordenação do médico legista Samuel Ferreira, vinculado à Secretaria Nacional de Segurança Pública e à Polícia Científica de Brasília, o comitê científico lograra juntar peritos da Equipe Argentina de Antropologia Forense, sob a coordenação de Luis Fondebrider, e peritos da Equipe Peruana de Antropologia Forense, coordenada por José Pablo Baraybar. Com ampla experiência internacional, esses profissionais assumiram a tarefa de implementar os protocolos a serem seguidos na Unifesp e formar os profissionais brasileiros que tocariam o barco durante o tempo necessário para a conclusão dos trabalhos, estimado inicialmente em três anos e mais tarde redimensionado para terminar em 2022.

Os argentinos eram velhos conhecidos dos familiares de mortos e desaparecidos no Brasil. Fondebrider, pioneiro da antropologia forense na América do Sul, estivera na abertura da vala de Perus em 1990 e por mais de uma ocasião pôde acompanhar etapas distintas das tentativas de identificação ocorridas nos anos que se seguiram à abertura. Mais recentemente, a equipe argentina tivera a oportunidade de analisar as ossadas retiradas do Araçá com suspeita de pertencerem ao desaparecido Hiroaki Torigoe e elaborara um relatório demolidor, reduzindo a pó as fichas produzidas na Unicamp nos anos 1990. Já os peruanos haviam se destacado no cenário mundial por trabalhos de identificação realizados para o Tribunal Penal Internacional nas regiões das guerras da Bósnia, Croácia e Kosovo, também nos anos 1990.

Ainda em 2014, argentinos e peruanos começaram a discordar quanto à metodologia a ser adotada no âmbito do GTP. Grosso modo, os argentinos entendiam que era preciso priorizar as ossadas compatíveis com os desaparecidos políticos, procurados pelos familiares desde os anos 1970. Neste sentido, sugeriam deixar temporariamente de lado as ossadas que não fossem compatíveis com os militantes políticos buscados. Segundo esta abordagem, os peritos não deveriam perder tempo com esqueletos de crianças ou de pessoas com idade presumida de mais de 50 anos, por exemplo, uma vez que não havia crianças nem pessoas com mais de 50 entre os desaparecidos listados.

Já os peruanos faziam coro com as recomendações feitas pelo Estado brasileiro e pela Prefeitura de São Paulo no sentido de investigar e classificar todas as ossadas. O que embasava essa abordagem era o entendimento de que a violência de Estado vitimara todas essas pessoas e que, neste sentido, todo desaparecimento era político, fosse ele provocado por uma política de genocídio que estimulava a truculência policial ou a atuação de grupos paramilitares, fosse por meio da perseguição a opositores da ditadura.

O objetivo deste grupo, ao qual os peruanos aderiram, era construir um banco de dados sobre as ossadas que permitisse a qualquer pessoa procurar seu familiar desaparecido, desde que o desaparecimento tenha ocorrido em São Paulo entre 1971, ano da inauguração do cemitério, e 1976, ano da exumação em massa e da reinumação das mais de mil ossadas na vala clandestina. Casos como o de Vilma, que poderiam recorrer ao CAAF para localizar seu pai José Padilha, só seriam possíveis se houvesse essa amplitude no universo das análises.

Em dezembro de 2014, apenas três meses após a inauguração oficial do CAAF, os membros da EAAF se retiraram com um e-mail de despedida enviado aos membros do GTP. “O motivo de tal decisão, amplamente discutido por aqueles de nós que participaram do projeto, baseia-se em nosso desacordo com a forma como foi decidido conduzir a investigação”, dizia a carta assinada pela perita Patricia Bernardi. “Sempre entendemos que o projeto original era tentar determinar se entre os remanescentes de Perus havia alguns dos que desapareceram por motivos políticos durante a última ditadura militar no Brasil. Essa ideia original transformou-se em uma análise muito mais ampla, o que implica tentar analisar todos os esqueletos, considerando que todos os restos mortais correspondem a pessoas não identificadas, independentemente das motivações de seu desaparecimento”.

Superado o desfalque, os trabalhos se mantiveram da forma como fora acordado: um processo lento e exaustivo que, em setembro de 2017, resultou num primeiro lote de 100 amostras ósseas encaminhadas para análise genética juntamente com 77 amostras de sangue colhidas de familiares de 33 desaparecidos. Um segundo lote seria encaminhado em setembro do ano seguinte. Até 2019, três outros lotes totalizariam 750 amostras com fragmentos ósseos enviadas para se verificar a compatibilidade genética com as amostras de sangue.

Coordenador do comitê científico do CAAF, Samuel diz ter viajado mais de 40 mil quilômetros para colher amostras de sangue de irmãos e irmãs, filhos e filhas, uma ou outra mãe de desaparecido, não somente em São Paulo e no interior do Estado, mas também no Rio de Janeiro e em Estados como Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Os donos das 1.046 ossadas poderiam estar em todos esses lugares.

Médico legista e geneticista forense vinculado à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e à polícia científica em Brasília, Samuel quis ir pessoalmente a cada encontro com familiares para coletar material. Em cada local, uma oportunidade de conhecer mais detalhes sobre a história de vida dos desaparecidos procurados e restabelecer um vínculo de confiança que, para muitos familiares, havia se esgarçado ao longo das quase três décadas de negligência e omissão.

Na ausência de um laboratório no Brasil apto a realizar um número tão grande de análises sem comprometer as demandas do dia a dia, razão pela qual seria inviável aproveitar a estrutura do IML ou de outro endereço relacionado aos órgãos de segurança pública, foi firmado um convênio com a Comissão Internacional para Pessoas Desaparecidas, ICMP na sigla em inglês, um centro de análises genéticas sem fins lucrativos estabelecido pela ONU em Sarajevo, na Bósnia, com o objetivo original de analisar remanescentes do conflito na ex-Iugoslávia.

Em 14 de setembro de 2017, um marco nas atividades do GTP, Samuel desembarcou pessoalmente em Sarajevo para levar as 100 amostras ao ICMP. O primeiro lote foi entregue ao diretor de Ciência e Tecnologia do Instituto, Thomas Parsons. A convite da CEMDP, Helder Nasser o acompanhou na viagem. Nasser é sobrinho de Edgar Aquino Duarte, desaparecido em 1973, um dos suspeitos de estarem na vala.

***

— Sr. Fabiano Casemiro?

— Sim. Quem está falando?

— Meu nome é Eugênia Gonzaga. Sou procuradora da República e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Estou ao lado do Samuel Ferreira, que é o coordenador científico da Comissão. Estamos ligando para você em nome do Grupo de Trabalho Perus.

— Pois não.

— Fabiano, este telefonema é para confirmar a identificação dos remanescentes ósseos do teu pai, Dimas Antônio Casemiro. Foi confirmada a compatibilidade genética entre o material que recolhemos com o senhor e seus tios e uma das ossadas enviadas para o laboratório do ICMP, em Sarajevo.

O telefonema foi feito em 19 de fevereiro de 2018, uma segunda-feira. Na sexta-feira anterior, dia 16, a equipe do CAAF fora surpreendida com o resultado positivo encaminhado pelo laboratório da Bósnia. Seguindo o protocolo, a equipe reabriu a caixa das ossadas para comparar o material ali armazenado com todo o prontuário de Dimas Casemiro elaborado nas etapas ante-mortem e post-mortem e verificar se, além do DNA, também as características dos ossos eram de fato compatíveis. Sexo, idade presumida, altura, tudo batia. Os dentes perfeitos, preservados. Cotejaram, então as informações referentes ao exame necroscópico. Quatro perfurações causadas por arma de fogo, um dos projéteis alojado na coxa direita. Haveria alguma marca no fêmur compatível com um ferimento a bala? Sim, havia.

Dimas era irmão de Denis Casemiro, o primeiro desaparecido identificado nas ossadas exumadas da vala clandestina de Perus. Amostras extraídas de seu esqueleto tinham sido encaminhadas ao laboratório no Leste Europeu ainda em setembro de 2017, no primeiro lote enviado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Na mesma semana do anúncio, Samuel viajou a Votuporanga, no interior de São Paulo, para levar a documentação referente à identificação pelo ICMP e também pelo CAAF. A entrega da urna com os remanescentes ósseos foi agendada para o segundo semestre. Em 30 de agosto, Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, os restos mortais de Dimas Casemiro foram sepultados no cemitério de Votuporanga.

Fabiano tinha apenas 4 anos quando o pai foi morto, aos 25 anos, em 1971. Em 2015, Fabiano fora pessoalmente à Vila Mariana para responder a algumas questões e deixar uma amostra de sangue com os peritos. Desde então, não chegara a nutrir expectativas reais de que a ossada do pai seria encontrada. “Hoje, após 47 anos, os restos mortais de meu pai retornam a Votuporanga”, declarou por ocasião do sepultamento. “Termina aqui uma parte da história da nossa família. Longe de ser um momento triste, mas sim o fechamento de um longo ciclo”.

Em 3 de dezembro, outra notícia alvissareira: uma segunda ossada de Perus fora identificada em Sarajevo. Desta vez, o material pertencia a Aluísio Palhano, bancário e sindicalista, militante da Vanguarda Popular Revolucionária delatado pelo agente infiltrado Cabo Ancelmo e torturado até a morte no DOI-Codi, aos 48 anos, em 1972.

Palhano não estava na lista dos mais prováveis, o que fazia aumentar a surpresa pela revelação. Seu nome, verdadeiro ou falso, jamais tinha sido localizado nos livros do Cemitério Dom Bosco. Seus restos mortais eram procurados porque havia fortes indícios de que ele teria sido morto em São Paulo num centro de tortura, o que aumentava exponencialmente a chance de ser enterrado em Perus e, anos depois, integrado a vala clandestina.

No CAAF, repetiu-se mais ou menos a mesma sequência da identificação de Dimas. Assim que chegou a informação do match genético, jargão empregado para confirmar a compatibilidade entre a amostra óssea do esqueleto e a amostra de sangue do familiar, o material reunido na caixa atribuída a Palhano foi disposto sobre a bancada no número 168 da Rua Joaquim Távora. Hora de fazer a contraprova.

Uma característica importante relatada por familiares era certa anomalia no braço esquerdo. Ninguém sabia direito se era uma fratura mal regenerada ou se uma doença degenerativa no cotovelo. O que sabiam é que ele tinha dificuldade para dobrar o braço e que, em razão disso, costumava escondê-lo nas fotografias. Decidiram se demorar mais um pouco entre o úmero e o rádio e não deu outra: uma deformação óssea era visível exatamente na região do cotovelo. Todo o resto também conferia.

Márcia, filha de Palhano, foi quem recebeu o telefonema de Eugênia e Samuel. Ao longo de três décadas, desde 1975, quem tivera maior engajamento na busca por respostas sobre a morte e a ocultação do cadáver de Palhano tinha sido sua cunhada, Branca Eloysa, militante do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Branca morrera em abril, dez meses antes da identificação.

Os restos mortais de Palhano não foram sepultados logo após a identificação. Como seu esqueleto estava armazenado numa caixa sem crânio, a família optou por aguardar a conclusão dos trabalhos de perícia nas ossadas de Perus na expectativa de que o crânio fosse localizado na etapa de reassociação das misturas ósseas. Era sabido que, da mesma forma que algumas caixas não tinham crânio, outras guardavam cinco ou seis.

***

Em 4 de setembro de 2020, quando a revelação da vala de Perus completou 30 anos, nenhuma caixa com remanescentes ósseos aguardava para ser analisada. Todas elas haviam passado pelas etapas de limpeza, lavagem, secagem e perícia. Um último lote com 150 ossadas aguardava para que fossem extraídos fragmentos e encaminhados ao ICMP.

Agora, o laboratório de genética forense já não ficava em Sarajevo, na Bósnia, mas em Haia, na Holanda. De lá, também era esperado um último relatório com uma espécie de reanálise de aproximadamente 20% dos casos analisados anteriormente, aqueles que se mostraram inconclusos porque não fora possível extrair material genético suficiente.

Na Vila Mariana, o próximo passo seria iniciar as análises das caixas com misturas ósseas. Para esta etapa, seria necessário estabelecer um novo protocolo e uma nova fase de formação, uma vez que os peritos brasileiros não detinham a técnica necessária. Cerca de 26% das caixas, segundo estimativa de Samuel Ferreira, continham as tais misturas, ou seja, ossos de mais de um indivíduo, o que iria exigir ao menos mais um ano inteiro de perícia.

O atraso no cronograma era patente e tinha sido potencializado em razão da suspensão das atividades presenciais, tanto na Holanda quanto no Brasil, decorrente da pandemia do novo coronavírus. De fato, o universo parecia conspirar contra os trabalhos de análise e identificação desde meados do ano anterior. Da mesma forma como o fim da gestão Erundina, em São Paulo, e sua substituição por Maluf, em 1993, contribuíra para o abandono gradual dos trabalhos de identificação das ossadas, a ascensão de Bolsonaro ao Governo Federal impingira alguns obstáculos aos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos pelo GTP junto à Unifesp.

Um primeiro abalo importante aconteceu em 11 de abril de 2019, quando um decreto assinado pelo presidente da República extinguiu o GTP. Em seguida, no dia 1o de agosto, a procuradora Eugênia Gonzaga foi exonerada da presidência da CEMDP e substituída por um advogado que, nas redes sociais, havia celebrado o aniversário da “revolução de 1964”. Numa de suas primeiras declarações públicas após assumir o cargo, Marco Vinícius Pereira de Carvalho prometeu rever as prioridades da comissão de modo a buscar “celeridade e economicidade”, conforme expressão usada por ele.

A busca por desaparecidos políticos, em Perus ou no Araguaia, ficou, naturalmente, sob a mira da nova gestão. O trabalho referente à guerrilha do Araguaia, segundo Marco Vinícius, a despeito de estar em fase de cumprimento de sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros, “trata-se de algo impossível ou de extrema dificuldade dadas as várias expedições infrutíferas e o dispêndio de milhares de reais para o referido trabalho, que não tem alcançado muito sucesso”. Sobre as ossadas do Cemitério Dom Bosco, Marco Vinícius declarou que o “dispêndio previsto com envio de ossadas para análise de DNA até o laboratório em Haia, na Holanda, consumirá dos cofres públicos mais de US$ 520 mil”. Um despropósito, segundo ele, uma vez que, “de acordo com informações prestadas pela coordenação geral, até hoje só foram identificadas duas pessoas do cemitério de Perus”.

Em novembro, por orientação do presidente da comissão, foi feita uma proposta para descontinuar os trabalhos na Unifesp e transferir as ossadas para o Instituto de DNA da Polícia Civil do Distrito Federal, onde seriam periciadas pelas equipes da polícia científica. Da mesma maneira, sugeriu-se não mais encaminhar material para análise genética em Haia sob o argumento de que era possível fazer o mesmo serviço no Brasil. A proposta foi rechaçada pela procuradora da República Lisiane Braecher, responsável por acompanhar e garantir o cumprimento da sentença, pelo juiz Eurico Zecchin Maiolino, pelos familiares de mortos e desaparecidos e pela Prefeitura de São Paulo. Observou-se, ainda, que a alternativa proposta não reduziria custos, uma vez que não considerava os gastos fixos com infraestrutura e imóvel, servidores da Unifesp disponibilizados para o trabalho no CAAF sem representar gastos adicionais ao Erário ou os custos em combustível e hora de trabalho necessários para transportar todas as ossadas para Brasília, mesmo que utilizando-se uma aeronave da Aeronáutica.

Se os trabalhos haviam sobrevivido a 2018 e a 2019, isso se dera em razão de dois elementos principais: a existência de uma condenação judicial que obriga a União a envidar os esforços necessários para identificar as ossadas e o esforço incansável dos familiares de mortos e desaparecidos e dos ativistas por memória, verdade e justiça, que, ao longo de 50 anos de luta para conhecer o paradeiro dos desaparecidos, não deixaram a peteca cair.

Trinta anos após a revelação da vala de Perus, a busca pela identificação dos restos mortais de mais de mil pessoas desaparecidas e ocultadas pela ditadura militar caminhava para uma esperada conclusão, prevista para acontecer em 2022. Entre os legados deixados por essa busca está, hoje, a transferência de conhecimento científico e a implantação de um centro de antropologia e arqueologia forense numa instituição de ensino superior – público, gratuito e de qualidade – que deverá permanecer mesmo após a conclusão das análises dessas ossadas.

Num futuro nada distante, essa estrutura e esse conhecimento poderão ser aproveitados para novos trabalhos de antropologia forense, a começar pela necessária análise das ossadas exumadas na região do Araguaia e que, a despeito da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ainda não foram submetidas ao devido processo de perícia e identificação. Também poderão ser utilizados para o estudo de casos de desaparecimento forçado e outras modalidades de violência de Estado na atualidade, como já foi feito, em 2016, num projeto da Unifesp que investigou a truculência da polícia militar nos crimes de maio de 2006 a partir de análise de documentos de perícia de 60 jovens mortos na Baixada Santista.

Ainda em setembro de 2020, um acordo firmado entre Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual de São Paulo e Ministério Público do Trabalho com a multinacional automobilística Volkswagen em decorrência de ação civil pública perpetrada contra a montadora por sua colaboração sistemática com práticas de perseguição e tortura, dentro e fora da fábrica, durante os anos 1970, garantiu uma doação de R$ 2,5 milhões da multinacional para as atividades de análise e identificação nas ossadas de Perus. Em tese, o valor é suficiente para a finalização dos trabalhos.

Finalmente, um relatório produzido no âmbito do CAAF em abril de 2020 e juntado ao processo de ação conciliatória, portanto público, listou como uma de suas ações prioritárias para o período imediatamente posterior à fase de isolamento social dar seguimento ao protocolo de identificação aplicando-o sobre uma das caixas. Segundo o documento, existia um “relatório do ICMP confirmando o match genético”, e caberia aos peritos “seguir aplicação do protocolo de identificação, o que inclui: abertura da caixa, comparação com o arquivo ante-mortem e fazer a revisão do caso”.

No final de 2020, portanto, tudo indicava haver mais um desaparecido em vias de ser identificado. A compatibilidade genética fora indicada pelo laboratório em Haia. Os passos seguintes seriam tirar novamente o esqueleto da caixa e verificar sua compatibilidade com as informações colhidas na investigação ante-mortem e post-mortem. Ou seja, essa caixa talvez viesse a revelar a identidade de uma pessoa que, como tantas outras, foi vítima dos crimes de desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres praticados por um Estado que ainda mata, e muito, no Brasil.

 

Leia no próximo capítulo: Quem foram, onde viveram, o que fizeram e como foram assassinados os cinco desaparecidos políticos cujas ossadas foram identificadas entre as 1.049 ocultadas na vala de Perus. Quem ainda pode estar lá.  

Foto: Carlos Bassan

 

 

Amanhã ou depois, meu irmão
A gente retorna à beira do cais
E conta os amigos
Pra ver qual que brilha
E qual se apagou.

Gonzaguinha, em “Amanhã ou depois”

 

O fotógrafo do Diário do Povo agarrou a bolsa com a câmera, as lentes e os rolos de filme e saiu correndo. Era preciso liquidar a pauta e, sem demora, trazer os negativos de volta ao jornal. Em quinze anos de profissão, Carlos Bassan havia aprendido a não atrasar as entregas. Fotojornalismo tem dessas coisas. Imagem boa é imagem publicada, não adianta lapidar demais e perder a hora do fechamento.

Naquela tarde de abril de 1991, sua missão nada tinha de extraordinária. Apenas ir até o Departamento de Medicina Legal da Unicamp (DML) e fazer uma foto do chefe. Tirar um retrato, como se dizia, de um médico legista de nome sonoro, meio antiquado, como que recolhido de um romance policial: Fortunato Badan Palhares. Não era de fato um nome sofisticado? Parecia sob medida para batizar algum investigador ou delegado de polícia num conto de Rubem Fonseca. Inspetor Palhares, quem sabe. Ou Detetive Fortunato.

Badan Palhares ficara famoso cinco anos antes, quando coubera a ele analisar uma ossada exumada do cemitério de Embu, na Grande São Paulo. Não era uma ossada qualquer. Tratava-se do médico nazista Josef Mengele, lendário criminoso de guerra apelidado de “Anjo da Morte” que tinha sido um dos médicos responsáveis pelas câmeras de gás no campo de concentração de Auschwitz, nos anos 1940. Mengele era acusado de conduzir experimentos em humanos na Alemanha nazista, quase sempre com grande violência e perversidade. A instalação do Tribunal de Nuremberg para julgar os crimes de guerra cometidos por Hitler e seus asseclas, já no final de 1945, levou Mengele a se esconder numa fazenda na Baviera, no interior da Alemanha, e a fugir para a América Latina na virada da década de 1950. Chegou à Argentina no governo Perón, viveu no Paraguai sob a ditadura Stroessner, pelo menos entre 1958 e 1960, e se fixou no Brasil nos anos 1960. Aqui, os militares teriam ajudado a acobertá-lo.

Em entrevista ao jornalista Marcelo Godoy publicada apenas em 2013, no jornal O Estado de S. Paulo, o delegado José Paulo Bonchristiano, um dos chefes do Dops após o golpe de 1964, afirmaria que a polícia política sabia da presença de Mengele no Brasil e só não o prendeu porque “nunca pediram”, referindo-se à polícia alemã. Morto em Bertioga, no litoral paulista, em 1979, o criminoso de guerra foi sepultado em Embu como Wolfgang Gerhard, nome que constava em seus documentos brasileiros. Apenas em 1985, quando uma senhora de Sorocaba (SP) contou que teria abrigado Mengele durante alguns anos, na década anterior, e revelou o nome usado por ele, a Polícia Federal resolveu investigar.

Além de identificar as ossadas, o médico Palhares coordenara um trabalho ainda inédito no país: a reconstituição facial de Mengele. Em fevereiro de 1986, os jornais estamparam fotografias do provável rosto do Anjo da Morte, elaborado por um artista plástico a partir das características físicas apontadas pela perícia conduzida no DML a pedido do então delegado superintendente da Polícia Federal, Romeu Tuma. Mais recentemente, Badan Palhares havia atuado na investigação do assassinato de Chico Mendes, ambientalista e líder seringueiro do Acre, e no crime da Rua Cuba, como ficou conhecido o assassinato jamais solucionado do casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecília Delmanto Bouchabki numa mansão no Jardim América.

gora, o nome Badan Palhares estava novamente nos jornais. Desde setembro de 1990, quando um convênio entre Prefeitura de São Paulo, Governo do Estado e Unicamp garantira a transferência para Campinas das mais de mil ossadas retiradas da vala de Perus, na capital.

Bassan, o fotógrafo, entrou no carro do jornal, cruzou a Rodovia Dom Pedro I, passou por duas ou três rotatórias na entrada do campus e chegou em cerca de 20 minutos ao prédio da faculdade de medicina que abrigava o DML. Minutos depois, saiu do prédio desapontado. O chefe do departamento não estava lá. Não era daquela vez que ele conseguiria tirar o retrato do médico legista mais famoso do Brasil.

