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Se no teu distrito
Tem farta sessão
De afogamento, chicote,
garrote e punção
A lei tem caprichos
O que hoje é banal
Um dia vai dar no jornal.

Chico Buarque, em “Hino da repressão”

 

— Sala das ossadas, boa tarde!

Ivan brincava ao telefone como uma forma de desopilar, aliviar a tensão, desanuviar a si mesmo e às outras integrantes da Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus. Suzana e Amelinha davam risada, surpreendidas pelo chiste aleatório em meio a um trabalho naturalmente triste e sombrio.

Não havia osso algum na “sala das ossadas”. Todo o material encontrado na vala havia permanecido lá, no cemitério, sob vigilância. No dia da abertura, não mais do que 50 sacos tinham sido retirados da terra e transferidos para uma sala do prédio da administração. As demais ossadas seriam retiradas da vala durante o mês de outubro, separadas e acondicionadas com a supervisão de peritos e médicos legistas.

Uma mesa e um telefone era tudo o que havia na sala da comissão, instalada no térreo do Pavilhão Padre Manuel da Nóbrega, no Parque do Ibirapuera, onde funcionava a Prefeitura – e onde, anos depois, funcionaria o Museu Afro Brasil. Para os três inquilinos, era mais do que suficiente. Seu olhar estava voltado para o lado de fora: as atividades na Comissão Parlamentar de Inquérito que se desenrolava na Câmara Municipal, a busca pelos arquivos da ditadura, a ampla investigação ainda por fazer. Trabalhavam quase sempre na rua, no encalço de quem tivesse explicações para dar, movidos por uma instigante sensação de que, finalmente, o paradeiro dos desaparecidos estava prestes a ser revelada.

A prefeita Luiza Erundina havia sido muito assertiva ao instalar a comissão de investigação logo no dia seguinte à abertura da vala. E também ao convidar Ivan, Suzana e Amelinha para integrá-la, todos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Originalmente, conforme publicado no Diário Oficial do Município no dia 6 de setembro, o “grupo de acompanhamento dos trabalhos periciais de identificação das ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco” foi formado pelos legistas Fortunato Badan Palhares e Nelson Massini, da Unicamp, que assumiriam a coordenação dos trabalhos de catalogação e análise das ossadas, Dalton F. de Assis e Vera Lúcia Figueiredo Osoegawa, do Serviço Funerário, Walter Piva Rodrigues, da Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos, e Fábio Ulhoa Coelho, da Secretaria do Governo Municipal. Os familiares entraram em seguida.

— Não quero uma comissão de burocratas — declarou a prefeita. — Quero que vocês, familiares, assumam essa comissão para que o resultado não seja somente um relatório impresso em papel timbrado.

Ivan e Suzana tinham vínculos bastante pessoais com o Cemitério Dom Bosco. Ali foram enterrados o pai de Ivan e o marido de Suzana. Desde os anos 1970, os dois tinham ciência da existência de uma vala clandestina naquele cemitério, destino de tantas ossadas exumadas sem indicação de local de reinumação, e por muito tempo haviam esperado uma oportunidade para deflagrá-la. Amelinha, por sua vez, militara no PCdoB e tinha uma história de resistência vinculada à guerrilha do Araguaia. Ali tombaram seu cunhado, André Grabois, e o pai dele, Maurício, em 1973. Sua irmã, Crimeia, estava grávida quando foi capturada pelos militares. Foi torturada com o bebê na barriga e deu à luz na prisão. Já Amelinha fora torturada no DOI-Codi sabendo que o filho Edson, de 5 anos, e Janaína, 4, haviam sido sequestrados por seus algozes e estavam por ali enquanto os choques eram aplicados e a palmatória cantava. Ao final de uma das sessões de tortura, as crianças ingressaram na cela.

— Mamãe, por que a senhora está verde e o papai está azul? — perguntou uma das crianças. Eram os hematomas, as marcas inefáveis da truculência institucional.

Agora, em 1990, Amelinha era diretora do grupo Tortura Nunca Mais em São Paulo. E a filha Janaína, historiadora e testemunha ocular do arbítrio, dali a alguns meses ingressaria também na comissão.

Luiza Erundina deu total autonomia para Ivan, Suzana e Amelinha realizarem os trabalhos como julgassem apropriado. Pediu apenas que, surgindo algo especial ou que fosse sensível, que a avisassem para que não fosse pega de surpresa. A prefeita também orientou os membros da comissão a subir à sua sala, no andar de cima, e a interrompê-la sempre que fosse preciso. O caso das ossadas havia se tornado uma prioridade em seu governo.

No mesmo dia em que foi instalada, os membros da comissão especial de investigação se mandaram para o cemitério. Algo muito importante estava sendo retirado daquela sepultura coletiva, eles sabiam, e era preciso ficar atento. Havia uma guerra silenciosa a tourear, um clima permanentemente conflituoso. Que tipo de reação poderia vir de setores das Forças Armadas envolvidos com os crimes de tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres? Como garantir que as ossadas fossem preservadas, protegendo-as de vandalismo ou de alterações propositais?

No próprio dia 4 de setembro, poucas horas após a retirada dos primeiros sacos de dentro da vala, um delegado da 46ª Delegacia de Polícia, de Perus, determinara a apreensão imediata das ossadas.

— Nada disso — a prefeita decidiu. — A Prefeitura vai assumir este caso. Trata-se de um fato eminentemente político, muito mais do que policial, e este cemitério é do município. A municipalidade é responsável por esses ossos.

Outras tentativas de intromissão não tardariam a surgir, de modo que uma das primeiras tarefas da comissão especial de investigação foi definir, junto com a Prefeitura, alguns protocolos. Foram os familiares, por exemplo, que demoveram a prefeita da ideia de encaminhar as ossadas para análise pelo Instituto Médico Legal.

— O IML é parte do sistema de desaparecimento e ocultação — alertaram, em reunião com a prefeita na tarde de quinta-feira, 6 de setembro.

Eles tinham razão. Nos anos 1970, o IML fora responsável pela falsificação sistemática de exames necroscópicos, expediente utilizado para esconder a verdadeira causa da morte de militantes políticos e também a responsabilidade do Estado. Talvez o caso mais célebre tenha sido o laudo assinado em 1975 pelos médicos legistas Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana afirmando que o jornalista Vladimir Herzog, torturado até a morte no DOI-Codi, cometera suicídio. Segundo o exame, ele teria se enforcado com uma tira de pano amarrada a uma janela a 1,63 metro do chão, mais baixa do que ele, e o corpo fora encontrado com as pernas dobradas, numa cena evidentemente forjada para ocultar a morte por tortura. Também no IML, muitos corpos devidamente identificados foram despidos de suas vestes e de seus documentos para serem enterrados como indigentes. Entre 1971 e 1974, principalmente em Perus.

Representantes de entidades como a Comissão Teotônio Vilela e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos reforçaram a reivindicação dos familiares em audiência com a prefeita. Uma das informações que mais circularam na ocasião, deixando muitos de cabelo em pé, foi a de que o IML era dirigido por José Antônio de Mello, o mesmo médico responsável por assinar o laudo necroscópico do operário Manoel Fiel Filho, torturado até a morte no DOI-Codi no dia 16 de janeiro de 1976. Erundina entendeu o risco e, mais uma vez, fez eco às reivindicações dos familiares de mortos e desaparecidos.

— Me senti pressionada por essas entidades e confesso que estou insegura com relação ao IML — Erundina declarou ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 6. — Estou convencida de que o IML é mesmo um órgão suspeito.

Erundina precisou se reunir mais de uma vez com o secretário de Segurança Pública do Estado, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, a fim de costurar com ele uma alternativa que contemplasse a reivindicação dos familiares: as ossadas iriam para o departamento de medicina legal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma instituição de pesquisa seria mais adequada para esse trabalho do que um órgão ligado à polícia.

A partir daquele momento, nenhuma decisão seria tomada pela prefeita sem ouvir os familiares. Foi assim que Erundina determinou a remoção dos livros do cemitério para seu próprio gabinete, temendo que eles pudessem desaparecer. Foi assim, também, que a prefeita mandou lacrar a sala do cemitério em que as ossadas tinham sido guardadas e ordenou a catalogação de todas as ossadas antes que fossem transferidas para Campinas.

Em poucas semanas, Ivan, Suzana e Amelinha ficaram conhecidos nos corredores da Prefeitura como “trio calafrio”. Jornalistas os procuravam para saber a situação das ossadas e também para que falassem sobre as mortes e desaparecimentos que, até então, jamais haviam tido espaço na imprensa tradicional.

Em 13 de setembro, numa atividade que nada tinha a ver com a Comissão da Prefeitura, mas com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, que os três também integravam, Ivan, Suzana e Amelinha chegaram de surpresa ao IML, acompanhados por uma advogada e por repórteres e cinegrafistas de televisão, e flagraram uma reunião em que o diretor José Antônio de Mello estava reunido com outros diretores, um promotor e um delegado, tramando uma estratégia para fechar o “museu” ou desviar parte do acervo de modo a se livrar de qualquer material comprometedor. Foi um quiproquó. Suzana notou que o livro com registros e fotografias dos mortos de 1971 havia desaparecido. Amelinha se lembrou de que o governador havia entregado um cartão de visita para ela na semana anterior, durante audiência com a prefeita. Foi até um orelhão e ligou. Apresentou-se como familiar de mortos e desaparecidos e insistiu que tinha urgência em falar com o governador. Orestes Quércia a atendeu prontamente.

— Governador — ela disse —, nós estamos aqui no IML e o diretor não está deixando ninguém entrar, mandou lacrar o arquivo. E ele nem deveria ser diretor do IML, porque foi ele quem assinou o laudo falso do Manuel Fiel Filho.

Por telefone, o governador pediu que Amelinha voltasse no dia seguinte. Prometeu que afastaria o diretor do IML naquela tarde e que, a partir do dia seguinte, o IML estaria com as portas abertas para os familiares de mortos e desaparecidos. E assim fez.

Ao longo de um semestre, o trio calafrio daria muito o que falar. Principalmente, ajudaria a orientar e a acompanhar, dia após dia, as atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara Municipal.

***

A Câmara Municipal de São Paulo estava em ebulição na manhã daquela quarta-feira. Ainda era de manhã quando o vereador Júlio César Caligiuri Filho (PDT) protocolou um requerimento para que fosse instituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a origem e as responsabilidades quanto às ossadas encontradas na vala clandestina.