No caminho de volta ao carro do jornal, Bassan notou uma cena fora do comum. Havia algo muito esquisito no gramado em frente ao DML. Aquela paisagem não era somente esquisita, mas assustadora, surreal. Ao ar livre, a poucos metros do meio-fio, descansavam no chão, separados em esteiras e bacias, dezenas de pedaços de ossos. Um crânio, um fêmur, uma tíbia. Uma mandíbula inteira, outra pela metade.

Bassan nunca tinha visto algo parecido. Parecia ter entrado num plano-sequência de Indiana Jones e a Última Cruzada. Os ossos estavam ali tomando banho de sol, num canteiro do campus, numa tarde prosaica de quarta-feira. E sem ninguém por perto para tomar conta. Aos 31 anos, ele sabia exatamente do que se tratava. Era como se aquelas ossadas guardassem em si as marcas de um passado recente, autoritário e cruel, uma época obscura da história do país. Fez algumas fotos e voltou para o jornal.

***

As ossadas de Perus tinham sido transferidas para a Unicamp em 1º de dezembro de 1990. Após a abertura da vala clandestina, em 4 de setembro, seguira-se um longo período de tratativas que culminara naquele convênio. A decisão solucionava o principal obstáculo colocado: familiares de mortos e desaparecidos políticos jamais aceitariam que as ossadas fossem periciadas no Instituto Médico Legal de São Paulo, órgão que havia sido cúmplice da política de desaparecimento e ocultação de cadáveres, por meio dos laudos falsos que produziram e assinaram.

A ida para a Unicamp foi recebida com entusiasmo pelas famílias. Primeiro, porque se tratava de uma instituição de ensino, e não de um departamento da polícia científica, o que em si já era motivo para alívio. Em segundo lugar, porque o médico Badan Palhares gozava de grande prestígio na comunidade científica e nos meios de comunicação.

Os trabalhos de retirada das ossadas, coordenados pelo médico legista Nelson Massini, se estenderam por mais de um mês. Apenas no dia 27 de outubro de 1990 foi feito o resgate do último saco. A catalogação dessas ossadas, no entanto, se estenderia até o último dia de novembro, ainda no cemitério.

Essa etapa do trabalho, chefiada pelo professor-assistente do DML José Eduardo Bueno Zappa, envolveu 25 técnicos da Unicamp. A cada saco retirado da vala era preciso fazer a limpeza do material, separar os ossos por tipo, acondicioná-los em sacos menores, fotografar o crânio e a face, e classificar cada ossada segundo características possíveis de serem determinadas ao primeiro olhar, como sexo, idade presumida, presença de dentes e ocorrência de fraturas ou perfurações a bala. Em seguida, a ossada era novamente inserida num saco e transportada até Campinas.

— Por enquanto, queremos apenas classificar o material da forma como foi encontrado, sem que haja mistura de peças — Eduardo Zappa explicou à reportagem do Diário Popular. — Há sacos em que existem até três crânios e outros sem nenhum, mas essa é uma questão para ser esclarecida durante a fase seguinte, de identificação, que deve demorar pelo menos um ano.

Três caminhões foram necessários para transportar as ossadas do cemitério à Unicamp. No dia do traslado, houve choro, protesto e comoção em Perus. Aos gritos de “tortura nunca mais” e “punição aos assassinos”, manifestantes atearam fogo a um boneco trajando uniforme verde-oliva, com quatro estrelas nos ombros, quepe e coturno, em clara referência aos generais do Exército que usurparam o poder no Brasil por 21 anos.

A prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, e o presidente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, presenciaram os protestos. De lá, as ossadas foram acompanhadas por uma carreata durante todo o trajeto até a Unicamp.

Já em Campinas, teve início o trabalho de análise propriamente dito. Cada ossada era fichada e ganhava uma descrição. Mulheres foram separadas dos homens, houve uma tabulação por idade presumida e segundo outros elementos levantados pela análise. Finalmente, era preciso comparar aquelas características com as dos desaparecidos reclamados pelos familiares. Tamanhos e idades funcionavam como critérios de eliminação. “Este fêmur é de um homem de 1,90 metro, então não pode pertencer a esse desaparecido, que tinha no máximo 1,75 metro”. Ou ainda: “Este aqui é de um homem de 50 anos, velho demais para ser o estudante universitário que vocês procuram”.

Agora, Badan Palhares coordenaria os trabalhos de sobreposição de imagens, a etapa principal do processo de identificação. Em 1990, extrair material genético de ossos com a finalidade de comparar com o DNA de parentes de primeiro grau das pessoas às quais os despojos supostamente pertenciam ainda não era uma possibilidade no Brasil. A genética forense fora inaugurada na Inglaterra dois anos antes. Em 1988, a polícia científica da cidade de Leicester conseguira finalmente solucionar dois crimes semelhantes de estupro seguido de morte ocorridos em 1983 e em 1986. Como? Comparando o DNA encontrado no sêmen recolhido nos corpos das duas adolescentes assassinadas com o DNA de uma amostra de sangue tirada de um suspeito. Quando as ossadas de Perus chegaram à Unicamp, o emprego do DNA como método de identificação ainda era algo restrito à Inglaterra e a outros raros centros de genética forense no mundo desenvolvido. E importar a tecnologia estava fora de cogitação.

Os técnicos de Campinas trabalhavam de outra maneira. Por meio de programas de computador elaborados especialmente para este fim, os peritos fotografavam o crânio dos esqueletos reunidos em laboratório e sobrepunham às imagens retratos feitos com as pessoas ainda vivas. Media-se tudo: a distância entre os olhos, o tamanho da testa, a posição dos ouvidos em relação ao queixo. Seis pontos de coincidência total entre crânio e fotografia eram considerados suficientes para confirmar a identificação. Especialistas da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, ligada à Unicamp, foram convocados para atuar junto aos médicos do DML. Se a pessoa tivesse feito algum molde dentário em vida, sobrepunham-se imagens desse molde a imagens da arcada dentária do esqueleto, também de modo a verificar se elas “encaixavam”.

Somavam-se à sobreposição de imagens outras pistas igualmente importantes: uma fratura antiga poderia deixar marcas ainda visíveis nos ossos, assim como uma má formação congênita. Se fulano usava dentadura, beltrano tinha uma prótese de ouro no lugar do segundo molar ou cicrano havia quebrado o nariz mergulhando na piscina do clube aos 12 anos de idade, todas essas eram informações preciosas para se criar um perfil apto a ser comparado com a memória daquelas ossadas.

Como as 1.049 ossadas retiradas da vala poderiam pertencer, em tese, a qualquer uma das 1.500 pessoas que, segundo os livros do Cemitério Dom Bosco, foram exumadas entre 1975 e 1976 sem nenhum registro do local de reinumação, só havia uma forma de dar início ao processo de identificação: comparar as características das ossadas às características pessoais dos desaparecidos cujas famílias procurassem a equipe do DML para requisitar a análise. A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos teve a precedência nesse processo. Rapidamente, seus membros reuniram informações sobre os militantes que, segundo os livros de registro, tinham dado entrada no cemitério na primeira metade dos anos 1970, e acionaram pais, mães, irmãos e irmãs em busca de fotografias e dados antropométricos de cada um. Quanto mediam? Quantos anos tinham quando desapareceram? Que ossos haviam fraturado na infância ou adolescência? Haviam extraído algum dente?

Enquanto isso, os membros da Comissão de Investigação da Prefeitura de São Paulo consultavam, pela primeira vez, os arquivos do IML. As informações obtidas nos laudos eram muito valiosas. Apesar da omissão em relação às torturas e às responsabilidades pelos assassinatos daqueles jovens, quase sempre os laudos listavam perfurações provocadas por armas de fogo e um ou outro hematoma. Para os peritos, essas indicações faziam enorme diferença. Se o laudo do IML atestava que determinado cadáver tivera o parietal esquerdo perfurado por um projétil, seria possível descartar os crânios que estivessem com o parietal intacto. Por extensão, investigar todos os crânios com o parietal esquerdo perfurado ou esmigalhado parecia ser um bom ponto de partida.

Além dos exames necroscópicos, o arquivo do IML, o mesmo muquifo em que o repórter Caco Barcellos descobrira os laudos com a letra T de “terrorista” enquanto investigava os crimes da Rota, guardava os horripilantes livros de fotografias. Conforme a legislação vigente, como ratificado por servidores do IML durante a CPI, todos os mortos sem identificação, indigentes ou não, tinham de ser fotografados pelos legistas. Registrados por meio de um número, ganhavam pastas e eram catalogados na burocracia interna para uma improvável identificação futura. Uma foto de frente, outra de perfil, eventualmente alguma outra imagem de outra parte do corpo, sobretudo que pudesse contribuir com sua identificação – uma tatuagem, um sinal de nascença – e pronto: estava montado o dossiê do desaparecido. Essas imagens não somente poderiam ajudar os peritos da Unicamp a confirmar características antropométricas ou o ponto exato em que determinada bala atingiu o corpo da vítima como, algumas vezes, poderiam configurar as únicas fotografias disponíveis para a identificação.

As pesquisas realizadas nos arquivos do IML e nos livros de entrada do Cemitério Dom Bosco, possibilitaram a descoberta do paradeiro de diversos militantes tidos como desaparecidos. Uma vez que os restos mortais de alguns deles não tinham sido exumados de suas sepulturas originais, foi solicitada sua exumação e encaminhamento à Unicamp, também para comprovar sua identidade. Casos como estes se repetiram entre 1990 e 1991. Confirmado o provável local de enterro, com base nos documentos oficiais, sobretudo do IML, eram feitas exumações e tudo seguia para a Unicamp.

***

— Bateu! Dr. Badan, a ossada 47 bateu!

O legista olhou para o assistente e permaneceu em silêncio. Se fosse mesmo verdade, aquela seria uma notícia maravilhosa, a primeira ossada identificada entre as 1.049 trazidas de Perus.

— É melhor o senhor vir conferir.

O chefe do departamento repassou item por item o dossiê da ossada 47.

— É, bateu! — o médico confirmou. — Seis pontos de concordância na sobreposição de imagens. A mesma altura presumida.

— O mesmo sangue tipo O do irmão e do sobrinho também. Fizemos a tipagem em material retirado da medula óssea de uma das vértebras. Só não deu pra verificar o Rh.

— Perfeito. E essa informação sobre o maxilar, confere?

— Sim. Ele era edentado. Completamente edentado na arcada superior.

Edentado é quem não tem dentes. Trabalhador rural de Votuporanga (SP), militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), preso no sul do Pará pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e torturado até a morte no Dops de São Paulo em 18 de abril de 1971, Dênis Casemiro não tinha nenhum dente na parte de cima.

O anúncio foi feito no centro de convenções da Unicamp no dia 8 de julho, uma segunda-feira, dez meses após a abertura da vala. Erundina e o secretário estadual de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, empossado no mês anterior junto com o novo governador Antônio Fleury Filho, estavam presentes. Na ocasião, foi anunciada também a identificação de Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana, militantes da ALN assassinados em 1973 e enterrados em sepulturas individuais na quadra 7 do Cemitério Dom Bosco. Por não estarem nas quadras 1 e 2, as ossadas de Sônia e Bicalho Lana não foram transferidas para a vala clandestina. Os pais de Sônia chegaram a exumar os despojos da filha e os sepultaram no Rio de Janeiro em 1981, mas depois descobriram que aqueles ossos eram de um homem. Agora, com os trabalhos de análise em andamento na Unicamp, solicitaram a exumação de outras ossadas nas sepulturas em que seus corpos teriam sido enterrados como indigentes. Em menos de um mês, os peritos da Unicamp confirmaram as identidades de Sônia e Bicalho Lana.

Uma missa de corpo presente foi celebrada na Catedral de São Paulo em homenagem aos três desaparecidos finalmente encontrados, um na vala e dois em sepulturas individuais. Em 11 de agosto de 1991, um domingo, os restos mortais de Dênis Casemiro, Sônia de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana foram finalmente velados, duas décadas após a morte do primeiro e 18 anos após a morte do casal. Era Dia dos Pais, e coube a João Luiz de Moraes, pai de Sônia – assassinada aos 27 anos após ter sido estuprada com um cassetete e ter os seios decepados pelos torturadores –, fazer um emocionante discurso sobre a violência dos anos de chumbo e o longo tempo de espera para sepultar sua filha. “Essas pessoas foram chamadas de subversivas por quem feriu a lei e a ordem constitucional”, disse o pai, tenente-coronel do Exército Brasileiro, agora na Reserva. “Por isso foram perseguidas, sequestradas e finalmente mortas. A sanha assassina dos militares que compuseram o sistema repressivo não encontra paralelo em nossa história”.

Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal de São Paulo, presidiu a cerimônia. As três urnas foram expostas no altar da Sé, cobertas com bandeiras do Brasil. “Tristeza por descobrir um Brasil tão covarde”, comentou o arcebispo na homilia. Não foi a primeira nem seria a última manifestação do cardeal contra a ditadura. Nem seu primeiro envolvimento com o tema da vala clandestina. Já no dia da descoberta das ossadas em Perus, Dom Paulo estivera no local e recomendara aos membros da Comissão Justiça e Paz que acompanhassem os trabalhos e oferecessem o apoio necessário. Em 2 de novembro, transferira a tradicional missa de Finados para o Cemitério Dom Bosco e, ao lado do bispo de Brasilândia, Dom Angélico Sândalo Bernardino, postou-se no topo do barranco vizinho à vala, de onde as ossadas ainda não tinham sido retiradas por completo. Moradores do bairro e familiares de mortos e desaparecidos puseram-se ao redor daquele improvável sítio arqueológico e rezaram ali, debaixo do sol. “Não matarás!”, dizia uma faixa.

Os ossos de Dênis Casemiro foram finalmente sepultados em Votuporanga no dia 13 de agosto de 1991, uma terça-feira. Na véspera, Ivan Seixas acompanhou o traslado das ossadas para o interior, representando a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. O caixão foi velado na Câmara Municipal durante a madrugada e, de manhã, transferido para a Matriz, onde foi celebrada missa de corpo presente. No altar, ao lado do caixão, novamente coberto com a bandeira do Brasil, um exemplar do livro Brasil: Nunca Mais, publicado seis anos antes, no qual o nome de Dênis fora incluído entre as vítimas fatais da ditadura mesmo sem que o corpo tivesse sido localizado. Aos 65 anos, seu irmão mais velho, Isaías, lembrou que outro irmão, Dimas, também fora morto pela repressão e continuava desaparecido. Para ele, o assassinato dos dois demonstrava o “arrocho” da ditadura militar, que, segundo ele “queria se perpetuar no poder e, para isso, não se importava em matar e acabar com uma família inteira”.

***

Quase um ano se passou até que uma segunda ossada retirada da vala fosse identificada pela equipe de Badan Palhares. Em 25 de junho de 1992, uma quinta-feira, o centro de convenções da Unicamp recebeu novamente a prefeita de São Paulo e autoridades como o sub-secretário de Segurança Pública do Estado, Daniel Roberto Fink, e o secretário municipal de Assuntos Jurídicos da capital, Dalmo Dallari. Ali, acompanhado pelo reitor da Unicamp, Carlos Vogt, o médico legista Fortunato Badan Palhares anunciou a identificação dos restos mortais de Frederico Eduardo Mayr, também acompanhado das identificações de outras duas ossadas, não relacionadas à vala clandestina: Emanuel Bezerra dos Santos, militante do Partido Comunista Revolucionário, morto aos 26 anos e enterrado como indigente no cemitério Campo Grande, na zona sul de São Paulo, em 1973; e Helber José Gomes Goulart, militante da ALN, morto aos 29 anos e enterrado como indigente em Perus, também em 1973.

Estudante de arquitetura e militante do Movimento de Libertação Nacional (Molipo), o catarinense Frederico Mayr tinha 23 anos e estava na clandestinidade desde os 20 quando foi baleado na Avenida Paulista e torturado até a morte no DOI-Codi, em fevereiro de 1972. No livro do cemitério, o corpo deu entrada com o nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha, o que só se descobriu anos depois, quando o atestado de óbito emitido neste nome foi anexado ao processo de Mayr na 2ª Auditoria Militar. Após a abertura da vala clandestina e a divulgação de que as ossadas atribuídas a Eugênio Magalhães Sardinha estavam entre as mais de mil exumadas entre 1975 e 1976, a mãe de Mayr, Gertrud, viajou até São Paulo para entregar fotografias e preencher o formulário elaborado pela equipe de medicina legal: altura, peso, idade, cor da pele, alguma deficiência física, alguma fratura ou extração dentária.

Pouco mais de um ano depois, em junho de 1992, Gertrud pôde ver na tela de um computador da Unicamp a sobreposição do retrato que havia levado ao registro fotográfico de um crânio. Foi como se ela pudesse ver o filho novamente vivo na tela. Ele estava ali, diante dela, sorridente, com o mesmo bigode, os mesmos olhos claros, o mesmo cabelo loiro. As medidas coincidiam, todas elas. Só agora, vinte anos depois, Gertrud viveria o luto normal de uma mãe que perde o filho. Antes, segundo ela, era um sentimento íntimo e dolorido, mas que não se externava.

— Não que eu estivesse reprimindo, mas não conseguia sair — afirmou, em depoimento para o documentário Vala comum, de João Godoy, lançado em 1994. — Agora, é o normal. É o que acontece a qualquer pessoa, a qualquer mãe ou irmão quando perde alguém da família. Ver a pessoa, enterrar a pessoa, saber que a pessoa está morta. Eu comecei a viver isso só agora.

Foi um alívio. Finalmente, Gertrud, chamada de Tula pelos familiares e amigos, poderia velar o corpo do filho. Chorou por uma semana como se a perda fosse recente. Repetindo a experiência do ano anterior, o cardeal de São Paulo celebrou uma missa na Sé, as três urnas cobertas com bandeiras do Brasil. Os ossos de Frederico foram finalmente enterrados no jazigo da família, no Rio de Janeiro, para onde haviam se mudado quando Frederico era criança. Tula sentia-se grata por ter o filho identificado depois de tanta espera. Grata a quem descobriu a vala, grata a quem teve a coragem de revelá-la, e grata, sobretudo, aos peritos que haviam identificado os ossos.

Depois de Frederico, nenhum outro desaparecido da vala seria identificado pela equipe de Badan Palhares.

***

O relatório que chegou às mãos do deputado estadual Renato Simões em meados dos anos 1990 era chocante. Sacos de ossos amontoados, uns sobre os outros, espalhados pelo chão. Alguns com cadeiras por cima. Ossadas úmidas, cobertas de fungo. Um cenário desolador, com sujeira e abandono, onde deveria haver ordem e asseio científico.

As funcionárias responsáveis pela limpeza do Departamento de Medicina Legal não se conformavam com tamanho descaso. No início reticentes, fugindo da sala das ossadas como quem vê fantasma, fazendo o sinal da cruz e resmungando qualquer coisa sobre virgens e santas, as moças acabaram se solidarizando com aquele ossário insólito e absolutamente informal. Perceberam que a sala inundava em dias de chuva e, quando isso ameaçava acontecer, corriam para retirar os sacos do chão e os colocar de forma improvisada sobre os móveis. Principalmente, rezavam. Ou oravam, conforme a fé de cada uma. Rezavam porque sabiam que aqueles mortos não estavam em paz.

— Esses ossos estão querendo voltar pra debaixo da terra — dizia uma.

— Isso é jeito de cuidar dos mortos? Que desrespeito! — indignava-se outra.

Àquela altura – e isso estava claro para as faxineiras – os peritos já não periciavam mais nada. E as autoridades, sempre dispostas a aparecer no jornal e a dar entrevista para a TV com promessas de concluir a análise dos ossos antes do fim do mandato, haviam simplesmente sumido. Desde 1993, nada de novo acontecia por ali.

— Sei não — comentava uma das funcionárias. — Se não tem ninguém pra olhar por essas almas, é bom a gente tomar conta delas.

O ano de 1993 fora terrível para as pesquisas no Departamento de Medicina Legal. Em março daquele ano, Luiza Erundina transmitira o cargo de prefeita para seu sucessor, Paulo Maluf. O novo prefeito representava tudo aquilo que os familiares de mortos e desaparecidos mais temiam: um político apoiado pelos generais, que fora prefeito e governador biônico, opositor de Tancredo Neves no colégio eleitoral, apologista da Rota e de seus métodos e, principalmente, o mesmo prefeito que, na primeira passagem pela Prefeitura, fora o responsável pela construção do Cemitério Dom Bosco. Um dos primeiros atos de Maluf ao reassumir a Prefeitura, em março de 1993, fora exonerar Toninho Eustáquio, o administrador que havia revelado a existência da vala clandestina.

Simultaneamente, a Secretaria Estadual de Segurança Pública entrara também num período confuso, caracterizado por suspeição e denúncias, desde que uma operação da Polícia Militar resultara na morte de mais de uma centena de presidiários, chacinados por agentes da PM na Casa de Detenção de São Paulo, no bairro do Carandiru, em outubro do ano anterior. Três dias após a chacina, o governador exonerou o secretário Pedro Franco de Campos, o mesmo que estivera no evento de divulgação das primeiras identificações, em 1991, e o substituiu por um professor de Direito e procurador do Estado que permaneceria à frente da pasta até o final do ano seguinte: Michel Temer.

Com Maluf na Prefeitura e Fleury no governo, obviamente desgastado pelo episódio do massacre, faltava vontade política para que as coisas andassem. Novos recursos não chegavam ao Departamento de Medicina Legal, e a verba já empenhada – bem menos do que havia sido prometido por Erundina e Quércia anos antes – havia secado.

Familiares de mortos e desaparecidos acusavam Badan Palhares de gastar o dinheiro do convênio na construção de um novo edifício para o departamento: um prédio com 1.200 metros quadrados, auditório para 120 pessoas, laboratório de DNA e o primeiro laboratório de fonética forense do Brasil, como o próprio médico legista descreveria, orgulhoso, no livro de memórias Por que converso com mortos, publicado em 2007.

Enquanto isso, as análises das ossadas eram negligenciadas. Não havia audiências com as famílias, nem boletins informativos, nem compartilhamento de informações, nem o anúncio de novas identificações. Aparentemente, as análises haviam sido interrompidas. E tudo o que Palhares fazia, quando procurado, era exibir o mesmo relatório mostrado seis meses antes – um ano antes, um ano e meio antes – e reclamar da falta de recursos.

Segundo o legista, não havia elementos comprobatórios suficientes para identificar mais ninguém. Ele não estava totalmente errado em relação a isso. Para emitir um laudo categórico, faltava uma comprovação genética, tecnologia de que a Unicamp não dispunha. Sua equipe havia separado as ossadas de Perus em quatro diferentes grupos conforme a presença de elementos comprobatórios. A ausência de dentes na arcada superior da boca de Dênis Casemiro, por exemplo, era uma característica muito especial que, associada a outros pontos de convergência, tornaria praticamente impossível que aquele crânio fosse de outra pessoa. Por isso sua ossada foi colocada no primeiro grupo e rapidamente identificada. A maioria das outras ossadas, no entanto, ofereciam um número menor de similaridades. Em muitos casos, o que se tinha eram ossos fragmentados, que tornavam ainda mais complexa a identificação por sobreposição de imagens.