Júlio conseguira reunir rapidamente as assinaturas necessárias, tamanha a comoção despertada pela descoberta da vala. O requerimento também demonstrava o interesse do vereador em ir além do Cemitério Dom Bosco e investigar a possível existência de outras valas clandestinas em outros cemitérios da cidade. Dizia o texto:

“Considerando que ontem, 04 de setembro, foi aberta uma vala que continha dezenas de ossadas no Cemitério Dom Bosco, em Perus; considerando que suspeitas sobre a existência de uma vala onde seriam enterrados presos políticos desaparecidos existem desde 1977; considerando que dezenas de presos políticos desapareceram na década de setenta; considerando que o famigerado Esquadrão da Morte fuzilou e sumiu com dezenas de pessoas; requeremos, nos termos regimentais, a constituição de Comissão Parlamentar de Inquérito, com 7 membros e 90 dias de prazo de funcionamento, para apurar a origem e as responsabilidades sobre as ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco, em Perus, e investigar a situação dos demais cemitérios de São Paulo.”

O requerimento recebeu o carimbo e a assinatura do presidente da Câmara, o vereador Eduardo Suplicy (PT), que anunciou os sete membros da CPI durante sessão ordinária na terça-feira seguinte, 11 de setembro: Júlio César Caligiuri Filho (presidente), Aldo Rebello (PCdoB, relator), Tereza Lajolo (PT), Ítalo Cardoso (PT), Antônio Carlos Caruso (PMDB), Marcos Mendonça (PSDB) e Oswaldo Giannetti (PDS). Foi batizada de “Comissão Parlamentar de Inquérito: Desaparecidos”, embora nos bastidores e também nos jornais fosse mais frequentemente referida como “CPI de Perus” ou “CPI das ossadas”. Vencido o período de 90 dias predeterminado, a Comissão seria prorrogada por mais três meses. Na segunda etapa, Aldo Rebello foi substituído por Vital Nolasco, também do PCdoB, e a relatoria ficou a cargo de Tereza Lajolo.

Os trabalhos da CPI começaram sob tensão. Antes mesmo da primeira oitiva, pairava sobre a equipe um clima de ameaça permanente.

O primeiro susto foi causado pelo sumiço repentino de Toninho Eustáquio, o administrador do cemitério, no dia 11 de setembro. Boatos de todo tipo circularam quando Toninho não apareceu no trabalho naquela manhã de terça-feira, uma semana após a descoberta das ossadas. Soube-se, ao longo do dia, que Toninho havia telefonado para o diretor de cemitérios do Serviço Funerário Municipal por volta das 23 horas na noite anterior para avisar que vinha recebendo ameaças de morte e iria com a família para um lugar sigiloso. Também a prefeita de São Paulo ouvira a mesma queixa do administrador, por telefone. Erundina tomara a providência de acionar o secretário estadual da Segurança Pública, Antônio Carlos Mariz de Oliveira, e obtivera a garantia de proteção especial. Toninho voltaria ao trabalho no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, alegando apenas que a esposa passara mal e lhe pedira para que a levasse para a casa da irmã, na Zona Sul da cidade, e a acompanhasse ao posto de saúde. Duas semanas depois, seria a vez de Júlio César Caligiuri, o presidente da CPI, revelar que também estava sendo ameaçado. Ele e sua família haviam recebido dois telefonemas anônimos com ameaças de morte.

A CPI foi oficialmente instalada no dia 17 de setembro, treze dias após a revelação da vala. Foi o início de uma aventura sem precedentes. Pela primeira vez, seriam colhidos depoimentos de pessoas envolvidas no sistema de morte e desaparecimento de militantes políticos, como torturadores, agentes do Dops e do DOI-Codi, médicos legistas que haviam assinado laudos falsos, um ex-prefeito e um ex-governador.

Respaldado no artigo 33 da Lei Orgânica do Município, a CPI tinha poder de “tomar depoimento de autoridade municipal”, “intimar testemunhas” e “inquiri-las”. Se alguém fosse convocado e não comparecesse para prestar depoimento, poderia o presidente da CPI solicitar a condução coercitiva do depoente.

Antes de convocar autoridades envolvidas em denúncias de tortura, falsidade ideológica e colaboração com a truculência da ditadura, os vereadores consideraram adequado ouvir o diretor do serviço funerário, o administrador do cemitério e os sepultadores que trabalhavam no Cemitério Dom Bosco na primeira metade dos anos 1970.

Uma pergunta parecia mais urgente do que todas as outras: quem mandou construir aquela vala?

***

Faltavam vinte minutos para as 10h quando Toninho chegou ao Palácio Anchieta, sede do Legislativo Municipal, naquela manhã de quarta-feira, 19 de setembro. Subiu até o décimo andar e se dirigiu ao auditório Oscar Pedroso Horta. O burburinho no corredor fez aumentar sua ansiedade. Os últimos 15 dias tinham virado sua rotina de pernas pro ar. Ameaças, entrevistas, foto estampada no jornal, reunião com a prefeita, Toninho não estava acostumado com nada daquilo. E, definitivamente, preferia não ter que se acostumar.

Quando uma intimação expedida em seu nome foi entregue na sede do Serviço Funerário, cinco dias antes, Toninho percebeu que a coisa ficava cada vez mais séria. “V.Sa. encontra-se intimada para depor perante esta Comissão Parlamentar de Inquérito”, dizia o ofício com o timbre da Câmara Municipal. Arrolado como testemunha para a primeira sessão ordinária de oitiva de testemunhas da CPI, Toninho se dirigiu ao número 100 do Viaduto Jacareí, no centro da cidade. Ali, soube que outras três testemunhas tinham sido convocadas para depor na mesma data: Rubens da Costa, antigo funcionário do Serviço Funerário, Rui Alencar, atual superintendente do Serviço Funerário, e Pedro José de Carvalho, assistente administrativo do cemitério de Itaquera e antigo sepultador no cemitério do Lajeado quando houve incêndios criminosos no local.

Toninho foi o segundo a depor, depois de Rubens da Costa. Contou que foi admitido no Cemitério Dom Bosco em 1977 como assistente de administração e promovido a administrador no ano seguinte, ocasião em que se debruçou sobre os livros e procurou saber o destino das mais de 1.500 ossadas com indicação de exumação e sem local de reinumação. O número exato, conforme a comissão de investigação da Prefeitura apuraria a partir da análise dos livros, era de 1.564 corpos exumados. A diferença entre essas 1.564 e as 1.049 localizadas em 1990, conforme dedução dos peritos, seria a presença de aproximadamente 500 crianças com menos de 12 anos de idade, cujas ossadas não resistiram ao tempo. Muito tempo depois, surgiria a hipótese, jamais comprovada, de que uma segunda vala clandestina poderia ter sido construída no mesmo cemitério, em outro local, recebendo essas 500 e pouco ossadas.

Toninho confirmou ainda que obteve a informação sobre a existência da vala e sua localização ainda em 1978 e que, dois ou três anos depois, determinara a abertura parcial da vala para que o engenheiro Gilberto Molina pudesse observar a situação das ossadas, entre as quais deveria estar a de seu irmão desaparecido, Flávio Carvalho Molina. Finalmente, contou aos vereadores que, agora em 1990, ainda havia terra virgem na gleba 3 do cemitério, uma área onde poderiam ser construídas novas quadras, com novas sepulturas, caso houvesse necessidade. Com alguma hesitação, tentou deixar claro que, embora não tivesse acesso a informações oficiais, não fazia sentido a tese de que a exumação em massa daquelas 1.500 ossadas seria necessária para que houvesse espaço para novas sepulturas.

— Em 1977, o cemitério já estava totalmente ocupado? — indagou o presidente da CPI.

— Não — respondeu o administrador. — O cemitério é subdividido em glebas de quadras. Ele tem as glebas 1, 2 e 3.

Toninho explicou que, ao assumir o posto, em 1977, a gleba 3 acabara de ser inaugurada. Foi ele que a dividiu em duas porções, uma destinada ao sepultamento familiar, ou seja, com o conhecimento dos familiares e as devidas homenagens, e outra destinada ao sepultamento de todos os corpos sem identificação ou que não tivessem sido buscados por ninguém: os “indigentes”, os “desconhecidos” e os “não reclamados”.

— Na gleba 3, existe ainda um canto virgem, disponível para abertura de novas valas — afirmou.

Antes de terminar seu depoimento, Toninho informou aos vereadores que o administrador do cemitério na época da construção da vala chamava-se Dilermando Lavrador. E declinou os nomes de quatro sepultadores do Dom Bosco que já trabalhavam ali em 1976: João Aparecido André, Pedro Batista Gasperi, Bráulio Araújo Miranda e Nelson Pereira. Os quatro foram intimados para depor na quarta-feira seguinte. Antes disso, na sexta-feira, os membros da CPI ouviriam o superintendente Rui Alencar, que não pôde ser ouvido na primeira sessão em razão do horário, e o ex-diretor do Departamento de Cemitérios do Município, Fábio Pereira Bueno.

***

— Esse procedimento é totalmente irregular!

A afirmação proferida por Fábio Pereira Bueno no dia 21 fez os vereadores arregalarem os olhos. Júlio decidiu cobrar os detalhes:

— O senhor disse que a exumação em massa feita em 1976 é ilegal?

— Não, a exumação não, o sepultamento na vala comum.

— É ilegal?

— No meu entendimento, é.

— Daria para depreender, dessa sua afirmação, que houve a intenção de dificultar a identificação desses cadáveres, desses restos mortais?

— Não sei, não sei — Fábio desconversou. — Não tenho conhecimento disso. Se foi intencional ou não, isso deve ser perguntado para quem executou aquilo, e por ordem de quem, e a troco de quê.

Fábio Pereira Bueno tinha dirigido o Departamento de Cemitérios da Prefeitura (Cemit) entre abril de 1970 e abril de 1974. Deixara o cargo dois anos antes, portanto, da ocultação de cadáveres na vala clandestina. Naquela época, o Serviço Funerário era uma autarquia à parte e não cuidava dos cemitérios, somente dos funerais. À frente do Serviço Funerário estava Jaime Augusto Lopes, já falecido na ocasião da CPI. Desde que o assunto havia invadido as páginas dos jornais e o noticiário das rádios e das TVs, naquele dia 4 de setembro, Fábio havia feito algumas contas e chegara à conclusão de que o sepultamento daquelas mais de mil pessoas numa vala comum tinha ocorrido em 1976, logo após a decisão de reorganizar a cadeia dos sepultamentos na cidade.

A afirmação do ex-diretor do Cemit permitia aos membros da CPI concluir que aquelas mil e tantas ossadas tinham sido exumadas majoritariamente durante a gestão do prefeito Miguel Colasuonno, no cargo entre agosto de 1973 e agosto de 1975, e ocultadas ilegalmente na vala clandestina durante o mandato de Olavo Setúbal, prefeito entre agosto de 1975 e julho de 1979.