Já em 1991, Badan Palhares havia separado as ossadas com maior possibilidade de serem alguns dos desaparecidos reclamados por familiares, como Flávio Molina e Dimas Casemiro. Suas fichas estavam catalogadas. A tecnologia de que dispunha, no entanto, não bastava para se ter um veredicto. A partir de 1993, o legista repetia isso a quem o procurasse, ao mesmo tempo em que reclamava diuturnamente da falta de dinheiro, tanto para adquirir equipamentos mais modernos quanto para remunerar as horas extras de sua equipe. Em outras palavras: não fazia sentido fingir que continuaria trabalhando nas ossadas. Os trabalhos dificilmente avançariam sem um equipamento que permitisse extrair DNA dos ossos, por exemplo.

Naquele momento, o Brasil já detinha tecnologia para extrair DNA de amostras de sangue e de mucosa, mas não de ossos. Sem perspectiva de sucesso nas condições de que dispunha, o chefe dos trabalhos partira intuitivamente para o tudo ou nada: ou obtinha recursos para introduzir a Unicamp na era da genética forense, ou o convênio poderia ser encerrado com apenas duas ossadas identificadas num universo de 1.049. Uma alternativa seria enviar amostras para Londres, o que também exigiria recursos elevados, e para isso havia a necessidade de mais dinheiro. O problema é que ele não combinou com os russos: nem com os familiares, nem com a reitoria. E, por descaso ou de forma deliberada, acabou incorrendo em ações que tumultuaram ainda mais a relação com familiares de desaparecidos e militantes dos direitos humanos.

Num dos episódios, conforme se descobriu em reunião entre representantes da Unicamp e familiares de mortos e desaparecidos realizada em outubro de 1995, Badan Palhares encaminhara fragmentos de ossos para a Universidade Federal de Minas Gerais, numa época em que pesquisadores desta universidade tentavam realizar extração de DNA de ossos humanos. Mas o fizera sem autorização de ninguém. Nem comunicara as famílias. Ou seja, o médico não hesitara em colher amostras daquelas ossadas, já tantas vezes maltratadas pelo tempo e pelas condições em que tinham sido ocultadas, e as enviara para outro Estado na surdina. Mais grave: alguns ossos teriam sido despachados para a Alemanha sem qualquer comunicação prévia, conforme admitira o próprio legista.

Em outro episódio, Palhares foi acusado de agir de má fé ao mudar uma declaração por razões políticas. Ainda em 1991, após participar da exumação de uma ossada em Xambioá, na região do Araguaia, que poderia pertencer à guerrilheira Maria Lúcia Petit, morta pela repressão em 1972, Palhares afirmara, no local, que as características batiam e que sua identidade seria confirmada tão logo o material chegasse à Unicamp. Na viagem de volta, no entanto, Palhares fez escala em Brasília, onde teria se encontrado com Romeu Tuma, o todo-poderoso da Polícia Federal, e mudara sua versão: aquela ossada não poderia ser da guerrilheira, declarou a um jornal. De acordo com o tecido de que era feita a calcinha, deveria se tratar de uma prostituta, vítima de crime passional no norte do Tocantins.

Cinco anos depois, em abril de 1996, o jornal O Globo publicou duas fotos de Maria Lúcia Petit morta, o rosto escondido num saco plástico e o corpo deitado sobre um paraquedas do Exército. O tecido do paraquedas parecia ser o mesmo encontrado junto à ossada exumada em Xambioá. Familiares foram cobrar explicações de Badan Palhares, que voltou a cogitar a possibilidade de ser Maria Lúcia.

— O problema é que não podemos cravar — ele disse. — Faltam elementos comprobatórios.

— Mas de que mais o senhor precisa?

— Um molde dos dentes, uma radiografia da boca, um dentista que tenha tratado dela quando viva, por exemplo.

Irmã de Maria Lúcia, Laura espumava de ódio. Por diversas vezes, ainda em 1991, ela havia insistido para que Badan Palhares recebesse o dentista. O legista havia desprezado sua sugestão, como se não tivesse serventia alguma, martelando a teoria de que a ossada era de uma prostituta. Agora, confrontado pela fotografia no jornal, Palhares mudara o discurso. Laura conseguiu levar até a Unicamp dois dentistas que haviam atendido a irmã e feito uma coroa num dente dela em 1967. Palhares não teve mais como negar.

— Agora podemos atestar que se trata de Maria Lúcia Petit — o médico afirmou.

***

Essas histórias corriam de boca em boca em grupos como o Tortura Nunca Mais, até que a imagem de Badan Palhares ruiu de forma irreversível. O mesmo médico que despertara sentimentos de gratidão nos familiares de Frederico Eduardo Mayr e Dênis Casemiro agora era tratado como impostor, mercenário, ou, na melhor das hipóteses, negligente.

Nesse contexto, as fotografias feitas na sala em que as ossadas eram armazenadas caíram como uma bomba nas reuniões da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

— Inaceitável! — diziam. — Esse crápula vai desaparecer com as ossadas. Elas vão se misturar, apodrecer, esfarelar, e nunca mais um dos nossos será identificado.

A angústia era especialmente maior entre os familiares dos desaparecidos cujas ossadas tinham maior chance de estarem na vala – uma vez que seus corpos tinham sido enterrados nas quadras 1 e 2 e exumados entre 1975 e 1976 sem indicação de local de reinumação – como Dimas Casemiro, Flávio Molina, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira. Estendia-se também a todos que tinham esperança de localizar seus mortos, inclusive as famílias de Marlene Rachid Papembrok e Olímpio de Carvalho, dois desaparecidos que não tinham nenhuma atividade política, mas que sumiram em São Paulo no início dos anos 1970. Tanto os filhos de Olímpio quanto uma irmã de Marlene requisitaram à equipe da Unicamp que incluíssem seus familiares na busca e enviaram a documentação necessária. Uns mais, outros menos, todos depositavam suas esperanças na perícia conduzida por Palhares e eram igualmente vítimas do evidente descaso e da aparente procrastinação.

Renato Simões presidia a recém-criada Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) quando as fotos chegaram até ele, ainda em 1996. Entregues por Maria Cristina Von Zuben, professora de ética médica na Faculdade de Medicina da Unicamp e ex-presa política, aquelas imagens acabaram deflagrando um processo irreversível de reivindicações junto à universidade. Pressionado, Badan Palhares decidiu que os trabalhos de análise e identificação estavam concluídos, uma vez que não havia por onde avançar, e sugeriu que as ossadas fossem devolvidas à Prefeitura de São Paulo.

— O prefeito é o Maluf — reagiram os familiares. — Imagina o que pode acontecer se essas ossadas passarem à responsabilidade do Maluf.

Estabelecido o impasse, o Secretário Estadual de Justiça, Belisário dos Santos Júnior, tratou de convocar uma reunião na própria Secretaria de Justiça. O Estado de São Paulo era agora governado por Mário Covas, sobre quem já não havia a mesma resistência que o governo Fleury provocara em sua etapa final. No âmbito federal, seu colega de partido, Fernando Henrique Cardoso, havia promulgado em dezembro do ano anterior a lei 9.140, que reconhecia como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período de 1961 a 1979. A mesma lei, fortemente influenciada pelos trabalhos realizados pelos familiares após a abertura da vala, também criara a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, responsável por analisar novos casos. Finalmente, contava pontos em favor de Belisário seu engajamento junto à Comissão Justiça e Paz de São Paulo, aliada na busca por identificações dos mortos e desaparecidos.

Em 30 de outubro de 1996, tanto o reitor quanto o procurador geral da Unicamp viajaram até São Paulo para buscar uma solução no gabinete de Belisário. Na reunião, ficou decidido que as ossadas continuariam na Unicamp, mas Badan Palhares seria necessariamente afastado da coordenação. A reitoria se comprometia a responder por escrito a todas as perguntas encaminhadas pelos familiares e a aceitar a presença de um perito internacional como observador dos trabalhos. A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, enviaria legistas de sua estrutura para acompanharem o processo.

Naquele mesmo dia, Badan Palhares foi substituído pelo médico legista José Eduardo Bueno Zappa, que já atuava como seu braço direito no DML e anos mais tarde se tornaria seu sócio numa clínica particular de patologia. A despeito da cumplicidade entre os dois, a relação do substituto com os familiares parecia preservada. As perguntas enviadas à reitoria só foram respondidas em março, mais de três meses depois. O perito enviado pela Secretaria Estadual de Segurança Pública, Carlos Delmonte, concluiu que a equipe de Badan Palhares não havia cometido nenhuma imprudência, descaso ou falta de zelo na condução dos trabalhos. E nenhum perito internacional foi à Unicamp nos meses seguintes.

No dia 14 de abril de 1997, Zappa enviou um relatório ao reitor da Unicamp acompanhado de um ofício em que resumia os trabalhos desenvolvidos em relação às ossadas do Cemitério Dom Bosco e reiterava a falta de perspectiva em relação a novas identificações. Foi a primeira vez que um relatório foi entregue aos familiares. “Das 1.047 ossadas restantes, duas estão em processo de identificação por exame de DNA na Universidade Federal de Minas Gerais”, escreveu o novo chefe do departamento, referindo-se a mais uma tentativa de identificação que não daria em nada. “Isto posto, magnífico reitor, damos por concluída a etapa dos trabalhos referentes a 1.045 das 1.049 ossadas da vala comum do Cemitério de Perus, presentemente sob a guarda do DML da Unicamp, todas devidamente catalogadas e numeradas, as quais, sob a ótica pericial da metodologia utilizada, estão a partir de hoje à disposição da justiça”.

Em fevereiro do ano seguinte, esgotadas as possibilidades de avançar com as análises em Campinas, iniciaram-se as tratativas para que as 1.047 ossadas restantes fossem transferidas para o Instituto Oscar Freire, vinculado à Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, o que só seria consumado em 2001.

O Departamento de Medicina Legal da Unicamp foi extinto em 1999, sem que nenhum outro desaparecido fosse identificado. Badan Palhares, ainda se envolveria em outros casos de grande visibilidade e repercussão, entre eles a produção, em 1996, de um controvertido laudo em que afirmava que Paulo Cesar Farias, tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, fora assassinado pela namorada Suzana Marcolino. Ela teria praticado suicídio em seguida. A versão, na época, foi amplamente contestada por outros peritos, que entendiam o crime como duplo homicídio. Queima de arquivo, diziam. PC Farias, pivô dos escândalos de corrupção culminaram com o impeachment de Collor em 1992, sabia demais. Palhares manteve-se no cargo de professor titular de medicina legal até 2003, quando se aposentou.

Antes que a primeira década do século XXI chegasse ao fim, as ossadas de um terceiro desaparecido político exumadas da vala clandestina seriam identificadas. E Badan Palhares viraria réu numa Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal, acusado de “descaso, negligência, desinteresse e desrespeito perante o inalienável direito das famílias de enterrar seus entes queridos”.

 

Leia no próximo capítulo: Um terceiro desaparecido é identificado. Badan Palhares, Paulo Maluf e Romeu Tuma são processados. O Estado brasileiro é condenado a retomar as análises das ossadas. O uso de valas clandestinas para ocultar vítimas da ditadura é denunciado pelas Comissões da Verdade.

Foto: Reprodução

 

Se no teu distrito
Tem farta sessão
De afogamento, chicote,
garrote e punção
A lei tem caprichos
O que hoje é banal
Um dia vai dar no jornal.

Chico Buarque, em “Hino da repressão”

 

— Sala das ossadas, boa tarde!

Ivan brincava ao telefone como uma forma de desopilar, aliviar a tensão, desanuviar a si mesmo e às outras integrantes da Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus. Suzana e Amelinha davam risada, surpreendidas pelo chiste aleatório em meio a um trabalho naturalmente triste e sombrio.

Não havia osso algum na “sala das ossadas”. Todo o material encontrado na vala havia permanecido lá, no cemitério, sob vigilância. No dia da abertura, não mais do que 50 sacos tinham sido retirados da terra e transferidos para uma sala do prédio da administração. As demais ossadas seriam retiradas da vala durante o mês de outubro, separadas e acondicionadas com a supervisão de peritos e médicos legistas.

Uma mesa e um telefone era tudo o que havia na sala da comissão, instalada no térreo do Pavilhão Padre Manuel da Nóbrega, no Parque do Ibirapuera, onde funcionava a Prefeitura – e onde, anos depois, funcionaria o Museu Afro Brasil. Para os três inquilinos, era mais do que suficiente. Seu olhar estava voltado para o lado de fora: as atividades na Comissão Parlamentar de Inquérito que se desenrolava na Câmara Municipal, a busca pelos arquivos da ditadura, a ampla investigação ainda por fazer. Trabalhavam quase sempre na rua, no encalço de quem tivesse explicações para dar, movidos por uma instigante sensação de que, finalmente, o paradeiro dos desaparecidos estava prestes a ser revelada.

A prefeita Luiza Erundina havia sido muito assertiva ao instalar a comissão de investigação logo no dia seguinte à abertura da vala. E também ao convidar Ivan, Suzana e Amelinha para integrá-la, todos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Originalmente, conforme publicado no Diário Oficial do Município no dia 6 de setembro, o “grupo de acompanhamento dos trabalhos periciais de identificação das ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco” foi formado pelos legistas Fortunato Badan Palhares e Nelson Massini, da Unicamp, que assumiriam a coordenação dos trabalhos de catalogação e análise das ossadas, Dalton F. de Assis e Vera Lúcia Figueiredo Osoegawa, do Serviço Funerário, Walter Piva Rodrigues, da Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos, e Fábio Ulhoa Coelho, da Secretaria do Governo Municipal. Os familiares entraram em seguida.

— Não quero uma comissão de burocratas — declarou a prefeita. — Quero que vocês, familiares, assumam essa comissão para que o resultado não seja somente um relatório impresso em papel timbrado.

Ivan e Suzana tinham vínculos bastante pessoais com o Cemitério Dom Bosco. Ali foram enterrados o pai de Ivan e o marido de Suzana. Desde os anos 1970, os dois tinham ciência da existência de uma vala clandestina naquele cemitério, destino de tantas ossadas exumadas sem indicação de local de reinumação, e por muito tempo haviam esperado uma oportunidade para deflagrá-la. Amelinha, por sua vez, militara no PCdoB e tinha uma história de resistência vinculada à guerrilha do Araguaia. Ali tombaram seu cunhado, André Grabois, e o pai dele, Maurício, em 1973. Sua irmã, Crimeia, estava grávida quando foi capturada pelos militares. Foi torturada com o bebê na barriga e deu à luz na prisão. Já Amelinha fora torturada no DOI-Codi sabendo que o filho Edson, de 5 anos, e Janaína, 4, haviam sido sequestrados por seus algozes e estavam por ali enquanto os choques eram aplicados e a palmatória cantava. Ao final de uma das sessões de tortura, as crianças ingressaram na cela.

— Mamãe, por que a senhora está verde e o papai está azul? — perguntou uma das crianças. Eram os hematomas, as marcas inefáveis da truculência institucional.

Agora, em 1990, Amelinha era diretora do grupo Tortura Nunca Mais em São Paulo. E a filha Janaína, historiadora e testemunha ocular do arbítrio, dali a alguns meses ingressaria também na comissão.

Luiza Erundina deu total autonomia para Ivan, Suzana e Amelinha realizarem os trabalhos como julgassem apropriado. Pediu apenas que, surgindo algo especial ou que fosse sensível, que a avisassem para que não fosse pega de surpresa. A prefeita também orientou os membros da comissão a subir à sua sala, no andar de cima, e a interrompê-la sempre que fosse preciso. O caso das ossadas havia se tornado uma prioridade em seu governo.

No mesmo dia em que foi instalada, os membros da comissão especial de investigação se mandaram para o cemitério. Algo muito importante estava sendo retirado daquela sepultura coletiva, eles sabiam, e era preciso ficar atento. Havia uma guerra silenciosa a tourear, um clima permanentemente conflituoso. Que tipo de reação poderia vir de setores das Forças Armadas envolvidos com os crimes de tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres? Como garantir que as ossadas fossem preservadas, protegendo-as de vandalismo ou de alterações propositais?

No próprio dia 4 de setembro, poucas horas após a retirada dos primeiros sacos de dentro da vala, um delegado da 46ª Delegacia de Polícia, de Perus, determinara a apreensão imediata das ossadas.

— Nada disso — a prefeita decidiu. — A Prefeitura vai assumir este caso. Trata-se de um fato eminentemente político, muito mais do que policial, e este cemitério é do município. A municipalidade é responsável por esses ossos.

Outras tentativas de intromissão não tardariam a surgir, de modo que uma das primeiras tarefas da comissão especial de investigação foi definir, junto com a Prefeitura, alguns protocolos. Foram os familiares, por exemplo, que demoveram a prefeita da ideia de encaminhar as ossadas para análise pelo Instituto Médico Legal.

— O IML é parte do sistema de desaparecimento e ocultação — alertaram, em reunião com a prefeita na tarde de quinta-feira, 6 de setembro.

Eles tinham razão. Nos anos 1970, o IML fora responsável pela falsificação sistemática de exames necroscópicos, expediente utilizado para esconder a verdadeira causa da morte de militantes políticos e também a responsabilidade do Estado. Talvez o caso mais célebre tenha sido o laudo assinado em 1975 pelos médicos legistas Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana afirmando que o jornalista Vladimir Herzog, torturado até a morte no DOI-Codi, cometera suicídio. Segundo o exame, ele teria se enforcado com uma tira de pano amarrada a uma janela a 1,63 metro do chão, mais baixa do que ele, e o corpo fora encontrado com as pernas dobradas, numa cena evidentemente forjada para ocultar a morte por tortura. Também no IML, muitos corpos devidamente identificados foram despidos de suas vestes e de seus documentos para serem enterrados como indigentes. Entre 1971 e 1974, principalmente em Perus.

Representantes de entidades como a Comissão Teotônio Vilela e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos reforçaram a reivindicação dos familiares em audiência com a prefeita. Uma das informações que mais circularam na ocasião, deixando muitos de cabelo em pé, foi a de que o IML era dirigido por José Antônio de Mello, o mesmo médico responsável por assinar o laudo necroscópico do operário Manoel Fiel Filho, torturado até a morte no DOI-Codi no dia 16 de janeiro de 1976. Erundina entendeu o risco e, mais uma vez, fez eco às reivindicações dos familiares de mortos e desaparecidos.

— Me senti pressionada por essas entidades e confesso que estou insegura com relação ao IML — Erundina declarou ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 6. — Estou convencida de que o IML é mesmo um órgão suspeito.

Erundina precisou se reunir mais de uma vez com o secretário de Segurança Pública do Estado, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, a fim de costurar com ele uma alternativa que contemplasse a reivindicação dos familiares: as ossadas iriam para o departamento de medicina legal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma instituição de pesquisa seria mais adequada para esse trabalho do que um órgão ligado à polícia.

A partir daquele momento, nenhuma decisão seria tomada pela prefeita sem ouvir os familiares. Foi assim que Erundina determinou a remoção dos livros do cemitério para seu próprio gabinete, temendo que eles pudessem desaparecer. Foi assim, também, que a prefeita mandou lacrar a sala do cemitério em que as ossadas tinham sido guardadas e ordenou a catalogação de todas as ossadas antes que fossem transferidas para Campinas.

Em poucas semanas, Ivan, Suzana e Amelinha ficaram conhecidos nos corredores da Prefeitura como “trio calafrio”. Jornalistas os procuravam para saber a situação das ossadas e também para que falassem sobre as mortes e desaparecimentos que, até então, jamais haviam tido espaço na imprensa tradicional.

Em 13 de setembro, numa atividade que nada tinha a ver com a Comissão da Prefeitura, mas com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, que os três também integravam, Ivan, Suzana e Amelinha chegaram de surpresa ao IML, acompanhados por uma advogada e por repórteres e cinegrafistas de televisão, e flagraram uma reunião em que o diretor José Antônio de Mello estava reunido com outros diretores, um promotor e um delegado, tramando uma estratégia para fechar o “museu” ou desviar parte do acervo de modo a se livrar de qualquer material comprometedor. Foi um quiproquó. Suzana notou que o livro com registros e fotografias dos mortos de 1971 havia desaparecido. Amelinha se lembrou de que o governador havia entregado um cartão de visita para ela na semana anterior, durante audiência com a prefeita. Foi até um orelhão e ligou. Apresentou-se como familiar de mortos e desaparecidos e insistiu que tinha urgência em falar com o governador. Orestes Quércia a atendeu prontamente.

— Governador — ela disse —, nós estamos aqui no IML e o diretor não está deixando ninguém entrar, mandou lacrar o arquivo. E ele nem deveria ser diretor do IML, porque foi ele quem assinou o laudo falso do Manuel Fiel Filho.

Por telefone, o governador pediu que Amelinha voltasse no dia seguinte. Prometeu que afastaria o diretor do IML naquela tarde e que, a partir do dia seguinte, o IML estaria com as portas abertas para os familiares de mortos e desaparecidos. E assim fez.

Ao longo de um semestre, o trio calafrio daria muito o que falar. Principalmente, ajudaria a orientar e a acompanhar, dia após dia, as atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara Municipal.

***

A Câmara Municipal de São Paulo estava em ebulição na manhã daquela quarta-feira. Ainda era de manhã quando o vereador Júlio César Caligiuri Filho (PDT) protocolou um requerimento para que fosse instituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a origem e as responsabilidades quanto às ossadas encontradas na vala clandestina.

Júlio conseguira reunir rapidamente as assinaturas necessárias, tamanha a comoção despertada pela descoberta da vala. O requerimento também demonstrava o interesse do vereador em ir além do Cemitério Dom Bosco e investigar a possível existência de outras valas clandestinas em outros cemitérios da cidade. Dizia o texto:

“Considerando que ontem, 04 de setembro, foi aberta uma vala que continha dezenas de ossadas no Cemitério Dom Bosco, em Perus; considerando que suspeitas sobre a existência de uma vala onde seriam enterrados presos políticos desaparecidos existem desde 1977; considerando que dezenas de presos políticos desapareceram na década de setenta; considerando que o famigerado Esquadrão da Morte fuzilou e sumiu com dezenas de pessoas; requeremos, nos termos regimentais, a constituição de Comissão Parlamentar de Inquérito, com 7 membros e 90 dias de prazo de funcionamento, para apurar a origem e as responsabilidades sobre as ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco, em Perus, e investigar a situação dos demais cemitérios de São Paulo.”

O requerimento recebeu o carimbo e a assinatura do presidente da Câmara, o vereador Eduardo Suplicy (PT), que anunciou os sete membros da CPI durante sessão ordinária na terça-feira seguinte, 11 de setembro: Júlio César Caligiuri Filho (presidente), Aldo Rebello (PCdoB, relator), Tereza Lajolo (PT), Ítalo Cardoso (PT), Antônio Carlos Caruso (PMDB), Marcos Mendonça (PSDB) e Oswaldo Giannetti (PDS). Foi batizada de “Comissão Parlamentar de Inquérito: Desaparecidos”, embora nos bastidores e também nos jornais fosse mais frequentemente referida como “CPI de Perus” ou “CPI das ossadas”. Vencido o período de 90 dias predeterminado, a Comissão seria prorrogada por mais três meses. Na segunda etapa, Aldo Rebello foi substituído por Vital Nolasco, também do PCdoB, e a relatoria ficou a cargo de Tereza Lajolo.