— Repare nas fotos que exibem os sacos com as ossadas sendo retiradas da vala — alertava o aspirante a detetive. — Com o auxílio de uma lupa, vemos que há nesses sacos a inscrição SFMSP, sigla do Serviço Funerário Municipal. Isso significa que essas ossadas foram acondicionadas nesses sacos por nós, após a integração do Cemit pelo Serviço Funerário, o que se deu justamente em 1976. Antes disso, não havia esses sacos, muito menos sacos gravados com a sigla SFMSP.

Após uma hora de audiência, Fábio Pereira Bueno não apenas confirmara as irregularidades por trás do emprego de uma vala comum, de terra, para o sepultamento dos remanescentes ósseos de mais de mil pessoas, como relatara um evento do próprio Legislativo intimamente ligado àqueles fatos: uma oportuna alteração na lei municipal possibilitara a exumação naquele ano.

Quando os primeiros corpos foram enterrados em Perus, em março de 1971, a legislação estabelecia um prazo mínimo de cinco anos de permanência em sepultura individual. Somente após cinco anos, e caso nenhum familiar demonstrasse interesse em transferir os restos mortais para uma sepultura particular, seria facultado ao poder público realizar a exumação e a reinumação, para que o espaço pudesse ser ocupado por um novo caixão. Já em 22 de setembro de 1971, seis meses e vinte dias após a inauguração do Cemitério Dom Bosco, a Câmara aprovou a redução desse prazo para três anos. A lei 7.656/71 foi promulgada pelo prefeito Figueiredo Ferraz em 7 de outubro daquele ano, de modo que, em outubro de 1976, todos os corpos sepultados em Perus entre o dia da inauguração e outubro de 1973 estavam aptos à exumação compulsória.

Tudo parecia conspirar para aquela ocultação em massa: o Executivo, o Legislativo e, segundo Fábio, também o governo estadual, por meio do Instituto Médico Legal. Como?

— Naquela ocasião, quem trabalhava no Instituto Médico Legal era o Harry Shibata — lembrou. — O diretor era o Dr. Arnaldo, e o Harry Shibata, se não me falha a memória, era o subdiretor. Eu tive conhecimento em entendimento com ele, porque nós fizemos a transferência de encaminhamento dos corpos que eram sepultados na Vila Formosa e no Lajeado, em Guaianases, para o Cemitério de Perus. Diga-se de passagem, é muito mais fácil ir ao Cemitério de Perus, saindo do Instituto Médico Legal, do que ir ao Cemitério de Vila Formosa ou do Lajeado, que é em Guaianazes, porque o Cemitério de Perus está localizado no quilômetro 25 da Via Anhanguera, de fácil acesso pela Avenida Sumaré e depois a Marginal. E o Instituto Médico Legal nos solicitou, e o próprio Serviço Funerário, que pudessem encaminhar os corpos para lá.

Fábio Pereira Bueno voltaria a depor na CPI em 18 de abril do ano seguinte, na última sessão da CPI, após um recesso parlamentar que se estendeu por todo o mês de janeiro. Dessa vez, foi prestar maiores esclarecimentos sobre um dos temas mais espinhosos suscitados ao longo do inquérito: o projeto de instalar em Perus um forno crematório.

***

— Essa vala foi aberta pelas minhas mãos.

O mistério da construção da vala começou a ser solucionado no dia 26 de setembro com os depoimentos dos quatro sepultadores citados por Toninho Eustáquio. O primeiro a depor naquela manhã, Pedro Batista Gasperi, apresentou-se como operador de máquinas e revelou o que os vereadores já desconfiavam: se era ele o funcionário responsável por conduzir a retroescavadeira, então o buraco na área do cruzeiro tinha sido obra sua.

O vereador Aldo Rebelo, então relator da CPI, interpelou o operador de máquinas:

— Segundo consta, o processo normal, quando se promove uma exumação, é transferir os ossos para ossários construídos em alvenaria. Nesse caso, a vala que o senhor abriu, o senhor como operador de máquina, foi destinada a esse tipo ou foi…?

— Veja bem, essa vala foi aberta porque essas 1.500 a 1.600 ossadas já estavam havia mais de um ano na sala onde é o velório atualmente — Pedro respondeu. — Todo mundo parava para olhar.

— Por que não foi feita de alvenaria?

— Isso eu não sei dizer.

Em seguida, cada um à sua maneira, os outros sepultadores confirmaram o relato. Nelson, por exemplo, deu mais detalhes sobre o intervalo entre a exumação em massa e a reinumação na vala clandestina.

— Esses corpos ficaram por quanto tempo no velório? — Tereza Lajolo perguntou.

— Aproximadamente um ano.

— Um ano?

— É.

— E, durante esse tempo, houve uma discussão sobre o que fazer com os ossos, “para onde nós vamos levar esses corpos”?

— Se alguém ficou discutindo isso, foram os administradores, os diretores.

— E o que vocês ouviam comentar sobre a questão do destino?

— A gente ouvia poucos comentários a esse respeito.

Dilermando Lavrador, antigo administrador do Cemitério Dom Bosco, assumiu para si a responsabilidade pela exumação nas sepulturas e também pela reinumação na vala clandestina.

— Fui eu que autorizei — contou em depoimento prestado à CPI no dia 1º de novembro. — Saiu um decreto da Prefeitura dizendo que aquele cemitério passaria a vender terrenos, ou seja, que haveria concessões. Como as quadras 1 e 2 eram a melhor área do cemitério, eu simplesmente achei por bem vender aquela parte, perto da entrada. Mandei fazer as exumações. Já havia decorrido o prazo normal que a lei permitia. Identifiquei os ossos com os nomes, dentro e fora dos saquinhos, e coloquei os sacos no velório. Naquela época o velório não era usado. Os ossos ficaram lá por aproximadamente cinco meses. Como não veio família nenhuma retirar, deve ter vindo umas oito ou dez procurar pelos ossos e nós não tínhamos ossário naquele cemitério, mandei fazer uma vala e coloquei os ossos lá.

Em todas as respostas, o mesmo tom de naturalidade e inocência, como se ninguém tivesse cometido nenhuma irregularidade, como se esconder esqueletos num buraco de terra, sem qualquer registro oficial na Prefeitura nem indicação nos mapas oficiais do cemitério, fosse algo prosaico, corriqueiro e legítimo. Havia, ali, a certeza da impunidade e certo voluntarismo, como se coubesse a um administrador ou a um diretor de autarquia encontrar um “jeitinho” para resolver um problema considerado de menor importância. Nenhuma preocupação com protocolo ou com a hipótese de algum familiar vir a procurar aquelas 1.500 pessoas.

Esse descaso oficial com a memória e com a hipótese de reclamação futura daqueles restos mortais pelas famílias, por mais remota que pudesse parecer para as autoridades, ficou ainda mais evidente para os vereadores quando a CPI passou a investigar o tema do crematório.

Uma planta baixa da incorporação do Cemitério Dom Bosco, elaborada em 1969 – um ano antes do início das obras – previa a construção de um “crematório eventual”, conforme a expressão gravada no papel. No final dos anos 1960, dotar a cidade de um crematório público tornou-se uma das obsessões do Cemit, o Departamento de Cemitérios da Prefeitura.

Fábio Pereira Bueno contou à CPI que participou do processo de licitação e aquisição dos fornos entre 1967 e 1968. Ficara entre duas propostas, um sistema elétrico e outro a gás, e acabara optando pela proposta apresentada pela empresa inglesa Downson & Mason. Seriam adquiridos quatro fornos a gás, aptos a cremar um corpo no intervalo médio de uma hora. Em 24 horas, os quatro fornos dariam conta de incinerar 96 cadáveres, mais que o dobro da demanda nos anos 1960, o que também demonstrava capacidade de planejamento: a cidade estava crescendo, a população aumentaria.

Fábio afirmou ainda que Paulo Maluf, prefeito de São Paulo entre 1970 e 1971, quando da construção do cemitério em Perus, autorizou a construção do crematório. E que a medida se fazia necessária em razão do volume crescente de corpos de indigentes, desconhecidos e não reclamados enterrados em São Paulo. Alegou que se enterravam quase 50 por dia. Os membros da CPI questionaram o número apresentado por ele, uma vez que, entre 1989 e 1990, quando a população do município era maior do que em 1970, a média de sepultamentos naquelas categorias foi de oito por dia.

No início da década de 1970, o mesmo plano de construir um crematório motivou uma viagem de Fábio Pereira Bueno para a Argentina, a fim de pesquisar os fornos utilizados naqueles países e principalmente sua legislação. Outro funcionário do Cemit esteve na Inglaterra para pesquisar a legislação, uma vez que a lei paulistana não autorizava a cremação de indigentes. Se fosse para levar a cabo o projeto de cremar desconhecidos, seria preciso propor um projeto de lei para a Câmara e trabalhar pela sua aprovação.

Por fim, os vereadores localizaram nos arquivos da Prefeitura uma carta da empresa inglesa Downson & Mason, fornecedora dos fornos, declinando da execução daquele serviço. Segundo a empresa, causava estranhamento o projeto de um crematório sem sala de cerimônia, ou seja, sem um local adequado para a realização de velório. Também estranhava o uso de portas basculantes, tipo vai-vem, no acesso aos fornos. A sala de cremação, segundo os ingleses, deveria ficar sempre em local discreto e longe da vista das pessoas, uma vez que os mais sensíveis ou incautos poderiam se chocar. Havia algo de muito errado e suspeito no projeto apresentado pela Prefeitura de São Paulo.

Antes mesmo de propor alterações no projeto ou procurar outra empresa para solicitar outro orçamento, houve a confirmação pelo departamento jurídico de que a prática da cremação não poderia ser aplicada sem o consentimento ou solicitação da família. Havia tratados internacionais nesse sentido. Caía por terra, portanto, o plano de cremar indigentes, desconhecidos e não reclamados. Inaugurado na Vila Alpina em 1975, o crematório municipal não poderia ser o destino das 1.500 ossadas já exumadas em Perus. Era preciso encontrar outra forma de desaparecer com aqueles ossos.

A vala clandestina foi o plano B.

***

Ao longo de seis meses, a CPI Perus/Desaparecidos ouviu 82 pessoas em 43 sessões. Entre os depoentes, os médicos legistas Harry Shibata e Isaac Abramovich entre outros funcionários do IML, o ex-governador Abreu Sodré, policiais de diferentes corporações e patentes, como os delegados Maurício Henrique Guimarães Pereira, Álvaro Luiz Franco Pinto, Renato D’Andréa e Armando Panichi Filho, agentes ligados ao Dops, como Samuel Pereira Borba e Gilberto Alves da Cunha, e ao DOI-Codi, como Dulcílio Wanderley Bochila e o agente Davi dos Santos Araújo, acusado de praticar torturas, inclusive contra Ivan Seixas e Amelinha Teles, ambos na plateia. De tanto ouvir o tal agente do DOI-Codi negar as acusações que lhe foram feitas, o vereador Ítalo Cardoso perguntou se Amelinha e Ivan topariam um acareamento com ele. Foi o início de uma das cenas mais exaltadas da CPI.

— Senhora Maria Amélia Teles, a senhora conhece este homem?

— Claro que conheço. Este é o Davi dos Santos Araújo, que usava o codinome de Capitão Lisboa quando me torturou.

— Mentira! — o delegado respondeu, exaltando-se. — Nunca torturei mulher feia.

— Então o senhor admite que torturava mulher bonita?

— Não vou responder isso. Não vou responder isso.

Minutos depois, Ivan Seixas repetiu a mesma apresentação de Amelinha.

— Conheço, sim. Este é o Capitão Lisboa do DOI-Codi.

— Ele está mentindo. Eu nunca vi essa pessoa.

— Claro que me conhece, David. Quando a gente chegou à Oban, vocês fizeram uma sessão de espancamento em mim e no meu pai. Mas eu dei um soco na tua cara que lançou você longe, a dois metros de distância, você não se lembra disso?

Exposto e atingido em seus brios, o Capitão Lisboa ficou nervoso.

— É mentira! Eu não participei desse espancamento — como acabara de acontecer com Amelinha, a frase do policial permitia a leitura de que ele havia participado de outros espancamentos. — O pai dele eu conheci. Era um sujeito forte, nortista, que andava com o Lamarca. Mas ele eu nunca vi.

— Conversa, Davi — Ivan insistia. — Se você conheceu meu pai, você me conheceu também. Nós chegamos juntos à Rua Tutóia. Você não está querendo admitir por ter levado um soco na cara de um rapaz de 16 anos.

A esta altura, o depoente já havia perdido as estribeiras e, inquirido pelos vereadores, perdera a capacidade de argumentar.

— Não vou responder. Não vou responder.

Até Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo no momento da construção da vala clandestina e responsável por comandar a controversa invasão da PUC-SP de 1977, quando centenas de estudantes foram expulsos de uma assembleia sob golpes de cassetetes e bombas de gás lacrimogênio, e presos em seguida, compareceu à Câmara para a oitiva.

Quem mais resistiu a depor foi o ex-prefeito Paulo Maluf, que governara a cidade pela primeira vez no período de construção e inauguração do cemitério, entre 1970 e 1971. Quando a vala foi aberta, em 4 de setembro, Maluf estava imerso na campanha eleitoral daquele ano, percorrendo meia dúzia de cidades por dia. Uma pesquisa feita pelo Datafolha entre os dias 17 e 19 de setembro colocou Maluf em primeiro lugar na disputa pelo governo do Estado, com 41% dos votos, o dobro do percentual atribuído a Luiz Antônio Fleury, o candidato da situação, com 20%. Às intimações enviadas a seu endereço, Maluf respondia sempre que não se opunha a depor, mas que só o faria após a eleição. Derrotado no segundo turno, Maluf finalmente concordou em marcar a oitiva para o dia 4 de fevereiro. Com uma condição: ele aceitaria falar em sua própria casa, e não na Câmara.

Os membros se dividiram. Um deles, o vereador Oswaldo Gianotti, filiado ao partido de Maluf, o PDS, insistia para que a condição colocada pelo ex-prefeito fosse acatada. O local não muda nada, ele dizia. Tereza e Ítalo, por sua vez, consideravam aquilo inaceitável. Maluf não exercia nenhum cargo público na ocasião, não tinha fórum privilegiado, por que essa regalia? Sugeriram apelar para a condução coercitiva. No fim, Júlio concordou em ouvi-lo em casa, na Rua Costa Rica, 146. E foi. Os dois vereadores do PT membros da comissão acharam um desaforo e não compareceram. Ivan Seixas, Amelinha Teles e Crimeia Schmidt, irmã de Amelinha, foram à casa de Maluf representando os familiares. Os três se recusaram a dar a mão ao ex-prefeito, o que rendeu outro momento fora da curva na história da CPI.

— Não vou dar a mão para o senhor. O senhor foi parte da ditadura.

— Lamentável, lamentável — reagiu o político, com o sotaque que lhe é característico. — Eu fiz até oposição à ditadura. Vocês são radicais.

Por fim, ainda no curso da CPI, os vereadores da Comissão lograram descobrir e visitar, sempre na companhia de familiares de mortos e desaparecidos, o Sítio 31 de Março de 1964, uma chácara no distrito de Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, dedicado à tortura e à execução de opositores políticos nos anos de chumbo. A revelação do local, frequentado por membros da repressão como os coronéis Erasmo Dias e Carlos Alberto Brilhante Ustra, ganhou destaque na imprensa e ajudou a aumentar o clima de indignação. Ali foram executados, entre outros, os militantes da ALN Antônio Benetazzo, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Moraes Angel Jones, todos eles enterrados sem conhecimento das famílias no cemitério de Perus.

Em 15 de maio de 1991, uma quarta-feira, foi feita a apresentação pública dos resultados da CPI. O relatório final foi encaminhado para a Prefeitura e para o governo do Estado. O processo, na íntegra, somava 6.142 páginas, entre transcrições dos depoimentos, cartas, intimações, cópias de reportagens, exames necroscópicos e outros documentos. Foi tudo arquivado na Câmara em 19 volumes. Em 4 de setembro de 1992, aniversário de dois anos da revelação da vala, o relatório final foi finalmente publicado: um caderno de 64 páginas com o título Onde estão?.

Integram o relatório final da CPI uma lista com quinze recomendações. À prefeita Luiza Erundina foi solicitada a apuração das responsabilidades pelos atos administrativos irregulares de funcionários municipais e a consolidação das leis que se referem aos sepultamentos no município, sobretudo de indigentes. Ao governador Luiz Antônio Fleury Filho, que se reorganizasse o IML, retirando-o da esfera policial, e que seja dada continuidade às investigações iniciadas no Sítio 31 de Março, entre outras. Ao presidente da República, Fernando Collor de Mello, a Comissão solicitou a abertura dos arquivos do Dops, do SNI e do DOI-Codi. Ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo foi pedida a instauração de sindicância para apurar a responsabilidade dos legistas pelas irregularidades ocorridas no IML. Outros ofícios foram enviados à Procuradoria Geral da República, ao Ministério Público Federal de São Paulo, ao Ministério da Justiça e ao presidente da Assembleia Legislativa, sempre com solicitações para que fossem tomadas as providências cabíveis ou para que fossem aprofundadas as investigações.

Duas décadas mais tarde, a CPI de Perus foi frequentemente lembrada como precursora das Comissões da Verdade instaladas no Brasil ao longo da década de 2010. Em apenas seis meses, reuniu provas, testemunhos e encaminhamentos importantes, não apenas para desvendar as origens e os envolvidos na construção da vala clandestina, mas também para propor medidas mitigadoras e formas de dar seguimento às investigações, responsabilizações e identificações necessárias.

***

Na última semana de 1992, o Cemitério Dom Bosco ganhou um marco de memória em homenagem aos desaparecidos políticos ali ocultados. No exato local onde a vala clandestina fora construída, surgiu uma nova vala, feita com alvenaria. Sobreposto a ela, um muro vermelho, como uma tarja de “proibido”, “nunca mais”.

O memorial foi desenhado pelo arquiteto e artista gráfico Ricardo Ohtake. Filho da pintora e gravurista Tomie Ohtake, Ricardo tinha ligações afetivas com o tema da memória. Antonio Benetazzo, um dos desaparecidos políticos enterrados como indigente no cemitério de Perus, tinha sido seu melhor amigo nos tempos de estudante universitário, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Ricardo também foi membro da Associação Cultural José Marti, organizando atividades culturais com artistas cubanos no Brasil. Teve ano em que ele chegou a ir cinco vezes para Havana.

Mas foi quase por acaso que Ricardo Ohtake assumiu a autoria do monumento. Ainda em 1991, no segundo semestre, a Prefeitura havia aberto um edital e selecionado um projeto para ser executado no local. Quando estava quase tudo pronto para a construção, em meados de 1992, os organizadores perceberam que havia um monumento idêntico àquele em outro país. O concurso teve de ser cancelado.

Agora, faltando três meses para o fim do mandato da prefeita, já não havia tempo para um novo concurso.

— Só se a gente pedir pro Ricardo — alguém lembrou.

Um ano antes, a militante e ex-presa política Dulce Maia havia sugerido o nome de Ricardo Ohtake para a elaboração de um cartaz de divulgação de uma missa que o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, faria na Sé em homenagem aos desaparecidos da vala e às primeiras identificações. Foi formada uma comitiva de familiares até o estúdio do designer. Suzana, Ivan, Amelinha, Crimeia e Dulce o convenceram a fazer o cartaz. Agora, voltariam a ele com um novo pedido.

— Dá pra fazer — Ricardo topou. — Vou pensar em algo na mesma linha do cartaz.

Os familiares explicaram que faltava dinheiro, de modo que seria preciso fazer algo muito simples e que usasse materiais acessíveis. Cimento e tinta, Ricardo pensou. Dois meses depois, os pedreiros da própria Prefeitura erguerem o marco sob a orientação do arquiteto. Ivan Seixas aprovou o texto com a prefeita e ditou para Ricardo pelo telefone:

“Aqui, os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.”

A inscrição, em letras brancas sobre o muro vermelho, foi assinada por Luiza Erundina de Sousa e Comissão de Familiares de Presos Políticos Desaparecidos.

O monumento ficou pronto entre o Natal e o Ano Novo.

 

Leia no próximo capítulo: As ossadas começam a ser analisadas em Campinas. Dois militantes desaparecidos são identificados. Falta dinheiro e elementos comprobatórios para as novas identificações. O médico legista Badan Palhares é acusado de negligência e falsidade. Os ossos correm risco de submergir ou se desmanchar.

Foto: Marcelo Vigneron

 

Você me prende vivo, eu escapo morto.
De repente, olha eu de novo.
Perturbando a paz, exigindo troco.

Paulo César Pinheiro, em “Pesadelo”

 

— Você tem certeza que quer entrar aí?

Caco notou algum sarcasmo na pergunta feita pelo diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Rubens Brasil Maluf, no final de 1987.

— É importante — disse o repórter. — Os dados que eu procuro estão aí dentro.