Os trabalhos da CPI começaram sob tensão. Antes mesmo da primeira oitiva, pairava sobre a equipe um clima de ameaça permanente.

O primeiro susto foi causado pelo sumiço repentino de Toninho Eustáquio, o administrador do cemitério, no dia 11 de setembro. Boatos de todo tipo circularam quando Toninho não apareceu no trabalho naquela manhã de terça-feira, uma semana após a descoberta das ossadas. Soube-se, ao longo do dia, que Toninho havia telefonado para o diretor de cemitérios do Serviço Funerário Municipal por volta das 23 horas na noite anterior para avisar que vinha recebendo ameaças de morte e iria com a família para um lugar sigiloso. Também a prefeita de São Paulo ouvira a mesma queixa do administrador, por telefone. Erundina tomara a providência de acionar o secretário estadual da Segurança Pública, Antônio Carlos Mariz de Oliveira, e obtivera a garantia de proteção especial. Toninho voltaria ao trabalho no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, alegando apenas que a esposa passara mal e lhe pedira para que a levasse para a casa da irmã, na Zona Sul da cidade, e a acompanhasse ao posto de saúde. Duas semanas depois, seria a vez de Júlio César Caligiuri, o presidente da CPI, revelar que também estava sendo ameaçado. Ele e sua família haviam recebido dois telefonemas anônimos com ameaças de morte.

A CPI foi oficialmente instalada no dia 17 de setembro, treze dias após a revelação da vala. Foi o início de uma aventura sem precedentes. Pela primeira vez, seriam colhidos depoimentos de pessoas envolvidas no sistema de morte e desaparecimento de militantes políticos, como torturadores, agentes do Dops e do DOI-Codi, médicos legistas que haviam assinado laudos falsos, um ex-prefeito e um ex-governador.

Respaldado no artigo 33 da Lei Orgânica do Município, a CPI tinha poder de “tomar depoimento de autoridade municipal”, “intimar testemunhas” e “inquiri-las”. Se alguém fosse convocado e não comparecesse para prestar depoimento, poderia o presidente da CPI solicitar a condução coercitiva do depoente.

Antes de convocar autoridades envolvidas em denúncias de tortura, falsidade ideológica e colaboração com a truculência da ditadura, os vereadores consideraram adequado ouvir o diretor do serviço funerário, o administrador do cemitério e os sepultadores que trabalhavam no Cemitério Dom Bosco na primeira metade dos anos 1970.

Uma pergunta parecia mais urgente do que todas as outras: quem mandou construir aquela vala?

***

Faltavam vinte minutos para as 10h quando Toninho chegou ao Palácio Anchieta, sede do Legislativo Municipal, naquela manhã de quarta-feira, 19 de setembro. Subiu até o décimo andar e se dirigiu ao auditório Oscar Pedroso Horta. O burburinho no corredor fez aumentar sua ansiedade. Os últimos 15 dias tinham virado sua rotina de pernas pro ar. Ameaças, entrevistas, foto estampada no jornal, reunião com a prefeita, Toninho não estava acostumado com nada daquilo. E, definitivamente, preferia não ter que se acostumar.

Quando uma intimação expedida em seu nome foi entregue na sede do Serviço Funerário, cinco dias antes, Toninho percebeu que a coisa ficava cada vez mais séria. “V.Sa. encontra-se intimada para depor perante esta Comissão Parlamentar de Inquérito”, dizia o ofício com o timbre da Câmara Municipal. Arrolado como testemunha para a primeira sessão ordinária de oitiva de testemunhas da CPI, Toninho se dirigiu ao número 100 do Viaduto Jacareí, no centro da cidade. Ali, soube que outras três testemunhas tinham sido convocadas para depor na mesma data: Rubens da Costa, antigo funcionário do Serviço Funerário, Rui Alencar, atual superintendente do Serviço Funerário, e Pedro José de Carvalho, assistente administrativo do cemitério de Itaquera e antigo sepultador no cemitério do Lajeado quando houve incêndios criminosos no local.

Toninho foi o segundo a depor, depois de Rubens da Costa. Contou que foi admitido no Cemitério Dom Bosco em 1977 como assistente de administração e promovido a administrador no ano seguinte, ocasião em que se debruçou sobre os livros e procurou saber o destino das mais de 1.500 ossadas com indicação de exumação e sem local de reinumação. O número exato, conforme a comissão de investigação da Prefeitura apuraria a partir da análise dos livros, era de 1.564 corpos exumados. A diferença entre essas 1.564 e as 1.049 localizadas em 1990, conforme dedução dos peritos, seria a presença de aproximadamente 500 crianças com menos de 12 anos de idade, cujas ossadas não resistiram ao tempo. Muito tempo depois, surgiria a hipótese, jamais comprovada, de que uma segunda vala clandestina poderia ter sido construída no mesmo cemitério, em outro local, recebendo essas 500 e pouco ossadas.

Toninho confirmou ainda que obteve a informação sobre a existência da vala e sua localização ainda em 1978 e que, dois ou três anos depois, determinara a abertura parcial da vala para que o engenheiro Gilberto Molina pudesse observar a situação das ossadas, entre as quais deveria estar a de seu irmão desaparecido, Flávio Carvalho Molina. Finalmente, contou aos vereadores que, agora em 1990, ainda havia terra virgem na gleba 3 do cemitério, uma área onde poderiam ser construídas novas quadras, com novas sepulturas, caso houvesse necessidade. Com alguma hesitação, tentou deixar claro que, embora não tivesse acesso a informações oficiais, não fazia sentido a tese de que a exumação em massa daquelas 1.500 ossadas seria necessária para que houvesse espaço para novas sepulturas.

— Em 1977, o cemitério já estava totalmente ocupado? — indagou o presidente da CPI.

— Não — respondeu o administrador. — O cemitério é subdividido em glebas de quadras. Ele tem as glebas 1, 2 e 3.

Toninho explicou que, ao assumir o posto, em 1977, a gleba 3 acabara de ser inaugurada. Foi ele que a dividiu em duas porções, uma destinada ao sepultamento familiar, ou seja, com o conhecimento dos familiares e as devidas homenagens, e outra destinada ao sepultamento de todos os corpos sem identificação ou que não tivessem sido buscados por ninguém: os “indigentes”, os “desconhecidos” e os “não reclamados”.

— Na gleba 3, existe ainda um canto virgem, disponível para abertura de novas valas — afirmou.

Antes de terminar seu depoimento, Toninho informou aos vereadores que o administrador do cemitério na época da construção da vala chamava-se Dilermando Lavrador. E declinou os nomes de quatro sepultadores do Dom Bosco que já trabalhavam ali em 1976: João Aparecido André, Pedro Batista Gasperi, Bráulio Araújo Miranda e Nelson Pereira. Os quatro foram intimados para depor na quarta-feira seguinte. Antes disso, na sexta-feira, os membros da CPI ouviriam o superintendente Rui Alencar, que não pôde ser ouvido na primeira sessão em razão do horário, e o ex-diretor do Departamento de Cemitérios do Município, Fábio Pereira Bueno.

***

— Esse procedimento é totalmente irregular!

A afirmação proferida por Fábio Pereira Bueno no dia 21 fez os vereadores arregalarem os olhos. Júlio decidiu cobrar os detalhes:

— O senhor disse que a exumação em massa feita em 1976 é ilegal?

— Não, a exumação não, o sepultamento na vala comum.

— É ilegal?

— No meu entendimento, é.

— Daria para depreender, dessa sua afirmação, que houve a intenção de dificultar a identificação desses cadáveres, desses restos mortais?

— Não sei, não sei — Fábio desconversou. — Não tenho conhecimento disso. Se foi intencional ou não, isso deve ser perguntado para quem executou aquilo, e por ordem de quem, e a troco de quê.

Fábio Pereira Bueno tinha dirigido o Departamento de Cemitérios da Prefeitura (Cemit) entre abril de 1970 e abril de 1974. Deixara o cargo dois anos antes, portanto, da ocultação de cadáveres na vala clandestina. Naquela época, o Serviço Funerário era uma autarquia à parte e não cuidava dos cemitérios, somente dos funerais. À frente do Serviço Funerário estava Jaime Augusto Lopes, já falecido na ocasião da CPI. Desde que o assunto havia invadido as páginas dos jornais e o noticiário das rádios e das TVs, naquele dia 4 de setembro, Fábio havia feito algumas contas e chegara à conclusão de que o sepultamento daquelas mais de mil pessoas numa vala comum tinha ocorrido em 1976, logo após a decisão de reorganizar a cadeia dos sepultamentos na cidade.

A afirmação do ex-diretor do Cemit permitia aos membros da CPI concluir que aquelas mil e tantas ossadas tinham sido exumadas majoritariamente durante a gestão do prefeito Miguel Colasuonno, no cargo entre agosto de 1973 e agosto de 1975, e ocultadas ilegalmente na vala clandestina durante o mandato de Olavo Setúbal, prefeito entre agosto de 1975 e julho de 1979.

— Repare nas fotos que exibem os sacos com as ossadas sendo retiradas da vala — alertava o aspirante a detetive. — Com o auxílio de uma lupa, vemos que há nesses sacos a inscrição SFMSP, sigla do Serviço Funerário Municipal. Isso significa que essas ossadas foram acondicionadas nesses sacos por nós, após a integração do Cemit pelo Serviço Funerário, o que se deu justamente em 1976. Antes disso, não havia esses sacos, muito menos sacos gravados com a sigla SFMSP.

Após uma hora de audiência, Fábio Pereira Bueno não apenas confirmara as irregularidades por trás do emprego de uma vala comum, de terra, para o sepultamento dos remanescentes ósseos de mais de mil pessoas, como relatara um evento do próprio Legislativo intimamente ligado àqueles fatos: uma oportuna alteração na lei municipal possibilitara a exumação naquele ano.

Quando os primeiros corpos foram enterrados em Perus, em março de 1971, a legislação estabelecia um prazo mínimo de cinco anos de permanência em sepultura individual. Somente após cinco anos, e caso nenhum familiar demonstrasse interesse em transferir os restos mortais para uma sepultura particular, seria facultado ao poder público realizar a exumação e a reinumação, para que o espaço pudesse ser ocupado por um novo caixão. Já em 22 de setembro de 1971, seis meses e vinte dias após a inauguração do Cemitério Dom Bosco, a Câmara aprovou a redução desse prazo para três anos. A lei 7.656/71 foi promulgada pelo prefeito Figueiredo Ferraz em 7 de outubro daquele ano, de modo que, em outubro de 1976, todos os corpos sepultados em Perus entre o dia da inauguração e outubro de 1973 estavam aptos à exumação compulsória.

Tudo parecia conspirar para aquela ocultação em massa: o Executivo, o Legislativo e, segundo Fábio, também o governo estadual, por meio do Instituto Médico Legal. Como?

— Naquela ocasião, quem trabalhava no Instituto Médico Legal era o Harry Shibata — lembrou. — O diretor era o Dr. Arnaldo, e o Harry Shibata, se não me falha a memória, era o subdiretor. Eu tive conhecimento em entendimento com ele, porque nós fizemos a transferência de encaminhamento dos corpos que eram sepultados na Vila Formosa e no Lajeado, em Guaianases, para o Cemitério de Perus. Diga-se de passagem, é muito mais fácil ir ao Cemitério de Perus, saindo do Instituto Médico Legal, do que ir ao Cemitério de Vila Formosa ou do Lajeado, que é em Guaianazes, porque o Cemitério de Perus está localizado no quilômetro 25 da Via Anhanguera, de fácil acesso pela Avenida Sumaré e depois a Marginal. E o Instituto Médico Legal nos solicitou, e o próprio Serviço Funerário, que pudessem encaminhar os corpos para lá.

Fábio Pereira Bueno voltaria a depor na CPI em 18 de abril do ano seguinte, na última sessão da CPI, após um recesso parlamentar que se estendeu por todo o mês de janeiro. Dessa vez, foi prestar maiores esclarecimentos sobre um dos temas mais espinhosos suscitados ao longo do inquérito: o projeto de instalar em Perus um forno crematório.

***

— Essa vala foi aberta pelas minhas mãos.

O mistério da construção da vala começou a ser solucionado no dia 26 de setembro com os depoimentos dos quatro sepultadores citados por Toninho Eustáquio. O primeiro a depor naquela manhã, Pedro Batista Gasperi, apresentou-se como operador de máquinas e revelou o que os vereadores já desconfiavam: se era ele o funcionário responsável por conduzir a retroescavadeira, então o buraco na área do cruzeiro tinha sido obra sua.

O vereador Aldo Rebelo, então relator da CPI, interpelou o operador de máquinas:

— Segundo consta, o processo normal, quando se promove uma exumação, é transferir os ossos para ossários construídos em alvenaria. Nesse caso, a vala que o senhor abriu, o senhor como operador de máquina, foi destinada a esse tipo ou foi…?

— Veja bem, essa vala foi aberta porque essas 1.500 a 1.600 ossadas já estavam havia mais de um ano na sala onde é o velório atualmente — Pedro respondeu. — Todo mundo parava para olhar.

— Por que não foi feita de alvenaria?

— Isso eu não sei dizer.

Em seguida, cada um à sua maneira, os outros sepultadores confirmaram o relato. Nelson, por exemplo, deu mais detalhes sobre o intervalo entre a exumação em massa e a reinumação na vala clandestina.

— Esses corpos ficaram por quanto tempo no velório? — Tereza Lajolo perguntou.

— Aproximadamente um ano.

— Um ano?

— É.

— E, durante esse tempo, houve uma discussão sobre o que fazer com os ossos, “para onde nós vamos levar esses corpos”?

— Se alguém ficou discutindo isso, foram os administradores, os diretores.

— E o que vocês ouviam comentar sobre a questão do destino?

— A gente ouvia poucos comentários a esse respeito.

Dilermando Lavrador, antigo administrador do Cemitério Dom Bosco, assumiu para si a responsabilidade pela exumação nas sepulturas e também pela reinumação na vala clandestina.

— Fui eu que autorizei — contou em depoimento prestado à CPI no dia 1º de novembro. — Saiu um decreto da Prefeitura dizendo que aquele cemitério passaria a vender terrenos, ou seja, que haveria concessões. Como as quadras 1 e 2 eram a melhor área do cemitério, eu simplesmente achei por bem vender aquela parte, perto da entrada. Mandei fazer as exumações. Já havia decorrido o prazo normal que a lei permitia. Identifiquei os ossos com os nomes, dentro e fora dos saquinhos, e coloquei os sacos no velório. Naquela época o velório não era usado. Os ossos ficaram lá por aproximadamente cinco meses. Como não veio família nenhuma retirar, deve ter vindo umas oito ou dez procurar pelos ossos e nós não tínhamos ossário naquele cemitério, mandei fazer uma vala e coloquei os ossos lá.

Em todas as respostas, o mesmo tom de naturalidade e inocência, como se ninguém tivesse cometido nenhuma irregularidade, como se esconder esqueletos num buraco de terra, sem qualquer registro oficial na Prefeitura nem indicação nos mapas oficiais do cemitério, fosse algo prosaico, corriqueiro e legítimo. Havia, ali, a certeza da impunidade e certo voluntarismo, como se coubesse a um administrador ou a um diretor de autarquia encontrar um “jeitinho” para resolver um problema considerado de menor importância. Nenhuma preocupação com protocolo ou com a hipótese de algum familiar vir a procurar aquelas 1.500 pessoas.

Esse descaso oficial com a memória e com a hipótese de reclamação futura daqueles restos mortais pelas famílias, por mais remota que pudesse parecer para as autoridades, ficou ainda mais evidente para os vereadores quando a CPI passou a investigar o tema do crematório.

Uma planta baixa da incorporação do Cemitério Dom Bosco, elaborada em 1969 – um ano antes do início das obras – previa a construção de um “crematório eventual”, conforme a expressão gravada no papel. No final dos anos 1960, dotar a cidade de um crematório público tornou-se uma das obsessões do Cemit, o Departamento de Cemitérios da Prefeitura.

Fábio Pereira Bueno contou à CPI que participou do processo de licitação e aquisição dos fornos entre 1967 e 1968. Ficara entre duas propostas, um sistema elétrico e outro a gás, e acabara optando pela proposta apresentada pela empresa inglesa Downson & Mason. Seriam adquiridos quatro fornos a gás, aptos a cremar um corpo no intervalo médio de uma hora. Em 24 horas, os quatro fornos dariam conta de incinerar 96 cadáveres, mais que o dobro da demanda nos anos 1960, o que também demonstrava capacidade de planejamento: a cidade estava crescendo, a população aumentaria.

Fábio afirmou ainda que Paulo Maluf, prefeito de São Paulo entre 1970 e 1971, quando da construção do cemitério em Perus, autorizou a construção do crematório. E que a medida se fazia necessária em razão do volume crescente de corpos de indigentes, desconhecidos e não reclamados enterrados em São Paulo. Alegou que se enterravam quase 50 por dia. Os membros da CPI questionaram o número apresentado por ele, uma vez que, entre 1989 e 1990, quando a população do município era maior do que em 1970, a média de sepultamentos naquelas categorias foi de oito por dia.

No início da década de 1970, o mesmo plano de construir um crematório motivou uma viagem de Fábio Pereira Bueno para a Argentina, a fim de pesquisar os fornos utilizados naqueles países e principalmente sua legislação. Outro funcionário do Cemit esteve na Inglaterra para pesquisar a legislação, uma vez que a lei paulistana não autorizava a cremação de indigentes. Se fosse para levar a cabo o projeto de cremar desconhecidos, seria preciso propor um projeto de lei para a Câmara e trabalhar pela sua aprovação.

Por fim, os vereadores localizaram nos arquivos da Prefeitura uma carta da empresa inglesa Downson & Mason, fornecedora dos fornos, declinando da execução daquele serviço. Segundo a empresa, causava estranhamento o projeto de um crematório sem sala de cerimônia, ou seja, sem um local adequado para a realização de velório. Também estranhava o uso de portas basculantes, tipo vai-vem, no acesso aos fornos. A sala de cremação, segundo os ingleses, deveria ficar sempre em local discreto e longe da vista das pessoas, uma vez que os mais sensíveis ou incautos poderiam se chocar. Havia algo de muito errado e suspeito no projeto apresentado pela Prefeitura de São Paulo.

Antes mesmo de propor alterações no projeto ou procurar outra empresa para solicitar outro orçamento, houve a confirmação pelo departamento jurídico de que a prática da cremação não poderia ser aplicada sem o consentimento ou solicitação da família. Havia tratados internacionais nesse sentido. Caía por terra, portanto, o plano de cremar indigentes, desconhecidos e não reclamados. Inaugurado na Vila Alpina em 1975, o crematório municipal não poderia ser o destino das 1.500 ossadas já exumadas em Perus. Era preciso encontrar outra forma de desaparecer com aqueles ossos.

A vala clandestina foi o plano B.

***

Ao longo de seis meses, a CPI Perus/Desaparecidos ouviu 82 pessoas em 43 sessões. Entre os depoentes, os médicos legistas Harry Shibata e Isaac Abramovich entre outros funcionários do IML, o ex-governador Abreu Sodré, policiais de diferentes corporações e patentes, como os delegados Maurício Henrique Guimarães Pereira, Álvaro Luiz Franco Pinto, Renato D’Andréa e Armando Panichi Filho, agentes ligados ao Dops, como Samuel Pereira Borba e Gilberto Alves da Cunha, e ao DOI-Codi, como Dulcílio Wanderley Bochila e o agente Davi dos Santos Araújo, acusado de praticar torturas, inclusive contra Ivan Seixas e Amelinha Teles, ambos na plateia. De tanto ouvir o tal agente do DOI-Codi negar as acusações que lhe foram feitas, o vereador Ítalo Cardoso perguntou se Amelinha e Ivan topariam um acareamento com ele. Foi o início de uma das cenas mais exaltadas da CPI.

— Senhora Maria Amélia Teles, a senhora conhece este homem?

— Claro que conheço. Este é o Davi dos Santos Araújo, que usava o codinome de Capitão Lisboa quando me torturou.

— Mentira! — o delegado respondeu, exaltando-se. — Nunca torturei mulher feia.

— Então o senhor admite que torturava mulher bonita?

— Não vou responder isso. Não vou responder isso.

Minutos depois, Ivan Seixas repetiu a mesma apresentação de Amelinha.

— Conheço, sim. Este é o Capitão Lisboa do DOI-Codi.

— Ele está mentindo. Eu nunca vi essa pessoa.

— Claro que me conhece, David. Quando a gente chegou à Oban, vocês fizeram uma sessão de espancamento em mim e no meu pai. Mas eu dei um soco na tua cara que lançou você longe, a dois metros de distância, você não se lembra disso?

Exposto e atingido em seus brios, o Capitão Lisboa ficou nervoso.

— É mentira! Eu não participei desse espancamento — como acabara de acontecer com Amelinha, a frase do policial permitia a leitura de que ele havia participado de outros espancamentos. — O pai dele eu conheci. Era um sujeito forte, nortista, que andava com o Lamarca. Mas ele eu nunca vi.

— Conversa, Davi — Ivan insistia. — Se você conheceu meu pai, você me conheceu também. Nós chegamos juntos à Rua Tutóia. Você não está querendo admitir por ter levado um soco na cara de um rapaz de 16 anos.

A esta altura, o depoente já havia perdido as estribeiras e, inquirido pelos vereadores, perdera a capacidade de argumentar.

— Não vou responder. Não vou responder.

Até Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo no momento da construção da vala clandestina e responsável por comandar a controversa invasão da PUC-SP de 1977, quando centenas de estudantes foram expulsos de uma assembleia sob golpes de cassetetes e bombas de gás lacrimogênio, e presos em seguida, compareceu à Câmara para a oitiva.

Quem mais resistiu a depor foi o ex-prefeito Paulo Maluf, que governara a cidade pela primeira vez no período de construção e inauguração do cemitério, entre 1970 e 1971. Quando a vala foi aberta, em 4 de setembro, Maluf estava imerso na campanha eleitoral daquele ano, percorrendo meia dúzia de cidades por dia. Uma pesquisa feita pelo Datafolha entre os dias 17 e 19 de setembro colocou Maluf em primeiro lugar na disputa pelo governo do Estado, com 41% dos votos, o dobro do percentual atribuído a Luiz Antônio Fleury, o candidato da situação, com 20%. Às intimações enviadas a seu endereço, Maluf respondia sempre que não se opunha a depor, mas que só o faria após a eleição. Derrotado no segundo turno, Maluf finalmente concordou em marcar a oitiva para o dia 4 de fevereiro. Com uma condição: ele aceitaria falar em sua própria casa, e não na Câmara.