— Você é quem sabe, mas antes vou te mostrar o lugar — assentiu o diretor. — Algo me diz que você vai se arrepender.

Quase três anos após aquela conversa, Caco Barcellos ainda frequentava aquela sala, no segundo andar do IML, no número 151 da Rua Teodoro Sampaio, colado à Faculdade de Medicina da USP, em Pinheiros. Ia normalmente à noite, após o expediente na televisão, e passava algumas horas debruçado sobre laudos periciais.

Era um muquifo, embora a placa fixada sobre a porta de entrada indicasse dissesse “museu”. A sujeira, a sensação de clausura e a permanente desorganização o faziam sentir saudade não apenas das reportagens na rua, seu habitat natural, mas também da redação.

A sede da TV Globo em São Paulo não era nenhum exemplo de conforto ou modernidade em 1990. Ocupava um predinho de três andares na Praça Marechal Deodoro, bem em frente à recém-inaugurada estação de metrô. Era um imóvel antigo, geminado, estreito e comprido, com elementos neoclássicos na fachada e vista para os pilares do Minhocão. Uma escada conduzia à redação, no primeiro andar. Caco costumava saltar os degraus de dois em dois, atrasado para entregar a fita com a matéria a tempo de ser exibida no telejornal da noite. Tudo muito rústico, apertado, com mesas de madeira vincadas pelo tempo, estantes abarrotadas e caixas de filme empilhadas atrás da porta.

Quem assistia ao Jornal Nacional ou ao Globo Repórter não desconfiaria que as instalações da emissora eram tão precárias. Ainda assim, comparada ao “museu” do IML, o predinho da Marechal parecia um palácio.

A sala era uma combinação de arquivo com espaço museológico, carente de limpeza e ventilação, onde estavam guardados todos os registros do IML desde os anos 1920. Nos cálculos do diretor, 60 mil documentos eram arquivados ali a cada ano.

Arquivados não é exatamente a palavra. Deveria haver dois milhões de fichas, algumas em estantes, outras sobre as mesas e mais um bocado espalhado pelo chão.

Quando começou a frequentar o muquifo, no comecinho de 1988, uma das primeiras providências tomadas pelo jornalista, com a ajuda de um estagiário, foi colocar em ordem cronológica aquela montanha de pastas e papéis. O resultado: duas paredes de 7 metros de comprimento por 3 metros de altura tomadas de alto a baixo pela papelada.

Para além do cheiro de mofo e da espessa camada de poeira que cobria aquele material, o que tornava especialmente insalubre o dia-a-dia naquela sala era uma horripilante coleção de pedaços humanos armazenados em grandes potes de vidro num armário sem portas. Mãos, pés, olhos, fetos e outros fragmentos imersos em formol eram expostos numa espécie de cristaleira macabra.

Tudo era macabro naquele pardieiro. Álbuns imensos com fotografias de cadáveres, ampliações feitas para evidenciar os detalhes mais fúnebres, instrumentos usados em exames de necropsia no início do século XX, máquinas de escrever emperradas, pedaços de macas e cadeiras quebradas completavam o cenário, uma espécie de sótão abandonado de filme de terror.

Caco Barcellos tinha 40 anos de idade e frequentava aquele lugar desde o final de 1987. Gaúcho radicado em São Paulo em 1975, quando ingressou no Jornal da Tarde, Caco passara pelas redações das revistas IstoÉ e Veja e também atuara na imprensa alternativa antes de pendurar no pescoço um crachá da Globo, em 1985. Especializado em jornalismo policial, Caco tinha uma razão muito particular para fazer hora extra naquele lugar sinistro: nos intervalos entre as reportagens para a TV, investigava os homicídios praticados por policiais militares, atividade que ocupava quase todo seu tempo livre havia mais de cinco anos.

Seu objetivo era identificar todos os desconhecidos mortos pela Polícia Militar de São Paulo desde sua fundação, em 1970. Numa etapa seguinte, pretendia listar os campeões da pena de morte, ou seja, os oficiais com mais execuções nas costas. Caco partilhava da tese de que esses policiais agiam de forma deliberada quando executavam delinquentes. Ou seja: atiravam para matar. O que ele não sabia quando começou sua investigação, mas descobriria ao longo da pesquisa, é que, em mais da metade das vezes, a vítima não tinha passagem pela polícia nem era suspeita de nenhum roubo ou furto. Os matadores de bandidos, tratados como heróis por certos radialistas e políticos, não passavam de matadores de inocentes. Sete anos dedicados ao tema resultariam no livro Rota 66: a história da polícia que mata, lançado por Caco Barcellos em 1992.

Naquela sala pestilenta, Caco encontrou alguns dos principais insumos para sua pesquisa. Sobretudo, ali estavam os primeiros registros da chegada dos corpos, trazidos normalmente num rabecão do IML após requisição feita por algum delegado de polícia, e também os exames datiloscópicos, realizados pelos médicos do instituto. Por meio deles, Caco conseguia aferir o local de origem dos cadáveres, a cor da pele e a circunstância da morte, pelo menos segundo a versão oficial. Quando havia indicação de tiroteio ou resistência à prisão, por exemplo, ou quando os laudos descreviam dois ou mais ferimentos a bala, deflagrados à queima-roupa (com indícios de pólvora ao redor da perfuração) ou contra a cabeça ou as costas da vítima (sinal de que ela já estava rendida), então o caso era selecionado para ser melhor investigado.

Em mais da metade das vezes, as vítimas da PM de São Paulo eram pretas ou pardas e seus corpos tinham sido resgatados em hospitais da periferia. O esquema envolvia a colaboração de diretores de hospitais, que aceitavam receber as vítimas já mortas e confirmavam a versão divulgada pela corporação: “o bandido não resistiu aos ferimentos e veio a falecer ao dar entrada no pronto-socorro”. Essa tática era conhecida como “esquentar” o corpo. O policial responsável por aquela morte assumia a posição de alguém munido de boas intenções, disposto ao gesto humanitário de levar imediatamente o suspeito para o hospital a fim de socorrê-lo. No boletim de ocorrência, o policial era sempre apresentado como vítima do suposto delinquente, que resistira à voz de prisão e atirara contra o agente. O morto era o culpado da própria morte.

Outro padrão percebido por Caco dizia respeito ao destino do cadáver. Os corpos das vítimas da PM eram quase sempre enterrados às pressas, como indigentes, mesmo que portassem documento na ocasião de sua morte. Quanto mais rapidamente o corpo sumisse, e sem o conhecimento da respectiva família, menores as chances de revolta ou de algum jornalista incauto resolver denunciar a brutalidade da ação. Para isso, era preciso lançar mão de expedientes pouco ortodoxos. Um deles era sumir com os documentos da vítima. Outra era alterar a identidade ao fazer o registro do sepultamento para dificultar a localização. Aparentemente, o esquema de morte e ocultação de cadáveres das vítimas da PM contava também com a conivência do serviço funerário. Ninguém em sã consciência ousaria negar um pedido da Rota.

Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar era o nome completo da Rota, a tropa de elite da PM de São Paulo nos anos 1970 e 1980. Exercia uma espécie de monopólio da pena de morte no Estado. Em dez anos, entre 1981 e 1991, o número de homicídios com envolvimento da PM no Estado saltaria de 300 por ano para mais de mil. Conhecer os nomes dessas vítimas, saber as circunstâncias dessas mortes e ouvir as histórias dessas famílias virou uma espécie de obsessão de Caco na década de 1980. E o museu do IML poderia dar as respostas que ele buscava.

Em meados de 1990, pesquisando aquela papelada, Caco encontrou um detalhe intrigante. Em alguns dos laudos amontoados na salinha do segundo andar, em particular nos processos datados de 1971 a 1973 e referentes a encaminhamentos feitos ao IML pelo Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, havia uma letra rabiscada a mão com lápis vermelho. Uma letra T.

Após dois anos fazendo plantão no muquifo, Caco gozava da confiança de alguns funcionários do IML. Levou aqueles papéis para um deles.

— O que significa essa marca? — perguntou. — A mesma marca aparece em diversos laudos do início dos anos 1970. De 1971 a 1974, para ser exato. Depois para.

— É T de terrorista — o informante revelou.

Terrorista era a forma com que a repressão se referia aos integrantes de organizações armadas de oposição à ditadura militar. Caco não ficou exatamente surpreso com aquela descoberta. Calejado após tantos anos analisando laudos e reportagens sobre letalidade policial e formas de repressão, o jornalista sabia que os militantes executados nos anos 1970 também teriam de passar pelo IML. Mas por que assinalar nos laudos sua condição de terroristas? Para quem seria aquele recado?

Os laudos marcados com a letra T tinham outras peculiaridades. Uma delas era o fato de que as vítimas assinaladas, embora jovens, eram quase todas brancas, enquanto as vítimas habituais da Rota eram quase todas pretas ou pardas. Outra peculiaridade era o destino dos corpos: a maioria, senão todos, tinha sido levada para o mesmo cemitério de Perus aonde eram conduzidos os mortos da polícia. E, segundo os laudos, teriam sido enterrados como indigentes, embora a maioria das fichas indicasse nome e filiação.

Caco percebeu que estava diante de documentos que poderiam indicar o paradeiro de alguns dos militantes políticos desaparecidos nos anos de chumbo, um tema ao qual ele ainda não havia se dedicado. O livro Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, trazia uma lista de 125 opositores do regime militar que tinham simplesmente sumido, apesar de testemunhas afirmarem que tinham sido vistos em algum órgão da repressão ou centro de tortura, como o DOI-Codi ou a Casa da Morte de Petrópolis. O número estimado de desaparecidos políticos, àquela altura, devia ser ainda maior.

Caco levou o caso para a Globo. Ele dificilmente conseguiria aproveitar aquele material no livro que estava escrevendo sobre as mortes cometidas pela Polícia Militar, uma vez que os “terroristas” não tinham sido vítimas da Rota nem da PM, mas poderia tratar daquela descoberta numa boa matéria para a TV. Seria um furo de reportagem, uma revelação inédita.

Sozinhos, aqueles laudos já justificariam uma boa matéria. Mas Caco queria mais. Aplicou sobre aqueles documentos a mesma lógica que adotara ao pesquisar os laudos das vítimas da PM: Como identificar essas pessoas? Como foram mortas? Quais as circunstâncias dessas mortes? Em poucos dias, separou as fichas de 158 cadáveres encaminhados ao IML por policiais do Dops entre 1970 e 1974. Em todas elas, a mesma explicação: mortos em tiroteio com órgãos de segurança. Caco anotou o que havia de identificação naquelas guias, a data de entrada no IML e a data e o local de destino.