Os membros se dividiram. Um deles, o vereador Oswaldo Gianotti, filiado ao partido de Maluf, o PDS, insistia para que a condição colocada pelo ex-prefeito fosse acatada. O local não muda nada, ele dizia. Tereza e Ítalo, por sua vez, consideravam aquilo inaceitável. Maluf não exercia nenhum cargo público na ocasião, não tinha fórum privilegiado, por que essa regalia? Sugeriram apelar para a condução coercitiva. No fim, Júlio concordou em ouvi-lo em casa, na Rua Costa Rica, 146. E foi. Os dois vereadores do PT membros da comissão acharam um desaforo e não compareceram. Ivan Seixas, Amelinha Teles e Crimeia Schmidt, irmã de Amelinha, foram à casa de Maluf representando os familiares. Os três se recusaram a dar a mão ao ex-prefeito, o que rendeu outro momento fora da curva na história da CPI.

— Não vou dar a mão para o senhor. O senhor foi parte da ditadura.

— Lamentável, lamentável — reagiu o político, com o sotaque que lhe é característico. — Eu fiz até oposição à ditadura. Vocês são radicais.

Por fim, ainda no curso da CPI, os vereadores da Comissão lograram descobrir e visitar, sempre na companhia de familiares de mortos e desaparecidos, o Sítio 31 de Março de 1964, uma chácara no distrito de Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, dedicado à tortura e à execução de opositores políticos nos anos de chumbo. A revelação do local, frequentado por membros da repressão como os coronéis Erasmo Dias e Carlos Alberto Brilhante Ustra, ganhou destaque na imprensa e ajudou a aumentar o clima de indignação. Ali foram executados, entre outros, os militantes da ALN Antônio Benetazzo, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Moraes Angel Jones, todos eles enterrados sem conhecimento das famílias no cemitério de Perus.

Em 15 de maio de 1991, uma quarta-feira, foi feita a apresentação pública dos resultados da CPI. O relatório final foi encaminhado para a Prefeitura e para o governo do Estado. O processo, na íntegra, somava 6.142 páginas, entre transcrições dos depoimentos, cartas, intimações, cópias de reportagens, exames necroscópicos e outros documentos. Foi tudo arquivado na Câmara em 19 volumes. Em 4 de setembro de 1992, aniversário de dois anos da revelação da vala, o relatório final foi finalmente publicado: um caderno de 64 páginas com o título Onde estão?.

Integram o relatório final da CPI uma lista com quinze recomendações. À prefeita Luiza Erundina foi solicitada a apuração das responsabilidades pelos atos administrativos irregulares de funcionários municipais e a consolidação das leis que se referem aos sepultamentos no município, sobretudo de indigentes. Ao governador Luiz Antônio Fleury Filho, que se reorganizasse o IML, retirando-o da esfera policial, e que seja dada continuidade às investigações iniciadas no Sítio 31 de Março, entre outras. Ao presidente da República, Fernando Collor de Mello, a Comissão solicitou a abertura dos arquivos do Dops, do SNI e do DOI-Codi. Ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo foi pedida a instauração de sindicância para apurar a responsabilidade dos legistas pelas irregularidades ocorridas no IML. Outros ofícios foram enviados à Procuradoria Geral da República, ao Ministério Público Federal de São Paulo, ao Ministério da Justiça e ao presidente da Assembleia Legislativa, sempre com solicitações para que fossem tomadas as providências cabíveis ou para que fossem aprofundadas as investigações.

Duas décadas mais tarde, a CPI de Perus foi frequentemente lembrada como precursora das Comissões da Verdade instaladas no Brasil ao longo da década de 2010. Em apenas seis meses, reuniu provas, testemunhos e encaminhamentos importantes, não apenas para desvendar as origens e os envolvidos na construção da vala clandestina, mas também para propor medidas mitigadoras e formas de dar seguimento às investigações, responsabilizações e identificações necessárias.

***

Na última semana de 1992, o Cemitério Dom Bosco ganhou um marco de memória em homenagem aos desaparecidos políticos ali ocultados. No exato local onde a vala clandestina fora construída, surgiu uma nova vala, feita com alvenaria. Sobreposto a ela, um muro vermelho, como uma tarja de “proibido”, “nunca mais”.

O memorial foi desenhado pelo arquiteto e artista gráfico Ricardo Ohtake. Filho da pintora e gravurista Tomie Ohtake, Ricardo tinha ligações afetivas com o tema da memória. Antonio Benetazzo, um dos desaparecidos políticos enterrados como indigente no cemitério de Perus, tinha sido seu melhor amigo nos tempos de estudante universitário, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Ricardo também foi membro da Associação Cultural José Marti, organizando atividades culturais com artistas cubanos no Brasil. Teve ano em que ele chegou a ir cinco vezes para Havana.

Mas foi quase por acaso que Ricardo Ohtake assumiu a autoria do monumento. Ainda em 1991, no segundo semestre, a Prefeitura havia aberto um edital e selecionado um projeto para ser executado no local. Quando estava quase tudo pronto para a construção, em meados de 1992, os organizadores perceberam que havia um monumento idêntico àquele em outro país. O concurso teve de ser cancelado.

Agora, faltando três meses para o fim do mandato da prefeita, já não havia tempo para um novo concurso.

— Só se a gente pedir pro Ricardo — alguém lembrou.

Um ano antes, a militante e ex-presa política Dulce Maia havia sugerido o nome de Ricardo Ohtake para a elaboração de um cartaz de divulgação de uma missa que o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, faria na Sé em homenagem aos desaparecidos da vala e às primeiras identificações. Foi formada uma comitiva de familiares até o estúdio do designer. Suzana, Ivan, Amelinha, Crimeia e Dulce o convenceram a fazer o cartaz. Agora, voltariam a ele com um novo pedido.

— Dá pra fazer — Ricardo topou. — Vou pensar em algo na mesma linha do cartaz.

Os familiares explicaram que faltava dinheiro, de modo que seria preciso fazer algo muito simples e que usasse materiais acessíveis. Cimento e tinta, Ricardo pensou. Dois meses depois, os pedreiros da própria Prefeitura erguerem o marco sob a orientação do arquiteto. Ivan Seixas aprovou o texto com a prefeita e ditou para Ricardo pelo telefone:

“Aqui, os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.”

A inscrição, em letras brancas sobre o muro vermelho, foi assinada por Luiza Erundina de Sousa e Comissão de Familiares de Presos Políticos Desaparecidos.

O monumento ficou pronto entre o Natal e o Ano Novo.

 

Leia no próximo capítulo: As ossadas começam a ser analisadas em Campinas. Dois militantes desaparecidos são identificados. Falta dinheiro e elementos comprobatórios para as novas identificações. O médico legista Badan Palhares é acusado de negligência e falsidade. Os ossos correm risco de submergir ou se desmanchar.

Foto: Camilo Vannuchi

Quem cala sobre teu corpo
consente na tua morte
talhada a ferro e fogo
nas profundezas do corte
que a bala riscou no peito.
(…)
Quem grita vive contigo.

Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, em “Menino”

 

Iara desembarcou no Aeroporto Santos Dumont em 14 de maio de 1979. O filho de 5 anos agarrado à mão, a filha de 2 abraçada ao pescoço. Quatro horas de atraso haviam deixado todos cansados. O voo, de Roma, fora desviado para Viracopos, em Campinas, porque não havia teto para pousar no Rio de Janeiro. Foi preciso transferir os passageiros para aviões menores e esperar o tempo melhorar.

Iara Xavier Pereira voltava ao Brasil após seis anos no exílio. Primeiro Chile, depois Cuba, e por fim a Itália. A longa temporada no exterior chegara ao final quando seu sogro telefonara no mês anterior para avisar que seu processo havia transitado em julgado e ela estava livre. Não precisaria sequer esperar a anistia.

A família de Iara era toda formada por militantes políticos. A mãe, o pai, os dois irmãos e o marido integravam a Ação Libertadora Nacional, a ALN, organização fundada em 1968 por Carlos Marighella. Quando seus irmãos Iuri e Alex foram torturados até a morte, em 1972, Iara estava na clandestinidade e seus pais, no exílio. Menos de um ano depois, em março de 1973, a repressão mataria seu marido, Arnaldo. Iara estava grávida e precisou deixar o país. Agora, seis anos depois, ela poderia finalmente voltar.

Vinha insegura, com a pulga atrás da orelha. Talvez fosse mais prudente continuar na Itália. Ou se mudar para a França, como planejava até o sogro trazer boas notícias. Antes de arrumar as malas, Iara consultara sua advogada, Eny Moreira, uma das mais destacadas defensoras de presos políticos, associada ao escritório de Sobral Pinto e, desde 1978, presidente-fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia. Eny confirmara que não havia mais nenhuma pendência judicial contra ela. Por via das dúvidas, a esperaria no aeroporto.

A viagem longa e as quatro horas de atraso não impediram dois agentes da imigração de barrarem a passageira quando ela já estava quase pisando do lado de fora.

— A senhora é Iara Xavier Pereira?

— Pois não.

— Venha comigo.

Eny precisou intervir, acompanhada pelo deputado estadual José Eudes, do MDB, para convencer o delegado de plantão a adiar o depoimento de sua cliente para o dia seguinte. Iara se comprometeu a ir ao Dops. Quando finalmente chegou à área comum do terminal, ladeada pelo deputado e pela advogada, Iara foi abordada por um repórter do Jornal do Brasil:

— Iara, Iara, você tem acompanhado as notícias? O que você espera encontrar na volta ao Brasil?

— O que eu espero encontrar? Bem, eu espero encontrar o local onde enterraram meus irmãos, Iuri e Alex, que foram assassinados pela repressão e estão desaparecidos.

A advogada ficou de cabelo em pé.

— Pelo amor de Deus, Iara, como você fala isso? Não fala nada de militância, por favor. Vamos com calma.

Era preciso prudência. Arnaldo, o marido de Iara morto pela repressão em 1973, era acusado de ter participado do assassinato de Otavinho, braço direito do delegado Sérgio Paranhos Fleury na condução do Dops de São Paulo. Qualquer provocação poderia suscitar tentativas de vingança. Não tinham matado a estilista Zuzu Angel, conhecida mundo afora, num acidente de carro no Rio?

Além de Eny e do deputado José Eudes, havia alguns familiares à espera de Iara. Eles se dividem. Iara entra com as crianças no carro de uma cunhada. Arnaldinho, aos 5 anos, estava tranquilo, mas cansado. Aninha, aos 2 anos, irritada com tantas mudanças: o fuso, a noite inteira no voo, o novo idioma. Tia Irene entrou no carro em seguida.

— Iara, você não vai ter que procurar ninguém — tia Irene afirmou, de supetão, no trajeto até a Gávea. — Eu encontrei os meninos. Não te mandei uma carta contando?

Iara ficou sem palavras. Tia Irene era irmã de sua mãe. Diferentemente de Zilda, no entanto, Irene não exercia atividade política nem vivera na clandestinidade.

— Você encontrou? — arregalou os olhos. — Eu nunca soube. Não chegou carta nenhuma. Como foi isso?

— Olha, dava um filme — disse a tia. — O Iuri até que foi fácil. Mas o Alex…

Apenas mais tarde, quando chegaram em casa e as crianças foram dormir, Tia Irene pôde contar seu périplo. Entre 1972 e 1973, após a morte dos sobrinhos, ela havia visitado mais de um cemitério em São Paulo à procura dos “meninos”. Esteve no Vila Formosa, no Lajeado e também em cemitérios mais centrais, sem tradição de acolher indigentes, como os cemitério da Consolação e o Araçá. E nada.

— Eu ia, chorava, apelava, e os homens nem para abrir o livro preto —, dizia, referindo-se ao livro de registros. — Eu não achava, não achava.

Acabou encontrando por acaso. Em dezembro de 1973, Tia Irene perdeu o marido, um imigrante húngaro, uns vinte anos mais velho que ela. Antes de morrer, seu marido havia adquirido uma sepultura num cemitério que acabara de ser inaugurado, dois anos antes, na saída de São Paulo para Campinas. No dia do funeral, Tia Irene se deu conta de que naquele cemitério ela nunca havia estado. Muito menos perguntado sobre os sobrinhos por lá. Sepultou o marido no dia 9 de dezembro e retornou no dia seguinte para providenciar a instalação de uma placa de memória com o nome dele. Como precisou se reunir com o administrador para acertar a burocracia, aproveitou para perguntar a ele sobre os sobrinhos, da mesma forma que havia feito nos demais cemitérios. Dizia que eles eram estudantes, que tinham 22 e 23 anos, “uns meninos bons”. Talvez porque fosse um cemitério novo, ainda sem os vícios dos demais, o administrador lhe pareceu mais solícito. Anotou os nomes e as datas das mortes e voltou com dois livros de capa preta.

— O nome do Iuri estava no livro de 1972, na parte dedicada à letra I — Irene contava para a sobrinha. — O do Alex, não.

Dos dois irmãos, Alex foi o primeiro a morrer, em 20 de janeiro de 1972. Foi assassinado sob tortura, junto com Gelson Reicher, estudante de medicina e seu companheiro na ALN. A versão oficial, divulgada nos jornais dois dias depois, dava conta de que Alex e Gelson morreram em confronto com a polícia. Haviam resistido à voz de prisão e disparado contra policiais. Alex tinha 22 anos. Como não havia quem reclamasse o corpo – os pais no exílio e os irmãos na clandestinidade –, seu corpo foi enterrado no Cemitério Dom Bosco como “não reclamado”. Em 14 de junho, menos de cinco meses depois, foi capturado seu irmão Iuri, de 23 anos, em situação semelhante, acompanhado por dois colegas de organização, Ana Maria e Marcos Nonato. Desta vez, a notícia da morte demorou a chegar. Não havia sequer uma versão falsa circulando na imprensa, sinal de que ele havia “caído” e estaria sofrendo tortura em algum lugar de São Paulo. Iuri passou seis dias no DOI-Codi, na Rua Tutóia, até que, no dia 20, seu corpo deu entrada no IML.

Localizado o registro do sepultamento de Iuri, Tia Irene manda colocar uma lápide de mármore no local onde ele havia sido enterrado. Passou a frequentar aquele cemitério com relativa frequência. Ia sempre às duas sepulturas, a do marido e a do sobrinho, nos aniversários, no dia de Finados… Higienizava as placas, levava flores. E volta e meia insistia com algum funcionário sobre o paradeiro do outro rapaz.

— Era um menino, um estudante — ela repetia, e voltava a chorar. — Tinha 22 anos.

Quase três anos se passaram até que, no final de 1976, o novo administrador do cemitério, recém-chegado a Perus, ouviu a mesma ladainha e quis ajudar.

— Minha senhora, será que não há uma confusão de data? Não foi um ano antes ou um ano depois?

“Pessoas de idade são assim, podem se confundir”, Toninho pensou. Mas Tia Irene tinha certeza da data.

— É claro que eu tenho certeza.

— A senhora tem a certidão de óbito?

— Não tenho. Mas saiu no jornal. Eu tenho o recorte.

— Então faz assim — Toninho sugeriu. — Traz esse jornal para a gente dar uma olhada.

Quando Tia Irene voltou, exibiu o recorte da matéria publicada no Estadão como um trunfo.

— Olha aqui. A reportagem é do dia 22 de janeiro de 1972, não falei?

A nota trazia a versão oficial divulgada pela Secretaria de Segurança Pública, acusando Alex de ter resistido à prisão e disparado contra os agentes. Toninho leu a nota e chamou a atenção de Irene para um detalhe:

— Dona Irene, aqui diz que na ocasião foram mortos Gelson Reicher, que usava o nome falso de Emiliano Sessa, e Alex Xavier Pereira, que usava o nome falso de João Maria de Freitas.

— Imagina, nome falso — Tia Irene respondeu. — Isso é coisa da polícia. O nome dele era Alex, mesmo.

Toninho se fez de desentendido e propôs:

— Bom, já que a senhora está aqui, vamos pesquisar por este nome também?

Bingo! No livro de 1972, havia o registro de entrada do corpo de João Maria de Freitas. Desde então, Tia Irene rezava e levava flores também para aquela sepultura.

De volta à Gávea, em 1979, aquela informação eclodiu como uma epifania aos ouvidos já cansados de Iara, em sua primeira noite no Brasil.

— Filhos da puta, eles enterraram com os nomes falsos!

Até aquele momento, familiares de desaparecidos não tinham feito buscas pelos codinomes. A maioria sequer sabia a identidade utilizada por seus filhos e filhas na luta armada. Da mesma maneira que a tática da guerrilha orientava os militantes a jamais contar seus nomes de batismo nem sua origem aos companheiros de organização, tampouco seus familiares ficavam sabendo seus codinomes ou as atividades que desempenhavam na clandestinidade. Iara ainda nem havia se ambientado com o Rio de Janeiro e já queria ir a São Paulo. Precisava visitar o cemitério de Perus.

Já era quase meia-noite quando Iara telefonou para Suzana Keniger Lisbôa. Suzana também tinha militado na ALN e, desde que saíra da clandestinidade, no ano anterior, integrava a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, em formação. Seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisbôa, havia desaparecido em 1972 sem deixar laudo no IML nem notícia falsa de “confronto” com a polícia. Oficialmente, não havia nada que indicasse que Luiz Eurico poderia estar morto. Suzana havia se estabelecido novamente no Rio Grande do Sul e tinha voltado a estudar quando foi convidada a fazer parte do Comitê Brasileiro pela Anistia. Por meio de Eny, soube que Iara estava prestes a desembarcar no Brasil e deixou seu telefone: era para Iara ligar quando chegasse. Iara esperou que Suzana falasse e, em seguida, expôs sua aflição:

— A gente precisa se encontrar — Iara falou. — Tenho uma novidade importante. Você pode vir para o Rio?

Suzana não podia viajar naquele momento e propôs que esperassem até meados de junho, quando haveria o 3º Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia, no Colégio Metodista Bennett, no Rio.

Foram três dias de seminários e reuniões, de 15 a 17 de junho. Trinta e nove entidades em favor de uma anistia ampla, geral e irrestrita estavam ali representadas, debatendo estratégias de divulgação, popularização da pauta e elaboração de propostas a fim de confrontar o projeto oficial elaborado pelo Poder Executivo, previsto para ser entregue na Câmara dos Deputados dali a um mês. Mesmo assim, Iara não conseguia se concentrar na programação. A jornada havia perdido a graça. Ela só conseguia pensar na revelação feita por Tia Irene. Se as suspeitas dela se comprovassem, estaria configurada uma forma peculiar e perversa de desaparecimento: a opção deliberada por registrar o morto com o nome de guerra, mesmo quando o nome verdadeiro era do conhecimento do IML, de modo a dificultar sua localização pelos familiares.

Iara estava decidida a encontrar esses corpos, não por motivo espiritual ou religioso, mas para lhes dar uma sepultura digna e, principalmente, exigir justiça. Ela achava, mais por intuição do que por conhecimento científico, que os ossos de seus irmãos poderiam dar alguma pista sobre a forma como foram mortos. Pelo menos para confrontar a versão oficial divulgada por seus algozes. Se o aparato repressivo montava teatrinhos para forjar um suicídio ou um atropelamento, e os documentos do IML tinham sido igualmente falseados, talvez os restos mortais preservassem a memória da violência de Estado perpetrada contra suas vítimas. Os ossos falariam!

Assim que Suzana desembarcou no Rio, Iara contou a ela a descoberta de sua tia. Combinaram de ir para São Paulo assim que aquele encontro terminasse. Ivan, que dois anos antes havia localizado em Perus os restos mortais de seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, iria junto. Sérgio Xavier Ferreira, primo do desaparecido Carlos Alberto de Freitas, da VAR-Palmares, também. Assim, poderiam ajudar e se proteger uns aos outros.

— Se você estiver certa, vou encontrar o Ico lá — Suzana comentou com Iara, ansiosa. — Eu sei o nome que ele usava na clandestinidade.

***

O Cemitério Dom Bosco foi inaugurado no dia 2 de março de 1971. Não houve fita cortada nem discurso de inauguração. Somente o sepultamento de um primeiro grupo de corpos encaminhado pelo Instituto Médico Legal.

Desde o primeiro dia, os cadáveres enviados ao cemitério de Perus tinham em comum uma desconcertante condição de abandono. Antes que as primeiras famílias da região pudessem fazer uso de suas sepulturas, o Dom Bosco foi escolhido como destino preferencial de todos os mortos que chegassem ao IML sem identificação ou que não fossem reclamados por nenhum parente no prazo de 72 horas.

Classificados como “desconhecidos” ou “não reclamados”, eram todos sepultados em uma cova comum, sem lápide ou memorial. Igual destino tinham as vítimas da fome e da extrema pobreza recolhidos nas madrugadas frias de São Paulo, nas ruas, nos albergues, nas favelas, tratados na época como “indigentes”. Até então, indigentes, desconhecidos e não-reclamados tinham como destino preferencial o cemitério de Vila Formosa, na Zona Leste. A partir de março de 1971, aquele cemitério novinho, amplo e deserto, assumiu a responsabilidade de hospedar corpos encaminhados pelo IML e pelo Serviço de Verificação de Óbito da USP, responsável pelo encaminhamento das vítimas de mortes não violentas.

Um cemitério no bairro era uma reivindicação antiga dos moradores de Perus. Desde meados dos anos 1940, petições e protestos eram elaborados com relativa frequência pela gente do bairro, na esperança de conseguir junto à Prefeitura a construção de um cemitério onde a população local pudesse enterrar seus mortos. Tinham razão ao reivindicar. Os cemitérios municipais – e, portanto, gratuitos – mais próximos ficavam a mais de 15 quilômetros, um na Freguesia do Ó e outro na Lapa. Para o morador de Perus, era mais fácil ir ao cemitério de Caieiras do que a qualquer um dos cemitérios paulistanos. Mas Caieiras era outro município, ou seja, suas sepulturas mantinham-se inacessíveis aos habitantes do bairro.

Distante 32 quilômetros da Praça da Sé, no meio do caminho para Jundiaí, Perus ficava de tal forma apartado do noticiário e da vida cotidiana da cidade que, para muitos, tratava-se de outro município, como Caieiras, Cajamar ou Franco da Rocha. Talvez por isso tenha virado hábito entre os peruenses referir-se à capital como se fosse outro município. “Eu trabalho em São Paulo, mas moro aqui”, dizia a moça. “Amanhã, logo cedo, vou pegar o trem pra São Paulo”, dizia o moço. Nos jornais, nas raras vezes em que surgia algo sobre o bairro, havia sempre um redator incauto para cometer deslizes como “em Perus, a 30 quilômetros de São Paulo”, reforçando o senso comum de que havia uma fronteira entre a capital e o distrito.

Para quem olha o mapa da cidade e enxerga nele o perfil de uma cabeça de cachorro com o focinho apontando para o leste, Perus fica bem no topo de uma das orelhas. A outra orelha é o Tremembé.

A verdade é que tudo era longe demais para os moradores de Perus em 1970. Apenas duas coisas pareciam demasiadamente próximas: uma fábrica de cimento e um lixão. A poluição emanada das chaminés da fábrica, o pó de cimento que cobria as casas, associadas às péssimas condições de trabalho impostas pelo “mau patrão” J. J. Abdalla, que não fazia manutenção dos equipamentos nem recolhia os impostos devidos, motivou os funcionários da Companhia de Cimento Portland Perus a decretar uma greve que se estendeu por sete anos, de 1962 a 1969. Um recorde.