Maurício Maia, produtor de jornalismo do Fantástico, na TV Globo, assumiu a tarefa de cruzar aqueles dados com as diferentes listas de desaparecidos políticos elaboradas até então, tanto em publicações como o Brasil: Nunca Mais quanto por grupos como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Embora os nomes constantes nas fichas fossem quase todos falsos, havia uma enorme coincidência de informações em parte significativa da lista. Vinte e oito corpos levados para Perus tinham dado entrada no IML exatamente nas datas prováveis de seu desaparecimento conforme as listas de mortos e desaparecidos. Desses, treze haviam sido localizados e trasladados pelas famílias para outros cemitérios ao longo das décadas de 1970 e 1980. Faltavam quinze.

Caco e Maurício pegaram o carro e foram até o cemitério. Como o rosto de Caco aparecia toda hora na TV, decidiram que Maurício iria sozinho até a administração e, sem se apresentar como funcionário da TV, pediria para consultar os livros dos primeiros anos da década de 1970. Abriu a lista de datas e nomes que havia preparado e pôs-se a pesquisar. Dali a uma hora, voltou ao carro.

— Os livros estão todos aí — Maurício contou. — Catorze desses corpos não têm destino certo. As ossadas foram exumadas e não se sabe para onde foram. Só se diz, laconicamente, “exumado na data tal”.

Para Caco, cada nova informação funcionava como um estímulo. Tinha o efeito de uma xícara de café, capaz de afastar o sono por um par de horas, ou de uma barra de chocolate: doce recompensa pelo esforço empenhado. Mais do que isso, era como se cada nova fase da investigação injetasse uma dose extra de adrenalina no jornalista. Quem é repórter investigativo por certo já sentiu essa pulsão. A descoberta de uma pista, o encontro com um novo informante, uma denúncia anônima, cada novidade fazia Caco mergulhar ainda mais fundo no trabalho, doze, treze, quinze horas por dia. Inclusive nos fins de semana.

Era um domingo quando o jornalista entrou pela primeira vez no Cemitério Dom Bosco, no distrito de Perus. Os fins de semana são sempre movimentados nos cemitérios. Mesmo nas tardes de julho, quando um vento frio costumava varrer o aclive suave da área destinada às sepulturas de Perus, familiares levavam flores, limpavam as placas de homenagem, arrancavam ervas daninhas. Em razão da pesquisa sobre as mortes da PM, Caco gostava de ir aos cemitérios aos domingos, justamente cogitando encontrar algum parente enlutado disposto a contar detalhes sobre a morte do filho, do neto ou do irmão. Desta vez, seu propósito era investigar as incongruências no caso dos “terroristas”. Levou ao cemitério os primeiros locais de sepultamento daqueles corpos, antes da exumação, e foi conferir o que existia em cada cova.

Como Caco previra, nenhuma sepultura coincidia. Nas covas onde teriam sido enterrados os cadáveres cujos laudos tinham sido assinalados com a letra T, havia outros corpos, de outras pessoas, sepultadas anos depois, conforme se podia ler nas placas de homenagem. Um sepultador explicou a ele que era assim mesmo, que os restos mortais eram exumados após três anos e reinumados no mesmo local, ou seja, enterrados novamente, num saco menor e num patamar um pouco mais fundo, de modo a abrir espaço para a chegada de outro caixão. E assim sucessivamente.

— Que ano foi enterrada a pessoa que o senhor procura? — ele quis saber.

— 1972.

— Xi, setenta e dois? É muito tempo. Já deve ter uns cinco ou seis cadáveres que chegaram depois dela na mesma cova.

— Mas e a placa com o nome?

— Quem chega para ser enterrado traz uma placa nova e a que tinha antes é descartada.

O que Caco não conseguia entender era a ausência absoluta de informações sobre o local de reinumação das ossadas mais antigas. Nos livros dos cemitérios, o caminho percorrido pelo cadáver é sempre registrado. Trata-se de um protocolo, uma exigência administrativa: “no dia tal, os restos mortais de fulano de tal foram exumados da cova x e reinumados na cova y”. Em Perus, essa norma não tinha sido observada. Pelo menos não nos anos 1970. Faltavam as datas e os locais de reinumação.

— E por que não há referência ao local de destino dessas ossadas? — o jornalista perguntou ao funcionário.

— Isso eu não sei dizer, não, senhor.

***

“Puta merda, o que esse jornalista tá fazendo aqui?”

Da janela da administração, Toninho viu o repórter da Globo conversando com os sepultadores bem ali, na entrada da quadra 2, e logo o reconheceu. Arrumou os fios do bigode com as pontas dos dedos e foi em direção a ele.

Antônio Pires Eustáquio tinha 43 anos, três a mais que o repórter, e era o chefe do Cemitério Dom Bosco desde 1978. Cuidava do lugar como se fosse um caseiro. Naquele momento, em julho de 1990, estava empenhado na construção de um ossário geral, uma grande galeria feita de alvenaria para a qual, vencido o prazo legal de três anos e um mês para a exumação dos corpos, seriam transferidas as ossadas dos indigentes e aquelas que não fossem retiradas pelas famílias.

Assim que o administrador se aproximou, os sepultadores se afastaram, intuindo que poderia sobrar para eles. Vai que escapa alguma coisa que não deveria ser dita. Toninho se apresentou e perguntou se Caco havia farejado algo ali para o noticiário.

Caco contou um pouco da pesquisa que estava fazendo sobre morte violenta em São Paulo e que havia se deparado com muitos personagens que tinham sido enterrados em Perus. Comentou que alguns dos mortos não estavam mais nas valas em que tinham sido enterrados, o que trazia alguma dificuldade para conferir informações.

Toninho foi enfático:

— Isso não é nada perto do que eu tenho pra te falar. Eu tenho a matéria que vai te consagrar.

Caco Barcellos desconfiou.

— E o que é?

— Vem comigo.

O administrador queria falar com o jornalista num lugar mais reservado, longe da vista dos funcionários e do corre-corre das crianças, uma tradição naquele cemitério, encravado num bairro periférico carente de áreas de lazer.

— Olha, você não vai conseguir encontrar as ossadas que você está procurando — Toninho afirmou. — Essas ossadas não estão mais nas covas originais.

Caco ouviu atento o relato do administrador.

— Existe um buraco aqui no cemitério, um ossário clandestino onde foram jogados os restos mortais de umas 1.500 pessoas, enterradas como indigentes, em 1976. Garanto pra você que esses corpos que você procura estão escondidos nesse buraco. São as pessoas que sumiram dos livros de registros.

O jornalista saiu do cemitério impressionado. Aquilo era grave. Muito grave. Prometeu voltar outro dia.

Naquela mesma noite, Caco telefonou para o editor do Globo Repórter, Narciso Kalili. Resumidamente, contou que as pesquisas no IML o haviam conduzido à descoberta dos laudos com a letra T de “terrorista” e que essas mesmas pessoas haviam desaparecido dentro do cemitério de Perus, na periferia de São Paulo. Contou a revelação feita pelo administrador e compartilhou com o editor a desconfiança de que aquele caso poderia jogar alguma luz sobre a busca pelos desaparecidos da ditadura.

— Vai atrás — Kalili respondeu. — Do que você precisa?

— Só preciso ficar mais uns dias nessa matéria, conversar melhor com esse Toninho e checar as informações que ele me passar.

Toninho, por sua vez, voltou para casa preocupado aquela noite. Ele não queria mais guardar aquele segredo. Sabia que aquelas ossadas precisavam ser reveladas e identificadas. Sentia um dever cívico, um clamor pela verdade, um impulso que o impelia a contar o que sabia e acabar com essa história de uma vez por todas. Era preciso agir, e um repórter conhecido como Caco Barcellos poderia ajudar. Ao mesmo tempo, Toninho temia a repercussão que aquela denúncia poderia suscitar. E se algum desafeto espalhasse que tinha sido ele o delator? E se houvesse alguma represália?

Por um momento, o administrador se arrependeu de ter contado. A ditadura havia acabado, mas ainda não tinha esfriado.

Quando Caco retornou ao cemitério, na terça-feira, Toninho não quis recebê-lo. Após alguma insistência do repórter, o atendeu e negou tudo. Dizia que não tinha falado nada daquilo no domingo anterior. Pronto: Toninho estava sendo ameaçado ou tinha se arrependido de dar com a língua nos dentes, o jornalista concluiu. E agora?

Constrangido, Caco avisou ao editor que a pauta havia caído, que o informante não tinha sustentado a história. Voltou no domingo seguinte, disposto a retomar os crimes da Rota e a tentar identificar alguma vítima ali.

— Preciso falar com você — Toninho o abordou. — Tenho informações sigilosas para lhe passar.

“Que cara maluco”, Caco pensou. “Acho que aos domingos ele bebe, fica meio alto e se enche de coragem. Ou então inventa essas histórias”.

Toninho repetiu com ele exatamente a mesma sequência da semana anterior. Os dois se afastaram das quadras para conversar, caminharam até próximo ao muro do cemitério, e Toninho contou sobre o ossário escondido, exatamente como fizera da outra vez.

— Toninho, você já mostrou esse lugar para mais alguém?

— Só pro Molina, um engenheiro do Rio que veio até aqui procurar o irmão.

— E quando foi isso?

— Faz muito tempo. Acho que em 1980 ou 1981. Foi logo depois da anistia.

— E o que você disse a ele?

— A mesma coisa que estou contando pra você. Só que ele foi mais curioso. Perguntou se eu poderia abrir um pedacinho da vala. Acho que ele é melhor repórter que você.

***

Naquela semana, Caco Barcellos começou a desenhar uma das muitas reportagens fascinantes e arriscadas que fizera ao longo da carreira. A disputa era acirrada. Em 1980, Caco fora feito refém na Nicarágua, confundido com um espião ao cobrir a guerra civil desencadeada pela revolução sandinista, que derrubara a ditadura da família Somoza no ano anterior. Em 1989, fora detido pelo Exército de Libertação Nacional da Colômbia enquanto investigava o sequestro de três engenheiros da Braspetro, mantidos em cativeiro no país vizinho para denunciar um governo que, segundo a organização guerrilheira, atentava contra a soberania nacional e permitia a exploração de suas riquezas a preço de banana por empresas estrangeiras, como a estatal subordinada à Petrobras.

Agora, o jornalista via-se diante dos escombros de uma outra guerra, apenas controlada com a volta dos civis ao poder em 1985 e a promulgação da Constituição Federal em 1988, mas que deixara pelo caminho um extenso repertório de mortes, muitas delas sob tortura, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres.