Na ocasião, foi o jornal O Estado de S. Paulo que impingiu nele o apelido de “mau patrão”, uma deferência às avessas para com o controvertido industrial que adquirira a Portland em 1951, quando era Secretário do Trabalho do governador Adhemar de Barros, ao qual se fixou o bordão “rouba, mas faz”.

O levante de trabalhadores ficou conhecido como movimento dos queixadas, uma referência aos porcos-do-mato que, sob ameaça, unem-se ao menor sinal de perigo para reagirem em grupo. No final, sua militância resultou na intervenção do Governo Federal na fábrica de cimento, em 1975, e em seu fechamento definitivo, em 1987, quando os antigos funcionários foram indenizados. O movimento dos queixadas também daria régua e compasso para que um novo ativismo surgisse ali, conseguindo o encerramento das atividades no lixão e sua conversão em usina termelétrica a partir de 2007.

O início da colonização de Perus remetia ao século XVIII, quando se formou próximo à confluência do Ribeirão Perus com o Rio Juquery um local de pouso para os tropeiros que se aventuravam rumo ao interior. Diz a lenda que havia por ali uma senhora que criava perus e os preparava na panela, sob encomenda. Até que o nome pegou. “Vamos pousar ali nos perus”, diziam os tropeiros antes de avançar rumo a Jundiaí ou Campinas.

O Cemitério Dom Bosco foi uma obra de Paulo Maluf. Quarta opção na lista apresentada pelo governador Abreu Sodré para o então presidente Costa e Silva, Maluf foi escolhido pelo general para assumir o cargo e tomou posse em 8 de abril de 1969, numa época em que os prefeitos eram biônicos, indicados pelos militares. À frente da fábrica de pisos Eucatex, Maluf ocupava a presidência da Caixa na ocasião. Ficou dois anos como prefeito, até ser substituído pelo também engenheiro Figueiredo Ferraz, indicado pelo governador Laudo Natel. Foi o suficiente para construir o cemitério de Perus e também o Minhocão – uma via elevada com mais de três quilômetros de pista dupla que desempenhou papel fundamental na degradação do centro de São Paulo.

Um primeiro estranhamento que surgiu durante a construção do cemitério foi a péssima localização. Até o cemitério de Perus ficava longe de Perus! Enquanto o centro do bairro orbitava a estação de trem, era preciso caminhar por mais de dois quilômetros pela Estrada do Pinheirinho para chegar ao cemitério, um percurso cumprido em chão de terra, não urbanizado, que tornava especialmente difícil o acesso ao local. Moradores estranharam a desapropriação daquele terreno. Em Caieiras e em Jundiaí, os cemitérios ficavam em áreas centrais. Ali, não. A Prefeitura havia escolhido um local ermo e isolado, essencialmente rural, para transformar no cemitério de Perus. Uma área com relevo acidentado, com poucas casas e nenhum estabelecimento comercial em volta.

Concluída a terraplanagem e o projeto de incorporação das glebas e quadras, em poucos meses ficaram prontas as salas de velório e administração. Maluf fez questão de acelerar os trabalhos nos últimos meses para inaugurar antes de partir. Havia algo de estratégico naquele gesto, principalmente para um político de sua envergadura, que não escondia o desejo de chegar ao governo do Estado e à Presidência da República sob o beneplácito e as bênçãos dos militares.

A novidade recebeu o nome de Cemitério Dom Bosco em homenagem a um padre italiano, canonizado em abril de 1934, que o Papa Pio XI nomearia “padroeiro dos jovens”, “pai e mestre da juventude”. Uma ironia e tanto.

***

Não era a primeira vez que Ivan Seixas visitava aquele cemitério. Sua história com Perus era antiga, remetia ao início da década.

Ivan tinha 16 anos de idade quando foi preso e levado ao DOI-Codi, em 16 de abril de 1971, junto com o pai, Joaquim Alencar de Seixas. Pai e filho militavam no Movimento Revolucionário Tiradentes, o MRT. Na véspera de sua prisão, o MRT, numa ação conjunta com a ALN, tinha sido responsável pela morte do empresário Albert Henning Boilesen, presidente da Ultragás e financiador contumaz do aparato repressivo. Entusiasta da violência praticada contra os oponentes da ditadura, Boilesen costumava assistir a sessões de tortura na Operação Bandeirantes, a Oban, e manteve a frequência quando aquele centro semiclandestino de repressão foi institucionalizado por meio do DOI-Codi, agora um órgão oficial, fundado no mesmo endereço em setembro de 1970.

Boilesen ia à Rua Tutóia, na Vila Mariana, como quem vai ao cinema. Chegou a doar um aparelho de aplicação de choques a fim de melhor equipar aquele local, que seu comandante, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, apelidara de sucursal do inferno. “Henning Boilesen foi justiçado”, dizia o manifesto assinado por MRT e ALN e deixado ao lado do corpo do empresário na Alameda Casa Branca. “(Agora) não pode mais fiscalizar pessoalmente as torturas e assassinatos na Oban, nem oferecer banquetes aos altos oficiais das forças armadas brasileira, que comandam o terror e a opressão de que é vítima o povo brasileiro desde 31 de março de 1964”.

Aquilo foi o estopim de um sentimento incontrolável de vingança por parte do órgão de repressão. Menos de 24 horas depois, Joaquim e Ivan foram localizados e levados para o DOI-Codi. Pouco depois, sequestraram também a mulher de Joaquim, Fanny, e as duas filhas, Ieda e Iara. Na madrugada de 16 para 17 de abril, enquanto Joaquim era brutalizado na Rua Tutóia, uma equipe de agentes levou Ivan para um matagal com a promessa de que ele seria fuzilado, uma forma de intimidação. No percurso de volta ao DOI-Codi, logo cedo, os agentes pararam numa padaria para tomar café. Sem sair da viatura, Ivan conseguiu ler, na capa de um grande jornal pendurado numa banca, a notícia da morte de seu pai. Segundo a nota, o terrorista Joaquim tinha sido abatido com sete tiros no dia anterior, após resistir à voz de prisão e abrir fogo contra a polícia. Era mentira. Joaquim estava vivo, como Ivan pôde constatar minutos depois, ao ingressar novamente do DOI-Codi.

Joaquim morreria naquela noite. Como o exame necroscópico já estava pronto antes mesmo de sua morte, o corpo de Joaquim foi encaminhado diretamente para o Cemitério Dom Bosco e enterrado no dia 19 de abril, de tal sorte que Joaquim se tornou o primeiro preso político enterrado em Perus, apenas 37 dias após a inauguração. Seu sepultamento foi registrado no livro dos indigentes, uma vez que nenhum parente foi ao IML para reivindicá-lo: a mulher e os três filhos estavam presos e incomunicáveis.

Um ano e meio depois, no final de 1972, a mãe e as irmãs de Ivan foram soltas e puderam finalmente procurar pelo corpo de Joaquim. Ivan permaneceria preso até 1976, passando por quatro presídios diferentes.

Fanny, Iara e Ieda localizaram sem maiores dificuldades o local em que Joaquim fora enterrado. Devido ao teatrinho montado pela repressão, não havia motivos para ocultar aquele guerrilheiro. Aos olhos da sociedade, graças à ajuda da imprensa, havia morrido um perigoso terrorista, que ousara resistir à voz de prisão abrindo fogo contra a polícia, numa operação em que o morto era o culpado e os policiais eram as vítimas. Localizada a sepultura de Joaquim e o registro de sua entrada no livro de não-reclamados, as três voltaram outras vezes ao cemitério. Levavam flores, arrumavam a sepultura. Quase sempre, eram seguidas e ameaçadas por agentes à paisana no longo trajeto entre a estação e o cemitério, pela Estrada do Pinheirinho. A mãe contava os detalhes ao filho quando ia visitá-lo na cadeia. Às vezes, desabava, aos prantos. Em uma das ocasiões, um sujeito parou a seu lado enquanto ela visitava a sepultura.

— Veio visitar esse comunista de merda? — disse o estranho. — Essa sepultura aqui do lado nós reservamos para o seu filhinho, viu? Nós vamos matar ele e enterrar ao lado do papai. Dois terroristas filhos da puta.

Aos poucos, as visitas ao cemitério fizeram com que Fanny e as filhas criassem um vínculo com os sepultadores. Conversa vai, conversa vem, revelações começaram a ser feitas. “Chegou mais um estudante”, contava um. “Olha, dona, teve um aí que chegou todo destruído”, dizia outro.

No início de 1973, o enterro de Alexandre Vannucchi Leme não passou despercebido. “Esse estudante que apareceu no jornal foi enterrado aqui”, disseram. “Trouxeram o corpo quase de noite. Deu pra ver que ele estava todo arrebentado. Aí jogaram cal em cima, provavelmente para dissolver”.

Alexandre cursava geologia e militava na ALN quando foi assassinado sob tortura, em 17 de março de 1973. Quando seus pais obtiveram o atestado de óbito, elaborado com informações falsas, Alexandre já tinha sido sepultado, na quadra dos indigentes, uma vez que o corpo não havia sido reclamado nas 72 horas que sucederam à morte. A própria notícia de sua morte, atribuída a um atropelamento que jamais existiu, fora divulgada pelas autoridades e publicada nos jornais apenas quatro dias após o sepultamento. Tudo conforme o script.

Quando finalmente foi solto, Ivan quis ir o cemitério de Perus com o pretexto de visitar o túmulo do pai. Ele sabia que Joaquim não estava mais lá. Ainda em 1974, os próprios sepultadores tinham convencido suas irmãs a exumar o corpo do marido e transferi-lo para outro cemitério, o que foi feito em 1975.

— É melhor vocês levarem o Joaquim — diziam. — Daqui a pouco vai vencer o prazo para a exumação e vão misturar todos esses ossos num buraco só. Ou tocar fogo em tudo. Vocês vão acabar perdendo o pai de vocês.

No cemitério, Ivan conferiu a localização de outros guerrilheiros e, com a ajuda de Toninho Eustáquio, pesquisou os livros. Pediu para ver o livro de 1971 na letra D.

Dênis Casemiro era amigo de seu pai e companheiro de organização. Morrera um dia depois de Joaquim, caçado sem descanso e torturado com especial violência por ter participado da execução de Boilesen. Dênis Casemiro também estava lá, registrado com o nome verdadeiro. Ivan notou uma coisa que o deixou desconfiado. O corpo de Dênis tinha sido registrado no livro como se fosse de um sujeito de 40 anos. Na verdade, Dênis tinha 25 anos quando foi morto. Não bastasse o erro, deliberado ou não, Ivan notou ainda que seus restos mortais haviam sido exumados da sepultura original. E, estranhamente, nada constava sobre o destino daquelas ossadas. Pela primeira vez, ouviu falar sobre a possibilidade de haver ali uma vala clandestina. Nela, Dênis não estaria sozinho.

***

Toninho lembrou-se de Ivan, que anos antes havia se interessado pelo sumiço daquele Dênis, irmão de outro desaparecido. Também disse se recordar de Dona Irene, a tia de Iara, e de como haviam encontrado a sepultura do jovem Alex, registrado com nome falso em 1972. O administrador conduziu o grupo até a gleba 1 e se demorou em frente a cada uma das sepulturas, tanto a de Iuri quanto a de Alex, ambos exumados e reinumados no mesmo local conforme o livro. Explicou a Iara o processo para transferir os ossos para o Rio, caso ela quisesse providenciar o traslado, e mostrou a ela as anotações referentes aos dois.

Para Iara, recém-chegada ao Brasil após seis anos de exílio, aquele era um momento de grande emoção, uma espécie de ajuste de contas com um passado interrompido violentamente. Era também a primeira pista para uma revelação muito maior, que ajudaria a desvendar o paradeiro de muitos outros desaparecidos.

Suzana, então, contou que a situação de seu marido era semelhante à do Alex e pediu para verificar no livro. Ela nunca havia cogitado procurar Eurico em cemitérios. Se não havia qualquer documento do IML ou de outro órgão a declará-lo morto, como Eurico poderia ter sido enterrado num cemitério municipal, com registro no livro e tudo?

— Também foi em 1972 — contou. — Um pouco depois do Alex, em setembro.

— E qual era o nome dele?

— Luiz Eurico Tejera Lisbôa.

— É, de fato não tem ninguém com esse nome aqui — Toninho conferiu. — Ele usava algum outro nome?

Suzana já esperava por aquela pergunta.

— Nelson Bueno.

Na letra N, quase por encanto, surgiu o nome de Nelson Bueno, enterrado em 2 de setembro de 1972 como não-reclamado. Suzana não podia acreditar. Chorou, o corpo tremendo, os dedos entrelaçados aos de Iara.

“Que canalhas”, Suzana pensava. Havia um modus operandi ali. Era uma estratégia, uma ocultação proposital. Enterravam com o nome falso para dificultar a localização, ela percebeu. Se pais, mães e irmãos raramente sabiam os codinomes usados pelos militantes na clandestinidade, como poderiam encontrá-los?

A descoberta de Luiz Eurico era especialmente alvissareira porque se tratava de um desaparecido, de alguém sobre quem não havia nenhum registro de óbito, nenhuma versão falsa de tiroteio com a polícia nem nada. Nada que eles conhecessem. Foi o início um trabalho sistemático de busca por desaparecidos naquele cemitério e em outros. Numa primeira fase, por meio dos nomes reais. Em seguida, tentando resgatar os codinomes e repetindo as buscas nos livros e nas sepulturas.

Àquela altura, meados de 1979, algumas vítimas da repressão enterradas sem o conhecimento da família já tinham sido localizadas no Cemitério Dom Bosco, com base nos atestados de óbito e nos livros de entrada. Foi o caso de Alexandre Vannucchi Leme e de Joaquim Seixas. Agora, a atuação de Suzana, Ivan e outros familiares seria decisiva para que se localizassem, em Perus, as sepulturas de desaparecidos como Antonio Carlos Bicalho Lana, Sônia Moraes Angel Jones, Antônio Benetazzo e Pedro Pomar, entre outros.

Iara voltou para o Rio. Ivan e Suzana, que moravam em Porto Alegre naquela época, permaneceram em São Paulo por mais alguns dias, mergulhados na busca. Faziam anotações, cruzavam dados, procuravam outros familiares para conciliar as datas e pedir mais informações. Quando a Câmara dos Deputados anunciou que o projeto da Anistia protocolado pelo governo seria submetido ao plenário em 22 de agosto, familiares engajados na campanha por uma anistia ampla, geral e irrestrita decidiram aproveitar a ocasião para denunciar a descoberta daqueles corpos. Era como se buscassem escancarar o que era somente sussurrado. “Enquanto vocês vêm com essa anistia pela metade e se dizem dispostos a dar aos familiares esses atestados de morte presumida, nós estamos aqui para mostrar que não tem morte presumida nenhuma, que a morte é evidente e está documentada, que o Estado perseguiu, torturou e matou nossos entes queridos”.

Diante das câmeras da TV e das equipes de reportagem dos jornais, Suzana revelou que Luiz Eurico e Dênis Casemiro tinham sido encontrados num cemitério em São Paulo. Os desaparecidos não estavam vivos passeando por aí, como Figueiredo e outros políticos da situação costumavam sugerir em diversas declarações. Eles estavam mortos e tinham sido enterrados com dados adulterados para dificultar a localização. “Eu encontrei meu desaparecido e ele está morto”, Suzana dizia. E contava detalhes sobre os dois casos. Luiz Eurico, enterrado como Nelson Bueno. Dênis Casemiro, um rapaz branco de 25 anos, enterrado como se fosse um homem negro de 50.

Foi uma manifestação e tanto em Brasília, a maior manifestação de familiares de mortos e desaparecidos políticos que o Brasil já tinha visto. Saíram ônibus fretados de São Paulo, do Rio, de Belo Horizonte e de Goiás. Teotônio Vilela, senador pelo MDB, foi quem articulou a entrada daquela turma e ajudou a montar o circo no salão verde da Câmara. Familiares, sobretudo mães, empunhavam retratos e faixas com os rostos dos filhos desaparecidos. “Gente, mas eles eram tão jovens”, comentou um deputado de Pernambuco ao olhar aqueles retratos.

O projeto de lei do Governo acabou aprovado, pela minúscula diferença de cinco votos (206 x 201), e a anistia pôde ser promulgada dali a seis dias, em 28 de agosto. Não era a anistia ampla, geral e irrestrita defendida pelos familiares de mortos e desaparecidos e pela maioria dos ex-presos políticos, ora engajados em denunciar as práticas de tortura, dar nome aos torturadores e caracterizá-los como criminosos. A lei da anistia, como acabou sendo interpretada, garantiu a impunidade para esses assassinos e toda a cadeia de comando do sistema repressivo, ao mesmo tempo em que manteve as penas impostas por “crimes de sangue” – somente quando praticados pelos opositores da ditadura. Apesar de todas essas limitações, a anistia representou a volta dos exilados, a libertação dos presos e uma etapa fundamental no processo de redemocratização.

A experiência de ir a Brasília e revelar publicamente a descoberta do paradeiro de Luiz Eurico e Dênis Casemiro, por sua vez, trouxe uma visibilidade inédita para o tema dos desaparecidos políticos. Na semana seguinte, a localização da sepultura de Luiz Eurico, no cemitério de Perus, rendeu matéria de capa da revista IstoÉ. “Aqui está enterrado um desaparecido”, dizia a manchete.

E os outros desaparecidos? Restava solucionar o maior dos mistérios: qual o paradeiro daqueles que, segundo os livros de registros, tinham sido exumados e não foram reinumados em lugar nenhum?

***

Toninho estava obcecado. Para ele, era uma espécie de oráculo de esfinge, um “decifra-me ou te devoro”. A todos os sepultadores que haviam entrado no cemitério antes dele, Toninho repetia a mesma pergunta:

— O que vocês fizeram com os corpos que foram exumados das quadras 1 e 2?

Ninguém respondia.

Toninho perscrutava as páginas daqueles livros de capa preta e fazia contas. Eram muitas exumações. Chegou ao número aproximado de 1.500 pessoas cujas ossadas tinham sido exumadas ao longo de 1975 e das quais não havia qualquer informação sobre reinumação. Toninho entendeu que havia sido feita uma exumação em massa, um ano antes de sua nomeação como administrador do cemitério. Entendeu também que eram exumações regulamentares, autorizadas pela lei municipal que estabelecia o tempo mínimo a partir do qual a municipalidade poderia exumar as ossadas que não fossem retiradas pelas famílias a fim de abrir espaço para novos sepultamentos. O que ele não conseguia entender é por que os corpos não tinham sido reinumados no mesmo local, como de praxe.

O cemitério era novo, havia terra de sobra para fazer o afundamento da sepultura, ou seja, enterrar as ossadas em sacos menores, embaixo da terra, no mesmo local de onde tinham sido exumadas, permitindo que o espaço fosse ocupado por um novo caixão. Ele já havia feito testes, escavado sob outras sepulturas, e nada. O caminho mais simples, previsto no regulamento do próprio serviço funerário, indicava a reinumação no mesmo local e somente se houvesse necessidade de espaço. Nada disso se verificava no Cemitério Dom Bosco, menos ainda em 1975, apenas quatro anos após a inauguração.

Toninho insistia, cobrava os colegas, voltava sempre à mesma pergunta, batia na mesma tecla, como um disco riscado.

— Onde estão as ossadas?

Ninguém respondia.

Toninho estava convencido de que em algum lugar daquele cemitério havia uma vala clandestina, um buraco onde aquela quantidade monstruosa de ossos fora enterrada com ordens expressas para que nada fosse registrado. “Como eu posso administrar um cemitério com uma bomba dessas?”, ele pensava. “Qualquer hora descobrem e a bomba vai estourar no meu colo; vão dizer que fui eu que sumi com esses ossos”.

Para os sepultadores que conheciam o destino das ossadas, o medo era o mesmo. “Se essa notícia estoura, vou perder o emprego e também a aposentadoria”, temiam.

Virava e mexia, Toninho retomava a ladainha de sempre. Às vezes na hora do almoço, às vezes à noite, tomando cachaça.

— Ih, lá vem você com esse assunto de novo!

— Você não cansa, não? Puta cara chato!

— Deixa essa história pra lá!

Toninho deixava pra lá. Depois voltava. E punha-se a jogar verde:

— Tá lá embaixo, perto do Pinheirinho? Tá do lado de fora, no estacionamento? Tá no barrocão, junto com aquele chimpanzé que morreu no circo e foi enterrado aqui?

Com o tempo, Toninho resolveu escolher seu alvo. Para enterrar tanta gente, ele pensou, só mesmo com a retroescavadeira. O único operador de máquina ali era o Pedro.

Uma noite, sozinho com o Pedro, já depois da terceira ou quarta dose, Toninho tocou mais uma vez no assunto. O amigo perdeu a paciência.

— Você fica numa teimosia com esses terroristas — Pedro perdeu a paciência. — Eles estão num buraco lá na área do cruzeiro.

Agora, a obsessão de Toninho não era mais confirmar a existência do buraco, mas por encontrá-lo. Morando no próprio cemitério, como um caseiro, Toninho saía de casa à noite para prospectar a área do cruzeiro. Ia para lá munido com uma sonda, um ferro com mais de três metros de comprimento, e punha-se a espetar o solo. Começou no centro da área. Espetou aqui, espetou ali e nada. Outra noite, tentou na região mais abaixo, próxima à rua que dividia a área do cruzeiro da quadra 1. Nada. Pôs-se, então, a investigar junto ao barranco. Uma noite, às vésperas da anistia, o ferro entrou na terra e quase sumiu. Entrou inteiro, sem esforço.

— É aqui!

 

Leia no próximo capítulo: Vereadores fecham o cerco. De quem partiu a ordem para ocultar as ossadas num buraco? O plano original era construir um crematório e incinerar os cadáveres. Um arquiteto comunista é chamado às pressas para construir um monumento.

Foto: Marcelo Vigneron

 

Você me prende vivo, eu escapo morto.
De repente, olha eu de novo.
Perturbando a paz, exigindo troco.

Paulo César Pinheiro, em “Pesadelo”

 

— Você tem certeza que quer entrar aí?

Caco notou algum sarcasmo na pergunta feita pelo diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Rubens Brasil Maluf, no final de 1987.

— É importante — disse o repórter. — Os dados que eu procuro estão aí dentro.

— Você é quem sabe, mas antes vou te mostrar o lugar — assentiu o diretor. — Algo me diz que você vai se arrepender.

Quase três anos após aquela conversa, Caco Barcellos ainda frequentava aquela sala, no segundo andar do IML, no número 151 da Rua Teodoro Sampaio, colado à Faculdade de Medicina da USP, em Pinheiros. Ia normalmente à noite, após o expediente na televisão, e passava algumas horas debruçado sobre laudos periciais.

Era um muquifo, embora a placa fixada sobre a porta de entrada indicasse dissesse “museu”. A sujeira, a sensação de clausura e a permanente desorganização o faziam sentir saudade não apenas das reportagens na rua, seu habitat natural, mas também da redação.

A sede da TV Globo em São Paulo não era nenhum exemplo de conforto ou modernidade em 1990. Ocupava um predinho de três andares na Praça Marechal Deodoro, bem em frente à recém-inaugurada estação de metrô. Era um imóvel antigo, geminado, estreito e comprido, com elementos neoclássicos na fachada e vista para os pilares do Minhocão. Uma escada conduzia à redação, no primeiro andar. Caco costumava saltar os degraus de dois em dois, atrasado para entregar a fita com a matéria a tempo de ser exibida no telejornal da noite. Tudo muito rústico, apertado, com mesas de madeira vincadas pelo tempo, estantes abarrotadas e caixas de filme empilhadas atrás da porta.

Quem assistia ao Jornal Nacional ou ao Globo Repórter não desconfiaria que as instalações da emissora eram tão precárias. Ainda assim, comparada ao “museu” do IML, o predinho da Marechal parecia um palácio.

A sala era uma combinação de arquivo com espaço museológico, carente de limpeza e ventilação, onde estavam guardados todos os registros do IML desde os anos 1920. Nos cálculos do diretor, 60 mil documentos eram arquivados ali a cada ano.

Arquivados não é exatamente a palavra. Deveria haver dois milhões de fichas, algumas em estantes, outras sobre as mesas e mais um bocado espalhado pelo chão.

Quando começou a frequentar o muquifo, no comecinho de 1988, uma das primeiras providências tomadas pelo jornalista, com a ajuda de um estagiário, foi colocar em ordem cronológica aquela montanha de pastas e papéis. O resultado: duas paredes de 7 metros de comprimento por 3 metros de altura tomadas de alto a baixo pela papelada.

Para além do cheiro de mofo e da espessa camada de poeira que cobria aquele material, o que tornava especialmente insalubre o dia-a-dia naquela sala era uma horripilante coleção de pedaços humanos armazenados em grandes potes de vidro num armário sem portas. Mãos, pés, olhos, fetos e outros fragmentos imersos em formol eram expostos numa espécie de cristaleira macabra.

Tudo era macabro naquele pardieiro. Álbuns imensos com fotografias de cadáveres, ampliações feitas para evidenciar os detalhes mais fúnebres, instrumentos usados em exames de necropsia no início do século XX, máquinas de escrever emperradas, pedaços de macas e cadeiras quebradas completavam o cenário, uma espécie de sótão abandonado de filme de terror.

Caco Barcellos tinha 40 anos de idade e frequentava aquele lugar desde o final de 1987. Gaúcho radicado em São Paulo em 1975, quando ingressou no Jornal da Tarde, Caco passara pelas redações das revistas IstoÉ e Veja e também atuara na imprensa alternativa antes de pendurar no pescoço um crachá da Globo, em 1985. Especializado em jornalismo policial, Caco tinha uma razão muito particular para fazer hora extra naquele lugar sinistro: nos intervalos entre as reportagens para a TV, investigava os homicídios praticados por policiais militares, atividade que ocupava quase todo seu tempo livre havia mais de cinco anos.

Seu objetivo era identificar todos os desconhecidos mortos pela Polícia Militar de São Paulo desde sua fundação, em 1970. Numa etapa seguinte, pretendia listar os campeões da pena de morte, ou seja, os oficiais com mais execuções nas costas. Caco partilhava da tese de que esses policiais agiam de forma deliberada quando executavam delinquentes. Ou seja: atiravam para matar. O que ele não sabia quando começou sua investigação, mas descobriria ao longo da pesquisa, é que, em mais da metade das vezes, a vítima não tinha passagem pela polícia nem era suspeita de nenhum roubo ou furto. Os matadores de bandidos, tratados como heróis por certos radialistas e políticos, não passavam de matadores de inocentes. Sete anos dedicados ao tema resultariam no livro Rota 66: a história da polícia que mata, lançado por Caco Barcellos em 1992.

Naquela sala pestilenta, Caco encontrou alguns dos principais insumos para sua pesquisa. Sobretudo, ali estavam os primeiros registros da chegada dos corpos, trazidos normalmente num rabecão do IML após requisição feita por algum delegado de polícia, e também os exames datiloscópicos, realizados pelos médicos do instituto. Por meio deles, Caco conseguia aferir o local de origem dos cadáveres, a cor da pele e a circunstância da morte, pelo menos segundo a versão oficial. Quando havia indicação de tiroteio ou resistência à prisão, por exemplo, ou quando os laudos descreviam dois ou mais ferimentos a bala, deflagrados à queima-roupa (com indícios de pólvora ao redor da perfuração) ou contra a cabeça ou as costas da vítima (sinal de que ela já estava rendida), então o caso era selecionado para ser melhor investigado.

Em mais da metade das vezes, as vítimas da PM de São Paulo eram pretas ou pardas e seus corpos tinham sido resgatados em hospitais da periferia. O esquema envolvia a colaboração de diretores de hospitais, que aceitavam receber as vítimas já mortas e confirmavam a versão divulgada pela corporação: “o bandido não resistiu aos ferimentos e veio a falecer ao dar entrada no pronto-socorro”. Essa tática era conhecida como “esquentar” o corpo. O policial responsável por aquela morte assumia a posição de alguém munido de boas intenções, disposto ao gesto humanitário de levar imediatamente o suspeito para o hospital a fim de socorrê-lo. No boletim de ocorrência, o policial era sempre apresentado como vítima do suposto delinquente, que resistira à voz de prisão e atirara contra o agente. O morto era o culpado da própria morte.

Outro padrão percebido por Caco dizia respeito ao destino do cadáver. Os corpos das vítimas da PM eram quase sempre enterrados às pressas, como indigentes, mesmo que portassem documento na ocasião de sua morte. Quanto mais rapidamente o corpo sumisse, e sem o conhecimento da respectiva família, menores as chances de revolta ou de algum jornalista incauto resolver denunciar a brutalidade da ação. Para isso, era preciso lançar mão de expedientes pouco ortodoxos. Um deles era sumir com os documentos da vítima. Outra era alterar a identidade ao fazer o registro do sepultamento para dificultar a localização. Aparentemente, o esquema de morte e ocultação de cadáveres das vítimas da PM contava também com a conivência do serviço funerário. Ninguém em sã consciência ousaria negar um pedido da Rota.

Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar era o nome completo da Rota, a tropa de elite da PM de São Paulo nos anos 1970 e 1980. Exercia uma espécie de monopólio da pena de morte no Estado. Em dez anos, entre 1981 e 1991, o número de homicídios com envolvimento da PM no Estado saltaria de 300 por ano para mais de mil. Conhecer os nomes dessas vítimas, saber as circunstâncias dessas mortes e ouvir as histórias dessas famílias virou uma espécie de obsessão de Caco na década de 1980. E o museu do IML poderia dar as respostas que ele buscava.

Em meados de 1990, pesquisando aquela papelada, Caco encontrou um detalhe intrigante. Em alguns dos laudos amontoados na salinha do segundo andar, em particular nos processos datados de 1971 a 1973 e referentes a encaminhamentos feitos ao IML pelo Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, havia uma letra rabiscada a mão com lápis vermelho. Uma letra T.

Após dois anos fazendo plantão no muquifo, Caco gozava da confiança de alguns funcionários do IML. Levou aqueles papéis para um deles.

— O que significa essa marca? — perguntou. — A mesma marca aparece em diversos laudos do início dos anos 1970. De 1971 a 1974, para ser exato. Depois para.

— É T de terrorista — o informante revelou.

Terrorista era a forma com que a repressão se referia aos integrantes de organizações armadas de oposição à ditadura militar. Caco não ficou exatamente surpreso com aquela descoberta. Calejado após tantos anos analisando laudos e reportagens sobre letalidade policial e formas de repressão, o jornalista sabia que os militantes executados nos anos 1970 também teriam de passar pelo IML. Mas por que assinalar nos laudos sua condição de terroristas? Para quem seria aquele recado?

Os laudos marcados com a letra T tinham outras peculiaridades. Uma delas era o fato de que as vítimas assinaladas, embora jovens, eram quase todas brancas, enquanto as vítimas habituais da Rota eram quase todas pretas ou pardas. Outra peculiaridade era o destino dos corpos: a maioria, senão todos, tinha sido levada para o mesmo cemitério de Perus aonde eram conduzidos os mortos da polícia. E, segundo os laudos, teriam sido enterrados como indigentes, embora a maioria das fichas indicasse nome e filiação.

Caco percebeu que estava diante de documentos que poderiam indicar o paradeiro de alguns dos militantes políticos desaparecidos nos anos de chumbo, um tema ao qual ele ainda não havia se dedicado. O livro Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, trazia uma lista de 125 opositores do regime militar que tinham simplesmente sumido, apesar de testemunhas afirmarem que tinham sido vistos em algum órgão da repressão ou centro de tortura, como o DOI-Codi ou a Casa da Morte de Petrópolis. O número estimado de desaparecidos políticos, àquela altura, devia ser ainda maior.

Caco levou o caso para a Globo. Ele dificilmente conseguiria aproveitar aquele material no livro que estava escrevendo sobre as mortes cometidas pela Polícia Militar, uma vez que os “terroristas” não tinham sido vítimas da Rota nem da PM, mas poderia tratar daquela descoberta numa boa matéria para a TV. Seria um furo de reportagem, uma revelação inédita.

Sozinhos, aqueles laudos já justificariam uma boa matéria. Mas Caco queria mais. Aplicou sobre aqueles documentos a mesma lógica que adotara ao pesquisar os laudos das vítimas da PM: Como identificar essas pessoas? Como foram mortas? Quais as circunstâncias dessas mortes? Em poucos dias, separou as fichas de 158 cadáveres encaminhados ao IML por policiais do Dops entre 1970 e 1974. Em todas elas, a mesma explicação: mortos em tiroteio com órgãos de segurança. Caco anotou o que havia de identificação naquelas guias, a data de entrada no IML e a data e o local de destino.

Maurício Maia, produtor de jornalismo do Fantástico, na TV Globo, assumiu a tarefa de cruzar aqueles dados com as diferentes listas de desaparecidos políticos elaboradas até então, tanto em publicações como o Brasil: Nunca Mais quanto por grupos como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Embora os nomes constantes nas fichas fossem quase todos falsos, havia uma enorme coincidência de informações em parte significativa da lista. Vinte e oito corpos levados para Perus tinham dado entrada no IML exatamente nas datas prováveis de seu desaparecimento conforme as listas de mortos e desaparecidos. Desses, treze haviam sido localizados e trasladados pelas famílias para outros cemitérios ao longo das décadas de 1970 e 1980. Faltavam quinze.

Caco e Maurício pegaram o carro e foram até o cemitério. Como o rosto de Caco aparecia toda hora na TV, decidiram que Maurício iria sozinho até a administração e, sem se apresentar como funcionário da TV, pediria para consultar os livros dos primeiros anos da década de 1970. Abriu a lista de datas e nomes que havia preparado e pôs-se a pesquisar. Dali a uma hora, voltou ao carro.

— Os livros estão todos aí — Maurício contou. — Catorze desses corpos não têm destino certo. As ossadas foram exumadas e não se sabe para onde foram. Só se diz, laconicamente, “exumado na data tal”.

Para Caco, cada nova informação funcionava como um estímulo. Tinha o efeito de uma xícara de café, capaz de afastar o sono por um par de horas, ou de uma barra de chocolate: doce recompensa pelo esforço empenhado. Mais do que isso, era como se cada nova fase da investigação injetasse uma dose extra de adrenalina no jornalista. Quem é repórter investigativo por certo já sentiu essa pulsão. A descoberta de uma pista, o encontro com um novo informante, uma denúncia anônima, cada novidade fazia Caco mergulhar ainda mais fundo no trabalho, doze, treze, quinze horas por dia. Inclusive nos fins de semana.

Era um domingo quando o jornalista entrou pela primeira vez no Cemitério Dom Bosco, no distrito de Perus. Os fins de semana são sempre movimentados nos cemitérios. Mesmo nas tardes de julho, quando um vento frio costumava varrer o aclive suave da área destinada às sepulturas de Perus, familiares levavam flores, limpavam as placas de homenagem, arrancavam ervas daninhas. Em razão da pesquisa sobre as mortes da PM, Caco gostava de ir aos cemitérios aos domingos, justamente cogitando encontrar algum parente enlutado disposto a contar detalhes sobre a morte do filho, do neto ou do irmão. Desta vez, seu propósito era investigar as incongruências no caso dos “terroristas”. Levou ao cemitério os primeiros locais de sepultamento daqueles corpos, antes da exumação, e foi conferir o que existia em cada cova.

Como Caco previra, nenhuma sepultura coincidia. Nas covas onde teriam sido enterrados os cadáveres cujos laudos tinham sido assinalados com a letra T, havia outros corpos, de outras pessoas, sepultadas anos depois, conforme se podia ler nas placas de homenagem. Um sepultador explicou a ele que era assim mesmo, que os restos mortais eram exumados após três anos e reinumados no mesmo local, ou seja, enterrados novamente, num saco menor e num patamar um pouco mais fundo, de modo a abrir espaço para a chegada de outro caixão. E assim sucessivamente.

— Que ano foi enterrada a pessoa que o senhor procura? — ele quis saber.

— 1972.

— Xi, setenta e dois? É muito tempo. Já deve ter uns cinco ou seis cadáveres que chegaram depois dela na mesma cova.

— Mas e a placa com o nome?

— Quem chega para ser enterrado traz uma placa nova e a que tinha antes é descartada.

O que Caco não conseguia entender era a ausência absoluta de informações sobre o local de reinumação das ossadas mais antigas. Nos livros dos cemitérios, o caminho percorrido pelo cadáver é sempre registrado. Trata-se de um protocolo, uma exigência administrativa: “no dia tal, os restos mortais de fulano de tal foram exumados da cova x e reinumados na cova y”. Em Perus, essa norma não tinha sido observada. Pelo menos não nos anos 1970. Faltavam as datas e os locais de reinumação.

— E por que não há referência ao local de destino dessas ossadas? — o jornalista perguntou ao funcionário.

— Isso eu não sei dizer, não, senhor.

***

“Puta merda, o que esse jornalista tá fazendo aqui?”

Da janela da administração, Toninho viu o repórter da Globo conversando com os sepultadores bem ali, na entrada da quadra 2, e logo o reconheceu. Arrumou os fios do bigode com as pontas dos dedos e foi em direção a ele.

Antônio Pires Eustáquio tinha 43 anos, três a mais que o repórter, e era o chefe do Cemitério Dom Bosco desde 1978. Cuidava do lugar como se fosse um caseiro. Naquele momento, em julho de 1990, estava empenhado na construção de um ossário geral, uma grande galeria feita de alvenaria para a qual, vencido o prazo legal de três anos e um mês para a exumação dos corpos, seriam transferidas as ossadas dos indigentes e aquelas que não fossem retiradas pelas famílias.

Assim que o administrador se aproximou, os sepultadores se afastaram, intuindo que poderia sobrar para eles. Vai que escapa alguma coisa que não deveria ser dita. Toninho se apresentou e perguntou se Caco havia farejado algo ali para o noticiário.

Caco contou um pouco da pesquisa que estava fazendo sobre morte violenta em São Paulo e que havia se deparado com muitos personagens que tinham sido enterrados em Perus. Comentou que alguns dos mortos não estavam mais nas valas em que tinham sido enterrados, o que trazia alguma dificuldade para conferir informações.

Toninho foi enfático:

— Isso não é nada perto do que eu tenho pra te falar. Eu tenho a matéria que vai te consagrar.

Caco Barcellos desconfiou.

— E o que é?

— Vem comigo.

O administrador queria falar com o jornalista num lugar mais reservado, longe da vista dos funcionários e do corre-corre das crianças, uma tradição naquele cemitério, encravado num bairro periférico carente de áreas de lazer.

— Olha, você não vai conseguir encontrar as ossadas que você está procurando — Toninho afirmou. — Essas ossadas não estão mais nas covas originais.

Caco ouviu atento o relato do administrador.

— Existe um buraco aqui no cemitério, um ossário clandestino onde foram jogados os restos mortais de umas 1.500 pessoas, enterradas como indigentes, em 1976. Garanto pra você que esses corpos que você procura estão escondidos nesse buraco. São as pessoas que sumiram dos livros de registros.

O jornalista saiu do cemitério impressionado. Aquilo era grave. Muito grave. Prometeu voltar outro dia.

Naquela mesma noite, Caco telefonou para o editor do Globo Repórter, Narciso Kalili. Resumidamente, contou que as pesquisas no IML o haviam conduzido à descoberta dos laudos com a letra T de “terrorista” e que essas mesmas pessoas haviam desaparecido dentro do cemitério de Perus, na periferia de São Paulo. Contou a revelação feita pelo administrador e compartilhou com o editor a desconfiança de que aquele caso poderia jogar alguma luz sobre a busca pelos desaparecidos da ditadura.

— Vai atrás — Kalili respondeu. — Do que você precisa?

— Só preciso ficar mais uns dias nessa matéria, conversar melhor com esse Toninho e checar as informações que ele me passar.

Toninho, por sua vez, voltou para casa preocupado aquela noite. Ele não queria mais guardar aquele segredo. Sabia que aquelas ossadas precisavam ser reveladas e identificadas. Sentia um dever cívico, um clamor pela verdade, um impulso que o impelia a contar o que sabia e acabar com essa história de uma vez por todas. Era preciso agir, e um repórter conhecido como Caco Barcellos poderia ajudar. Ao mesmo tempo, Toninho temia a repercussão que aquela denúncia poderia suscitar. E se algum desafeto espalhasse que tinha sido ele o delator? E se houvesse alguma represália?

Por um momento, o administrador se arrependeu de ter contado. A ditadura havia acabado, mas ainda não tinha esfriado.

Quando Caco retornou ao cemitério, na terça-feira, Toninho não quis recebê-lo. Após alguma insistência do repórter, o atendeu e negou tudo. Dizia que não tinha falado nada daquilo no domingo anterior. Pronto: Toninho estava sendo ameaçado ou tinha se arrependido de dar com a língua nos dentes, o jornalista concluiu. E agora?

Constrangido, Caco avisou ao editor que a pauta havia caído, que o informante não tinha sustentado a história. Voltou no domingo seguinte, disposto a retomar os crimes da Rota e a tentar identificar alguma vítima ali.

— Preciso falar com você — Toninho o abordou. — Tenho informações sigilosas para lhe passar.

“Que cara maluco”, Caco pensou. “Acho que aos domingos ele bebe, fica meio alto e se enche de coragem. Ou então inventa essas histórias”.

Toninho repetiu com ele exatamente a mesma sequência da semana anterior. Os dois se afastaram das quadras para conversar, caminharam até próximo ao muro do cemitério, e Toninho contou sobre o ossário escondido, exatamente como fizera da outra vez.

— Toninho, você já mostrou esse lugar para mais alguém?

— Só pro Molina, um engenheiro do Rio que veio até aqui procurar o irmão.

— E quando foi isso?

— Faz muito tempo. Acho que em 1980 ou 1981. Foi logo depois da anistia.

— E o que você disse a ele?

— A mesma coisa que estou contando pra você. Só que ele foi mais curioso. Perguntou se eu poderia abrir um pedacinho da vala. Acho que ele é melhor repórter que você.

***

Naquela semana, Caco Barcellos começou a desenhar uma das muitas reportagens fascinantes e arriscadas que fizera ao longo da carreira. A disputa era acirrada. Em 1980, Caco fora feito refém na Nicarágua, confundido com um espião ao cobrir a guerra civil desencadeada pela revolução sandinista, que derrubara a ditadura da família Somoza no ano anterior. Em 1989, fora detido pelo Exército de Libertação Nacional da Colômbia enquanto investigava o sequestro de três engenheiros da Braspetro, mantidos em cativeiro no país vizinho para denunciar um governo que, segundo a organização guerrilheira, atentava contra a soberania nacional e permitia a exploração de suas riquezas a preço de banana por empresas estrangeiras, como a estatal subordinada à Petrobras.

Agora, o jornalista via-se diante dos escombros de uma outra guerra, apenas controlada com a volta dos civis ao poder em 1985 e a promulgação da Constituição Federal em 1988, mas que deixara pelo caminho um extenso repertório de mortes, muitas delas sob tortura, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres.

Caco sabia que aquela era uma oportunidade única de revelar informações preciosas que poderiam levar à localização de dezenas de desaparecidos. Impossível prever as reações que uma revelação como aquela poderia provocar nas Forças Armadas e em setores conservadores da política. Caco temia, sobretudo, pela carreira de Toninho. Quiçá pela vida do administrador.

Para dar seguimento à investigação, Caco precisaria entrevistar o tal Molina. Pegou uma lista telefônica do Rio de Janeiro e se preparou para ligar para todos os assinantes com aquele sobrenome. Logo na primeira tentativa, localizou quem ele buscava. Na mesma semana, foi até o Rio para encontrá-lo. O carro da reportagem buscou o engenheiro em Botafogo, no prédio da empresa em que ele trabalhava, e o levou até o Morro do Pasmado, onde foi feita a gravação. Gilberto Molina confirmou a história contada por Toninho. Ele não apenas tinha ido a Perus como havia visto as ossadas escondidas sob o gramado nos fundos do prédio da administração.

Ainda em 1979, Gilberto tivera acesso a documentos oficiais que confirmavam a morte de seu irmão mais novo, o militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) Flávio Carvalho Molina, aos 23 anos, em 1971. Um ofício assinado pelo então diretor do Dops, Romeu Tuma, revelava que Flávio havia falecido em 7 de novembro de 1971 e que seu corpo fora sepultado no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta, dois dias depois. Aquele papel comprovava a ocultação deliberada do cadáver, uma vez que a repressão conhecia não apenas seu codinome, mas também seu nome verdadeiro. Mesmo assim, Flávio fora enterrado como indigente, sem que nenhum familiar fosse comunicado.

Em 1981, Gilberto Molina aproveitou que estava em São Paulo por conta de um trabalho e tomou o trem rumo a Perus levando consigo o ofício assinado por Tuma. Se os restos mortais de seu irmão de fato estivessem naquele cemitério, conforme citado no documento do Dops, ele solicitaria imediatamente seu traslado para o jazigo da família, no Rio de Janeiro. Apresentou-se ao administrador e declinou os dois nomes de seu irmão, o verdadeiro e o falso. Uma anotação feita na página 33 do livro 3 do cemitério desfez qualquer dúvida: Álvaro Lopes Peralta tinha sido enterrado na cova número 14 da quadra 2 no dia 9 de novembro de 1971.

Emocionado, Gilberto perguntou ao administrador o procedimento para fazer o traslado dos restos mortais para o Rio.

— Senhor Gilberto — Toninho falava pausadamente, com a gravidade que o assunto exigia —, infelizmente não vai ser tão fácil fazer esse traslado.

O engenheiro quis saber a razão.

— O senhor está vendo aqui no livro que o corpo do seu irmão foi exumado no dia 11 de maio de 1976?

— Sim.

— Pois é. Isso significa que ele foi retirado da cova original nessa data. Esse é um procedimento regulamentar, que acontece com os corpos dos desconhecidos e não reclamados após três anos e 30 dias do sepultamento, sempre que o serviço funerário julga necessário abrir espaço nas quadras para novos enterros.

— Eu entendo. Mas o corpo foi recolocado em outro local, certo?

— Aí é que está. No livro só consta que os despojos do teu irmão foram exumados. Não há nenhuma informação sobre reinumação, o senhor percebe?