Caco sabia que aquela era uma oportunidade única de revelar informações preciosas que poderiam levar à localização de dezenas de desaparecidos. Impossível prever as reações que uma revelação como aquela poderia provocar nas Forças Armadas e em setores conservadores da política. Caco temia, sobretudo, pela carreira de Toninho. Quiçá pela vida do administrador.

Para dar seguimento à investigação, Caco precisaria entrevistar o tal Molina. Pegou uma lista telefônica do Rio de Janeiro e se preparou para ligar para todos os assinantes com aquele sobrenome. Logo na primeira tentativa, localizou quem ele buscava. Na mesma semana, foi até o Rio para encontrá-lo. O carro da reportagem buscou o engenheiro em Botafogo, no prédio da empresa em que ele trabalhava, e o levou até o Morro do Pasmado, onde foi feita a gravação. Gilberto Molina confirmou a história contada por Toninho. Ele não apenas tinha ido a Perus como havia visto as ossadas escondidas sob o gramado nos fundos do prédio da administração.

Ainda em 1979, Gilberto tivera acesso a documentos oficiais que confirmavam a morte de seu irmão mais novo, o militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) Flávio Carvalho Molina, aos 23 anos, em 1971. Um ofício assinado pelo então diretor do Dops, Romeu Tuma, revelava que Flávio havia falecido em 7 de novembro de 1971 e que seu corpo fora sepultado no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta, dois dias depois. Aquele papel comprovava a ocultação deliberada do cadáver, uma vez que a repressão conhecia não apenas seu codinome, mas também seu nome verdadeiro. Mesmo assim, Flávio fora enterrado como indigente, sem que nenhum familiar fosse comunicado.

Em 1981, Gilberto Molina aproveitou que estava em São Paulo por conta de um trabalho e tomou o trem rumo a Perus levando consigo o ofício assinado por Tuma. Se os restos mortais de seu irmão de fato estivessem naquele cemitério, conforme citado no documento do Dops, ele solicitaria imediatamente seu traslado para o jazigo da família, no Rio de Janeiro. Apresentou-se ao administrador e declinou os dois nomes de seu irmão, o verdadeiro e o falso. Uma anotação feita na página 33 do livro 3 do cemitério desfez qualquer dúvida: Álvaro Lopes Peralta tinha sido enterrado na cova número 14 da quadra 2 no dia 9 de novembro de 1971.

Emocionado, Gilberto perguntou ao administrador o procedimento para fazer o traslado dos restos mortais para o Rio.

— Senhor Gilberto — Toninho falava pausadamente, com a gravidade que o assunto exigia —, infelizmente não vai ser tão fácil fazer esse traslado.

O engenheiro quis saber a razão.

— O senhor está vendo aqui no livro que o corpo do seu irmão foi exumado no dia 11 de maio de 1976?

— Sim.

— Pois é. Isso significa que ele foi retirado da cova original nessa data. Esse é um procedimento regulamentar, que acontece com os corpos dos desconhecidos e não reclamados após três anos e 30 dias do sepultamento, sempre que o serviço funerário julga necessário abrir espaço nas quadras para novos enterros.

— Eu entendo. Mas o corpo foi recolocado em outro local, certo?

— Aí é que está. No livro só consta que os despojos do teu irmão foram exumados. Não há nenhuma informação sobre reinumação, o senhor percebe?

— Ele foi retirado da cova e não foi realocado em lugar nenhum, é isso?

— Vem comigo.

Toninho conduziu o engenheiro até a quadra 12 e mostrou a ele a cova 14, local da sepultura original. Em seguida, explicou que, normalmente, vencido o prazo regulamentar, os restos mortais são acondicionados num saco menor e enterrados no fundo da mesma sepultura para que outro caixão pudesse ocupar o espaço acima. Feito isso, acompanhou o engenheiro até uma área onde havia um grande cruzeiro branco, sobre um pedestal onde os fiéis acendiam velas, junto a um barranco atrás do prédio da administração, e contou a ele que, anos antes, entre 1975 e 1976, houvera uma exumação em massa nas quadras 1 e 2. Com uma característica peculiar: não havia registro do local de reinumação de nenhuma ossada.

Quando soube disso, Toninho, que ainda não era funcionário do cemitério na época da exumação em massa, contara um a um os nomes que tiveram seus despojos exumados entre 1975 e 1976 e sobre os quais não constava nenhuma informação referente a reinumação. Chegou ao número aproximado de 1.500 indigentes. Era como se todos eles tivessem sumido aos olhos do Estado. Eles estavam ali, mas não estavam. Haviam desaparecido pela segunda vez.

— Que absurdo — Molina não se conformava.

Em seguida, o administrador contou ao engenheiro que buscou saber a razão daqueles dados incompletos e que, por muito tempo, fora demovido da busca. “Não mexe com isso”, dizia um funcionário mais antigo. “Deixa pra lá”, dizia outro. Até que um deles, cansado da insistência de Toninho em fazer perguntas sobre aquele assunto, revelara o que sabia. “Essas ossadas que você procura estão lá na área do cruzeiro”, ouviu de um sepultador. “Fui eu que abri o buraco com a retroescavadeira, cumprindo ordens. Agora vê se não enche mais o saco. São indigentes, porra, quem se importa com eles?”

Gilberto Molina ouviu calado à exposição feita por Toninho. Pensava em seu pai e, sobretudo, em sua mãe, na esperança que eles tinham de enterrar o filho desaparecido. Desde meados dos anos 1970, ele havia procurado advogados, juntado documentos, cobrado autoridades, feito reuniões com familiares de desaparecidos. Agora estava ali, em São Paulo, tão perto do irmão. Dali a poucos meses, a morte de Flávio completaria dez anos. Não haveria ocasião melhor para fazer o traslado e organizar uma cerimônia de despedida no Cemitério São João Batista.

— Se eu requerer a exumação, vocês ainda assim não poderão abrir o buraco?

— Não é tão simples — Toninho lamentou. — Será necessária uma solicitação oficial, a abertura de um processo administrativo. Tecnicamente, esse buraco não existe. Seu pedido será negado porque o serviço funerário não tem como localizar o corpo.

— Como não tem, se o corpo está aqui, bem embaixo dos seus pés? — Molina parecia angustiado. — É preciso denunciar, abrir logo esse buraco. Deve haver outros desaparecidos aí.

— Durmo e acordo pensando nisso todos os dias, senhor Gilberto. Mas o momento não é favorável…

Em 1981, o Brasil ainda era presidido por um general. O Dops estava em plena atividade. A Lei de Segurança Nacional vigia. Havia prisões políticas, como as dos sindicalistas do ABC um ano antes, e práticas nebulosas norteavam os trabalhos na auditoria militar e no Supremo Tribunal Militar. Os julgamentos eram viciados e inevitavelmente terminavam na condenação do mais fraco. Sobretudo, o Estado de São Paulo era governado por Paulo Maluf, um político conservador, amigo da Rota e dos militares, que tinha sido prefeito exatamente nos anos em que aquele cemitério fora construído e inaugurado.

Gilberto Molina parecia exausto, resignado em voltar ao Rio de mãos vazias.

— Seu Antonio, me elucida mais uma dúvida, por gentileza. Se as ossadas estiverem mesmo aí embaixo e forem retiradas, elas estarão identificadas? — quis saber. — Ou seja: será possível encontrar um saco com o nome do meu irmão?

— Tudo indica que sim. Os sacos são etiquetados. Pelo menos é esse o procedimento padrão em todas as exumações.

— E você me permitiria ver? Seria muito importante poder confirmar a existência desse ossário e voltar para casa com algum sinal de esperança.

Toninho foi buscar uma retroescavadeira e pôs-se a escavar numa das pontas do local. Retirou uma camada de terra, algo como 50 centímetros de profundidade, e o primeiro saco de plástico azul apareceu. Desfez um laço e o primeiro punhado de ossos surgiu. Toninho agarrou um osso comprido, provavelmente um fêmur.

— Então, senhor Gilberto, seu irmão era grande?

O engenheiro sentiu as pernas bambas, a visão turva.

Toninho tirou outro saco do buraco e exibiu um crânio. Em nenhum dos sacos era possível encontrar etiquetas. Feitas de papel, por certo elas haviam se desintegrado no contato prolongado com a terra úmida.

O engenheiro veio às lágrimas. Afastou-se daquele lugar e fitou o horizonte, na esperança de se recuperar. O coração atropelado, a respiração arfante. Aquele calvário jamais teria fim? A mãe adoecida, envelhecendo… Gilberto Molina chegara ao cemitério otimista e encontrara ali um cenário de dor, mentira, descaso e injustiça.

Ele havia chegado tão perto e, mais uma vez, o direito de enterrar seu irmão lhe escapava pelas mãos.

***

De volta a São Paulo, Caco foi falar com o editor do Globo Repórter.

— A história é verdadeira, Narciso. Confirmei com o irmão de um desaparecido.

— Sensacional. E o que você sugere?

— Um programa. Vamos revelar o paradeiro desses desaparecidos no Globo Repórter. Preciso de duas semanas.

— Vai em frente.

O repórter gaúcho de corpo mirrado, radicado em São Paulo e morador da Rua Bento Freitas, no centro da cidade, se agigantou em seu 1,70 metro incompleto. A existência de um buraco repleto de ossos sem qualquer registro oficial já era, em si, conteúdo suficiente para uma grave denúncia. Aquela não era apenas uma vala comum, mas uma vala clandestina, na acepção exata da palavra. Uma vala extraoficial. Caco buscara se certificar disso. Sem levantar suspeitas, solicitara ao serviço funerário um mapa do cemitério e confirmou: não havia nada naquele espaço além do cruzeiro.

Bom, o que ele já tinha conseguido reunir? Os exames do IML com a letra T de “terrorista”, a certeza de que guerrilheiros tinham sido enterrados no Cemitério Dom Bosco com nome falso ou sem nome nenhum, a informação inédita – e exclusiva – de que uma vala clandestina construída nos anos 1970 ocultava parte desses desaparecidos. Tinha também o depoimento do Gilberto Molina, irmão do desaparecido Flávio Carvalho Molina. O que ele precisava, agora, era cruzar os documentos do IML com uma lista de mortos e desaparecidos e com os livros do cemitério. Por meio das datas prováveis das mortes e dos codinomes indicados nos laudos e nos livros, talvez fosse possível estabelecer uma relação entre aqueles indigentes marcados com o T de “terrorista” e as histórias por trás daquelas execuções.

Caco precisaria conversar com familiares de mortos e desaparecidos. Essas organizações, ele sabia, tinham desbravado muitos arquivos, inclusive nos cemitérios, e reuniam um acervo inesgotável de informações preciosas. Toninho sugeriu que ele procurasse uma moça de nome Suzana.