— Ele foi retirado da cova e não foi realocado em lugar nenhum, é isso?

— Vem comigo.

Toninho conduziu o engenheiro até a quadra 12 e mostrou a ele a cova 14, local da sepultura original. Em seguida, explicou que, normalmente, vencido o prazo regulamentar, os restos mortais são acondicionados num saco menor e enterrados no fundo da mesma sepultura para que outro caixão pudesse ocupar o espaço acima. Feito isso, acompanhou o engenheiro até uma área onde havia um grande cruzeiro branco, sobre um pedestal onde os fiéis acendiam velas, junto a um barranco atrás do prédio da administração, e contou a ele que, anos antes, entre 1975 e 1976, houvera uma exumação em massa nas quadras 1 e 2. Com uma característica peculiar: não havia registro do local de reinumação de nenhuma ossada.

Quando soube disso, Toninho, que ainda não era funcionário do cemitério na época da exumação em massa, contara um a um os nomes que tiveram seus despojos exumados entre 1975 e 1976 e sobre os quais não constava nenhuma informação referente a reinumação. Chegou ao número aproximado de 1.500 indigentes. Era como se todos eles tivessem sumido aos olhos do Estado. Eles estavam ali, mas não estavam. Haviam desaparecido pela segunda vez.

— Que absurdo — Molina não se conformava.

Em seguida, o administrador contou ao engenheiro que buscou saber a razão daqueles dados incompletos e que, por muito tempo, fora demovido da busca. “Não mexe com isso”, dizia um funcionário mais antigo. “Deixa pra lá”, dizia outro. Até que um deles, cansado da insistência de Toninho em fazer perguntas sobre aquele assunto, revelara o que sabia. “Essas ossadas que você procura estão lá na área do cruzeiro”, ouviu de um sepultador. “Fui eu que abri o buraco com a retroescavadeira, cumprindo ordens. Agora vê se não enche mais o saco. São indigentes, porra, quem se importa com eles?”

Gilberto Molina ouviu calado à exposição feita por Toninho. Pensava em seu pai e, sobretudo, em sua mãe, na esperança que eles tinham de enterrar o filho desaparecido. Desde meados dos anos 1970, ele havia procurado advogados, juntado documentos, cobrado autoridades, feito reuniões com familiares de desaparecidos. Agora estava ali, em São Paulo, tão perto do irmão. Dali a poucos meses, a morte de Flávio completaria dez anos. Não haveria ocasião melhor para fazer o traslado e organizar uma cerimônia de despedida no Cemitério São João Batista.

— Se eu requerer a exumação, vocês ainda assim não poderão abrir o buraco?

— Não é tão simples — Toninho lamentou. — Será necessária uma solicitação oficial, a abertura de um processo administrativo. Tecnicamente, esse buraco não existe. Seu pedido será negado porque o serviço funerário não tem como localizar o corpo.

— Como não tem, se o corpo está aqui, bem embaixo dos seus pés? — Molina parecia angustiado. — É preciso denunciar, abrir logo esse buraco. Deve haver outros desaparecidos aí.

— Durmo e acordo pensando nisso todos os dias, senhor Gilberto. Mas o momento não é favorável…

Em 1981, o Brasil ainda era presidido por um general. O Dops estava em plena atividade. A Lei de Segurança Nacional vigia. Havia prisões políticas, como as dos sindicalistas do ABC um ano antes, e práticas nebulosas norteavam os trabalhos na auditoria militar e no Supremo Tribunal Militar. Os julgamentos eram viciados e inevitavelmente terminavam na condenação do mais fraco. Sobretudo, o Estado de São Paulo era governado por Paulo Maluf, um político conservador, amigo da Rota e dos militares, que tinha sido prefeito exatamente nos anos em que aquele cemitério fora construído e inaugurado.

Gilberto Molina parecia exausto, resignado em voltar ao Rio de mãos vazias.

— Seu Antonio, me elucida mais uma dúvida, por gentileza. Se as ossadas estiverem mesmo aí embaixo e forem retiradas, elas estarão identificadas? — quis saber. — Ou seja: será possível encontrar um saco com o nome do meu irmão?

— Tudo indica que sim. Os sacos são etiquetados. Pelo menos é esse o procedimento padrão em todas as exumações.

— E você me permitiria ver? Seria muito importante poder confirmar a existência desse ossário e voltar para casa com algum sinal de esperança.

Toninho foi buscar uma retroescavadeira e pôs-se a escavar numa das pontas do local. Retirou uma camada de terra, algo como 50 centímetros de profundidade, e o primeiro saco de plástico azul apareceu. Desfez um laço e o primeiro punhado de ossos surgiu. Toninho agarrou um osso comprido, provavelmente um fêmur.

— Então, senhor Gilberto, seu irmão era grande?

O engenheiro sentiu as pernas bambas, a visão turva.

Toninho tirou outro saco do buraco e exibiu um crânio. Em nenhum dos sacos era possível encontrar etiquetas. Feitas de papel, por certo elas haviam se desintegrado no contato prolongado com a terra úmida.

O engenheiro veio às lágrimas. Afastou-se daquele lugar e fitou o horizonte, na esperança de se recuperar. O coração atropelado, a respiração arfante. Aquele calvário jamais teria fim? A mãe adoecida, envelhecendo… Gilberto Molina chegara ao cemitério otimista e encontrara ali um cenário de dor, mentira, descaso e injustiça.

Ele havia chegado tão perto e, mais uma vez, o direito de enterrar seu irmão lhe escapava pelas mãos.

***

De volta a São Paulo, Caco foi falar com o editor do Globo Repórter.

— A história é verdadeira, Narciso. Confirmei com o irmão de um desaparecido.

— Sensacional. E o que você sugere?

— Um programa. Vamos revelar o paradeiro desses desaparecidos no Globo Repórter. Preciso de duas semanas.

— Vai em frente.

O repórter gaúcho de corpo mirrado, radicado em São Paulo e morador da Rua Bento Freitas, no centro da cidade, se agigantou em seu 1,70 metro incompleto. A existência de um buraco repleto de ossos sem qualquer registro oficial já era, em si, conteúdo suficiente para uma grave denúncia. Aquela não era apenas uma vala comum, mas uma vala clandestina, na acepção exata da palavra. Uma vala extraoficial. Caco buscara se certificar disso. Sem levantar suspeitas, solicitara ao serviço funerário um mapa do cemitério e confirmou: não havia nada naquele espaço além do cruzeiro.

Bom, o que ele já tinha conseguido reunir? Os exames do IML com a letra T de “terrorista”, a certeza de que guerrilheiros tinham sido enterrados no Cemitério Dom Bosco com nome falso ou sem nome nenhum, a informação inédita – e exclusiva – de que uma vala clandestina construída nos anos 1970 ocultava parte desses desaparecidos. Tinha também o depoimento do Gilberto Molina, irmão do desaparecido Flávio Carvalho Molina. O que ele precisava, agora, era cruzar os documentos do IML com uma lista de mortos e desaparecidos e com os livros do cemitério. Por meio das datas prováveis das mortes e dos codinomes indicados nos laudos e nos livros, talvez fosse possível estabelecer uma relação entre aqueles indigentes marcados com o T de “terrorista” e as histórias por trás daquelas execuções.

Caco precisaria conversar com familiares de mortos e desaparecidos. Essas organizações, ele sabia, tinham desbravado muitos arquivos, inclusive nos cemitérios, e reuniam um acervo inesgotável de informações preciosas. Toninho sugeriu que ele procurasse uma moça de nome Suzana.

— Suzana?

— Ela e o marido foram guerrilheiros. Ele morreu em 1972. O corpo dele foi enterrado aqui, registrado com o nome de Nelson Bueno. Sempre a mesma história.

Toninho havia ajudado Suzana a localizar os restos mortais do marido no livro de registros e, por extensão, sua sepultura, em 1979. Em 1982, cuidara da exumação e do traslado para Porto Alegre.

— Suzana é corajosa — afirmou. — Vai ajudar no que você precisar.

Em 1990, Suzana Keniger Lisbôa militava na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, organização que havia surgido anos antes para reivindicar verdade e justiça. Luís Eurico Tejera Lisbôa, seu marido, morrera em 1972. A versão oficial dizia que ele tinha cometido suicídio numa pensão onde se hospedara no Bairro da Liberdade, em São Paulo. Ela nunca acreditou na versão oficial, sustentada inclusive pela dona da pensão, mas jamais conseguira obter informações que a confrontassem.

Semanas antes, Suzana tinha sido procurada pelo produtor Maurício Maia, que contara a ela sobre a descoberta dos laudos com a letra T e pedira sua ajuda para obter uma lista atualizada dos desaparecidos políticos com as datas prováveis de morte de cada um. Agora, Caco queria entrevistá-la para que ela comentasse a existência da vala clandestina e contasse a história da busca e da localização dos restos mortais de seu marido. Feita a entrevista, Caco perguntou se ela o acompanharia numa visita à pensão onde Luís Eurico teria se suicidado. Ele queria gravar um depoimento dela ali e fazer imagens do quarto onde acontecera o suposto suicídio.

Numa reviravolta surpreendente, um dos inquilinos da pensão afirmou diante das câmeras que a história que corria na pensão era outra.

— Entraram pela janela e atiraram nele — contou. — Ele era contrabandista.

Caco perguntou se ele sabia quantos eram os policiais.

— Parece que foram dois. Chamaram, ele não atendeu, aí foram e atiraram por ali. Aí puxaram ele e estava cheio de sangue. Depois que mataram ele, voltaram e falaram que era assaltante. Quem explicou pra mim foi uma senhora que morou aqui.

— A dona da pensão?

— A dona da pensão.

— Qual o nome dela?

— Marina.

Caco virou-se para Suzana e perguntou se ela já tinha ouvido aquela versão.

— É a primeira vez. Falei diversas vezes com a Dona Marina aqui, ela nunca foi chamada a depor, e pelo jeito é a única pessoa que conta a verdade sobre essa história.

Suzana desatou a chorar. Um choro sofrido, de revolta e dor, capturado pelas câmeras da reportagem após quase 20 anos de mentira.

Agosto ainda não tinha terminado quando Caco Barcellos deu o programa por encerrado. Além de Suzana e Gilberto Molina, irmão do Flávio, Caco havia entrevistado dona Iracema Rocha Merlino, mãe de Luiz Eduardo Merlino, Shuniti Torigoe, irmão de Hiroaki Torigoe, e o casal Berl e Bilma Reicher, pais de Gelson Reicher, entre outros familiares de mortos e desaparecidos. Agora, estava tudo pronto. Faltava apenas o mais importante: um desfecho para a denúncia sobre a vala. “Daqui a pouco o ossário geral fica pronto, os sepultadores transferem as ossadas da vala clandestina para lá e ninguém fica sabendo de nada disso”, Caco pensava. Pediu ajuda para Suzana.

— A matéria está pronta, Suzana. Só falta abrir a vala.

Servidora da Assembleia Legislativa de São Paulo cedida para a Prefeitura e lotada no Anhembi até o mês anterior, Suzana sugeriu levar o assunto a Lúcio Gregori, então Secretário Municipal de Serviços e Obras. No dia seguinte, ela voltou com o encaminhamento do secretário. Segundo Suzana, Gregori recomendou ao grupo agendar uma visitar ao cemitério junto com o diretor superintendente do serviço funerário, Rui Alencar. E garantiu a ela que autorizaria a abertura da vala.

Faltava pouco para Caco Barcellos concluir a última etapa naquela apuração e garantir as imagens de abertura para o Globo Repórter.

Rui Alencar havia sido empossado em 15 de janeiro daquele ano. Chegara para apagar incêndio numa das autarquias mais complicadas daquela administração. Seu antecessor, empossado um ano antes, no início do governo, fora indicado pelo PCB, um dos partidos políticos coligados, e acabou exonerado em poucos meses, sob a acusação de conivência com práticas pouco republicanas no trato com a coisa pública. Militante da Ação Popular em Goiás nos anos de chumbo e fundador do diretório zonal do PT de Pinheiros, em São Paulo, nos anos 1980, Rui ouviu pedidos tão insistentes para que assumisse o cargo, inclusive da prefeita, que acabou aceitando a nomeação. Em uma semana, estava arrependido.

Sob a supervisão de Rui Alencar, o serviço funerário era uma autarquia com 1.800 funcionários, 21 cemitérios, doze agências e uma fábrica de caixões. Havia de tudo naquele microcosmo ao qual ele jamais prestara atenção: um percentual altíssimo de alcoolismo, um movimento grevista prestes a eclodir na fábrica, diversos cemitérios carentes de ossário geral, denúncias envolvendo máfias de certidões e comércio ilegal de sepulturas.

Aos poucos, Rui foi agendando visitas aos cemitérios a fim de conhecer os administradores e conferir as instalações. Em agosto, ele ainda não havia visitado nenhuma vez o Cemitério Dom Bosco, um dos mais afastados do centro, mas também o mais novo, inaugurado a menos de 20 anos. Cedo ou tarde, ele precisaria mesmo dar um pulo lá.

Foi Suzana quem tomou a iniciativa de telefonar para ele. Os dois já se conheciam. Prudente, ela preferiu não se alongar por telefone. Combinou de visitá-lo na sexta-feira e levou Caco Barcellos. Receptivo, Rui ouviu um resumo da audaciosa investigação conduzida pelo repórter nos últimos meses e também o corajoso périplo dos familiares ao longo de mais de uma década de buscas. Caco explicou que estava com um Globo Repórter praticamente pronto para contar a história da procura pelos desaparecidos políticos, mas que seria fundamental gravar algumas imagens da abertura da vala. Ele sabia que um ossário geral estava sendo construído ao lado da vala e que seria natural remover as ossadas para lá. Faltava a autorização da Prefeitura para a exumação.

Rui se lembrou que, ainda em janeiro, o vereador Adriano Diogo, ex-preso político, o alertara de que havia um problema no cemitério de Perus que exigiria alguma atenção do diretor superintendente recém-empossado. Agora, as peças pareciam se encaixar. Propôs fazerem juntos uma visita ao cemitério na terça-feira seguinte, dia 4 de setembro, às 10 horas, e encerrou a reunião convencido de que a visita que acabara de agendar teria caráter técnico. Rui pediria ao administrador, Antonio Pires Eustáquio, para indicar a localização da vala, como fizera com Caco e Suzana. Talvez escavasse um pequeno trecho para confirmar. Então deliberariam sobre o que fazer.

No dia 4 de setembro, às 10 horas, Rui estacionou seu carro em frente ao prédio de administração do cemitério e deu de cara com o circo armado. Caco Barcellos, repórter notívago conhecido pelos colegas pela dificuldade em acordar cedo e ser pontual nas pautas, havia caído da cama. Chegara ao local por volta das 8 horas. Junto com ele estava o cinegrafista Hugo Sá Peixoto, que àquela altura já subia e descia o barranco, fazendo as primeiras tomadas em vídeo.

Fotógrafos e repórteres de texto de outros veículos começaram a chegar. Toda a imprensa tinha sido convidada. A pauta? A abertura de uma vala clandestina onde teriam sido ocultadas mais de mil ossadas na metade dos anos 1970.

***

O telefone tocou no gabinete da prefeita. Toque de telefone é sempre igual. Se não fosse, a telefonista seria capaz de jurar que, daquela vez, o aparelho soara mais alto e estridente do que de costume. O telefone tinha motivos de sobra para gritar.

Rui Alencar não quis adiantar o assunto com ninguém. Nem com Muna Zeyn, secretária particular da prefeita, nem com Alípio Casali, o chefe de gabinete.

— Preciso falar com a prefeita com urgência! — anunciou. — Estou no cemitério de Perus e tem um caso sério acontecendo aqui neste exato momento.

Luiza Erundina interrompeu a reunião para atender ao telefone.

— Prefeita, estou aqui no Cemitério Dom Bosco e acabam de descobrir uma vala clandestina. Cavaram um buraco e não para de sair saco aqui de dentro. Sacos com ossos. São dezenas. Talvez centenas.

Erundina nem esperou o superintendente concluir a explicação para se levantar e encerrar a reunião. Em dois minutos, embarcava no carro oficial a caminho do local. Na lembrança de Rui Alencar, a prefeita transpôs em tempo recorde os 35 quilômetros que separavam a sede da Prefeitura, no Parque do Ibirapuera, e a vala clandestina, em Perus. Em vinte minutos, Erundina estava à beira da vala, conferindo de perto o trabalho de remoção das ossadas e respondendo às perguntas dos jornalistas.

Dois anos antes, em setembro de 1988, Luiza Erundina estava em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo, atrás do ex-prefeito e ex-governador Paulo Maluf e do secretário estadual de Obras, João Leiva, apoiado pelo então governador Orestes Quércia. Paraibana de Uiraúna, na divisa com o Rio Grande do Norte e o Ceará, Erundina tinha sido secretária de Educação e Cultura de Campina Grande e militara nas Ligas Camponesas na Paraíba antes de migrar para São Paulo, no início dos anos 1970. Eleita vereadora em 1982 e deputada estadual em 1986, surpreendera o diretório nacional do PT ao vencer a eleição interna para a escolha do candidato a prefeito, num momento em que os principais dirigentes petistas, como Lula e José Dirceu, apoiavam o nome de Plínio de Arruda Sampaio. Após uma campanha popular, investindo essencialmente no diálogo com a periferia, Erundina vencera a eleição com 33% dos votos válidos, superando Maluf (24%) e Leiva (14%), numa época em que não existia segundo turno.

Primeira mulher a governar São Paulo, e primeira prefeita declaradamente de esquerda, Erundina cercara-se de lideranças populares e intelectuais renomados para montar um secretariado de peso. Paulo Freire, Marilena Chaui, Paul Singer, Dalmo Dallari e Ermínia Maricato assumiram pastas como Educação, Cultura, Planejamento, Negócios Jurídicos e Habitação. A oposição à ditadura militar e o compromisso com a reparação histórica vinha explicitada em nomeações como a de Paulo Freire, preso e exilado em 1964, e de Rosalina Santa Cruz, ex-guerrilheira e presa política, irmã do desaparecido Fernando Santa Cruz, para a Secretaria de Bem-Estar Social. Além, é claro, do então vice-prefeito Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado com destacada atuação na defesa de perseguidos políticos, presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e um dos responsáveis pela pesquisa que resultou no livro Brasil: Nunca Mais.

Aberta a vala, Erundina assumiu para si a responsabilidade pela preservação e pela investigação daquele material surpreendente. Peitou a Polícia Civil e o IML, que reivindicavam a tutela das ossadas, e determinou que caberia à Prefeitura conduzir esse processo, firmando os convênios necessários e estabelecendo diálogo com os familiares de desaparecidos. “O governo municipal não vai abrir mão desses encaminhamentos”, declarou. “Temos que levá-los às últimas consequências, dure o tempo que durar, custe o que custar. É isso que é importante e é isso que nos dá vontade e certeza dos resultados desse esforço, que não é só do governo municipal, mas também da sociedade, dos familiares e das entidades que lutam pelos direitos humanos em nossa cidade e em nosso país”.

Por volta do meio-dia, a imprensa internacional também começou a se dirigir a Perus. Repórteres da BBC de Londres e da RAI italiana estavam entre os jornalistas que se acotovelavam em busca de declarações. Suzana telefonou para outros integrantes da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, como Amelinha Teles e Ivan Seixas, e pediu para que fossem até lá. Era humanamente impossível supervisionar sozinha a retirada dos ossos e atender a tantos pedidos de entrevistas e esclarecimentos.

As imagens capturadas pelas câmeras eram chocantes. Além dos sacos azuis fechados, havia ossos dispersos, espalhados pela vala ou que acabavam vertendo dos sacos ressequidos e quebradiços pelo tempo. Crânios eram retirados do buraco e sintetizavam o sentido fúnebre daquela revelação. Mais do que fúnebre, funesto.

A vala clandestina era um buraco estreito e pouco profundo, com 30 metros de comprimento por 50 centímetros de largura e 2,70 metros de profundidade. Ao longo daquela semana foram retirados 1.049 sacos de plástico azul cheios de ossos e realocados numa sala de velório que os funcionários chamavam de capela. Em tese, havia uma ossada em cada saco, o que fez com que os meios de comunicação divulgassem a notícia de que 1.049 ossadas haviam sido localizadas. Aqui e ali, percebia-se a mistura de ossos, o que indicava a necessidade de um rigoroso trabalho arqueológico de limpeza e separação.

Um sistema extraoficial de morte e ocultação, adotado como política de Estado, começava a ganhar visibilidade. Tudo carecia de explicação. As informações eram desencontradas.

O momento era de tensão nos setores mais conservadores das Forças Armadas. Ameaças de morte logo começaram a aparecer, direcionadas num primeiro momento ao administrador do cemitério, que ousara dar com a língua nos dentes e mexer naquele vespeiro. Para os familiares de mortos e desaparecidos, as ameaças eram uma constante.

Enquanto as ossadas eram retiradas da vala, providências foram tomadas na Prefeitura, na Câmara Municipal, no gabinete do governador. Havia muita coisa a ser feita. O então secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, prometeu vigilância permanente no local até que todas as ossadas fossem retiradas e levadas a um local seguro. Vereadores discutiam a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a origem daquela vala e apurar as responsabilidades. Nos bastidores, a prefeita mexia os pauzinhos para formar uma comissão de acompanhamento sob sua alçada e definir a melhor maneira de analisar aquela montanha de ossos a fim de identificá-las. Quem eram aquelas pessoas? Como e por que foram mortas?

Naquela noite, o Jornal Nacional exibiu uma matéria curta, de três minutos, com imagens da abertura da vala de Perus, nome pelo qual o ossário clandestino se tornaria conhecido. A expectativa pela reportagem completa, a ser exibida na sexta-feira no Globo Repórter, só aumentava.

Por coincidência ou ironia do destino, aquela sexta-feira seria o feriado pátrio de 7 de setembro, aniversário da Independência, data em que desfiles militares e apresentações da esquadrilha da fumaça costumavam elevar o ufanismo verde-amarelo a um patamar sem precedentes. Exibir aquele programa em um 7 de setembro seria não somente uma afronta, mas um golaço contra os militares. Suzana Lisbôa prestara atenção às palavras usadas pelo repórter ao gravar a matéria e estava exultante. Caco se referia aos desaparecidos como guerrilheiros, e não como terroristas, algo pouco comum no horário nobre. E colocava na conta da repressão práticas criminosas como sequestro, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres.

Quando a sexta-feira chegou, outro programa foi ao ar. A reportagem de Caco Barcellos havia sido engavetada.

Somente cinco anos depois, em 21 de julho de 1995, quando o Governo Federal discutia a elaboração de uma lei que oficializaria a morte de 136 desaparecidos políticos, os brasileiros puderam assistir na telinha da Globo a história completa da vala de Perus e sua participação no acobertamento de graves violações de direitos humanos.

 

Leia no próximo capítulo: Por que o prefeito Paulo Maluf construiu um novo cemitério nesse lugar em apenas um ano? Uma exumação em massa. Se a lei proíbe, muda-se a lei. Familiares de guerrilheiros mortos pela repressão encontram uma pista no livro de registros. “Seu irmão era alto?”