— Suzana?

— Ela e o marido foram guerrilheiros. Ele morreu em 1972. O corpo dele foi enterrado aqui, registrado com o nome de Nelson Bueno. Sempre a mesma história.

Toninho havia ajudado Suzana a localizar os restos mortais do marido no livro de registros e, por extensão, sua sepultura, em 1979. Em 1982, cuidara da exumação e do traslado para Porto Alegre.

— Suzana é corajosa — afirmou. — Vai ajudar no que você precisar.

Em 1990, Suzana Keniger Lisbôa militava na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, organização que havia surgido anos antes para reivindicar verdade e justiça. Luís Eurico Tejera Lisbôa, seu marido, morrera em 1972. A versão oficial dizia que ele tinha cometido suicídio numa pensão onde se hospedara no Bairro da Liberdade, em São Paulo. Ela nunca acreditou na versão oficial, sustentada inclusive pela dona da pensão, mas jamais conseguira obter informações que a confrontassem.

Semanas antes, Suzana tinha sido procurada pelo produtor Maurício Maia, que contara a ela sobre a descoberta dos laudos com a letra T e pedira sua ajuda para obter uma lista atualizada dos desaparecidos políticos com as datas prováveis de morte de cada um. Agora, Caco queria entrevistá-la para que ela comentasse a existência da vala clandestina e contasse a história da busca e da localização dos restos mortais de seu marido. Feita a entrevista, Caco perguntou se ela o acompanharia numa visita à pensão onde Luís Eurico teria se suicidado. Ele queria gravar um depoimento dela ali e fazer imagens do quarto onde acontecera o suposto suicídio.

Numa reviravolta surpreendente, um dos inquilinos da pensão afirmou diante das câmeras que a história que corria na pensão era outra.

— Entraram pela janela e atiraram nele — contou. — Ele era contrabandista.

Caco perguntou se ele sabia quantos eram os policiais.

— Parece que foram dois. Chamaram, ele não atendeu, aí foram e atiraram por ali. Aí puxaram ele e estava cheio de sangue. Depois que mataram ele, voltaram e falaram que era assaltante. Quem explicou pra mim foi uma senhora que morou aqui.

— A dona da pensão?

— A dona da pensão.

— Qual o nome dela?

— Marina.

Caco virou-se para Suzana e perguntou se ela já tinha ouvido aquela versão.

— É a primeira vez. Falei diversas vezes com a Dona Marina aqui, ela nunca foi chamada a depor, e pelo jeito é a única pessoa que conta a verdade sobre essa história.

Suzana desatou a chorar. Um choro sofrido, de revolta e dor, capturado pelas câmeras da reportagem após quase 20 anos de mentira.

Agosto ainda não tinha terminado quando Caco Barcellos deu o programa por encerrado. Além de Suzana e Gilberto Molina, irmão do Flávio, Caco havia entrevistado dona Iracema Rocha Merlino, mãe de Luiz Eduardo Merlino, Shuniti Torigoe, irmão de Hiroaki Torigoe, e o casal Berl e Bilma Reicher, pais de Gelson Reicher, entre outros familiares de mortos e desaparecidos. Agora, estava tudo pronto. Faltava apenas o mais importante: um desfecho para a denúncia sobre a vala. “Daqui a pouco o ossário geral fica pronto, os sepultadores transferem as ossadas da vala clandestina para lá e ninguém fica sabendo de nada disso”, Caco pensava. Pediu ajuda para Suzana.

— A matéria está pronta, Suzana. Só falta abrir a vala.

Servidora da Assembleia Legislativa de São Paulo cedida para a Prefeitura e lotada no Anhembi até o mês anterior, Suzana sugeriu levar o assunto a Lúcio Gregori, então Secretário Municipal de Serviços e Obras. No dia seguinte, ela voltou com o encaminhamento do secretário. Segundo Suzana, Gregori recomendou ao grupo agendar uma visitar ao cemitério junto com o diretor superintendente do serviço funerário, Rui Alencar. E garantiu a ela que autorizaria a abertura da vala.

Faltava pouco para Caco Barcellos concluir a última etapa naquela apuração e garantir as imagens de abertura para o Globo Repórter.

Rui Alencar havia sido empossado em 15 de janeiro daquele ano. Chegara para apagar incêndio numa das autarquias mais complicadas daquela administração. Seu antecessor, empossado um ano antes, no início do governo, fora indicado pelo PCB, um dos partidos políticos coligados, e acabou exonerado em poucos meses, sob a acusação de conivência com práticas pouco republicanas no trato com a coisa pública. Militante da Ação Popular em Goiás nos anos de chumbo e fundador do diretório zonal do PT de Pinheiros, em São Paulo, nos anos 1980, Rui ouviu pedidos tão insistentes para que assumisse o cargo, inclusive da prefeita, que acabou aceitando a nomeação. Em uma semana, estava arrependido.

Sob a supervisão de Rui Alencar, o serviço funerário era uma autarquia com 1.800 funcionários, 21 cemitérios, doze agências e uma fábrica de caixões. Havia de tudo naquele microcosmo ao qual ele jamais prestara atenção: um percentual altíssimo de alcoolismo, um movimento grevista prestes a eclodir na fábrica, diversos cemitérios carentes de ossário geral, denúncias envolvendo máfias de certidões e comércio ilegal de sepulturas.

Aos poucos, Rui foi agendando visitas aos cemitérios a fim de conhecer os administradores e conferir as instalações. Em agosto, ele ainda não havia visitado nenhuma vez o Cemitério Dom Bosco, um dos mais afastados do centro, mas também o mais novo, inaugurado a menos de 20 anos. Cedo ou tarde, ele precisaria mesmo dar um pulo lá.

Foi Suzana quem tomou a iniciativa de telefonar para ele. Os dois já se conheciam. Prudente, ela preferiu não se alongar por telefone. Combinou de visitá-lo na sexta-feira e levou Caco Barcellos. Receptivo, Rui ouviu um resumo da audaciosa investigação conduzida pelo repórter nos últimos meses e também o corajoso périplo dos familiares ao longo de mais de uma década de buscas. Caco explicou que estava com um Globo Repórter praticamente pronto para contar a história da procura pelos desaparecidos políticos, mas que seria fundamental gravar algumas imagens da abertura da vala. Ele sabia que um ossário geral estava sendo construído ao lado da vala e que seria natural remover as ossadas para lá. Faltava a autorização da Prefeitura para a exumação.

Rui se lembrou que, ainda em janeiro, o vereador Adriano Diogo, ex-preso político, o alertara de que havia um problema no cemitério de Perus que exigiria alguma atenção do diretor superintendente recém-empossado. Agora, as peças pareciam se encaixar. Propôs fazerem juntos uma visita ao cemitério na terça-feira seguinte, dia 4 de setembro, às 10 horas, e encerrou a reunião convencido de que a visita que acabara de agendar teria caráter técnico. Rui pediria ao administrador, Antonio Pires Eustáquio, para indicar a localização da vala, como fizera com Caco e Suzana. Talvez escavasse um pequeno trecho para confirmar. Então deliberariam sobre o que fazer.

No dia 4 de setembro, às 10 horas, Rui estacionou seu carro em frente ao prédio de administração do cemitério e deu de cara com o circo armado. Caco Barcellos, repórter notívago conhecido pelos colegas pela dificuldade em acordar cedo e ser pontual nas pautas, havia caído da cama. Chegara ao local por volta das 8 horas. Junto com ele estava o cinegrafista Hugo Sá Peixoto, que àquela altura já subia e descia o barranco, fazendo as primeiras tomadas em vídeo.

Fotógrafos e repórteres de texto de outros veículos começaram a chegar. Toda a imprensa tinha sido convidada. A pauta? A abertura de uma vala clandestina onde teriam sido ocultadas mais de mil ossadas na metade dos anos 1970.

***

O telefone tocou no gabinete da prefeita. Toque de telefone é sempre igual. Se não fosse, a telefonista seria capaz de jurar que, daquela vez, o aparelho soara mais alto e estridente do que de costume. O telefone tinha motivos de sobra para gritar.

Rui Alencar não quis adiantar o assunto com ninguém. Nem com Muna Zeyn, secretária particular da prefeita, nem com Alípio Casali, o chefe de gabinete.

— Preciso falar com a prefeita com urgência! — anunciou. — Estou no cemitério de Perus e tem um caso sério acontecendo aqui neste exato momento.

Luiza Erundina interrompeu a reunião para atender ao telefone.

— Prefeita, estou aqui no Cemitério Dom Bosco e acabam de descobrir uma vala clandestina. Cavaram um buraco e não para de sair saco aqui de dentro. Sacos com ossos. São dezenas. Talvez centenas.

Erundina nem esperou o superintendente concluir a explicação para se levantar e encerrar a reunião. Em dois minutos, embarcava no carro oficial a caminho do local. Na lembrança de Rui Alencar, a prefeita transpôs em tempo recorde os 35 quilômetros que separavam a sede da Prefeitura, no Parque do Ibirapuera, e a vala clandestina, em Perus. Em vinte minutos, Erundina estava à beira da vala, conferindo de perto o trabalho de remoção das ossadas e respondendo às perguntas dos jornalistas.

Dois anos antes, em setembro de 1988, Luiza Erundina estava em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo, atrás do ex-prefeito e ex-governador Paulo Maluf e do secretário estadual de Obras, João Leiva, apoiado pelo então governador Orestes Quércia. Paraibana de Uiraúna, na divisa com o Rio Grande do Norte e o Ceará, Erundina tinha sido secretária de Educação e Cultura de Campina Grande e militara nas Ligas Camponesas na Paraíba antes de migrar para São Paulo, no início dos anos 1970. Eleita vereadora em 1982 e deputada estadual em 1986, surpreendera o diretório nacional do PT ao vencer a eleição interna para a escolha do candidato a prefeito, num momento em que os principais dirigentes petistas, como Lula e José Dirceu, apoiavam o nome de Plínio de Arruda Sampaio. Após uma campanha popular, investindo essencialmente no diálogo com a periferia, Erundina vencera a eleição com 33% dos votos válidos, superando Maluf (24%) e Leiva (14%), numa época em que não existia segundo turno.

Primeira mulher a governar São Paulo, e primeira prefeita declaradamente de esquerda, Erundina cercara-se de lideranças populares e intelectuais renomados para montar um secretariado de peso. Paulo Freire, Marilena Chaui, Paul Singer, Dalmo Dallari e Ermínia Maricato assumiram pastas como Educação, Cultura, Planejamento, Negócios Jurídicos e Habitação. A oposição à ditadura militar e o compromisso com a reparação histórica vinha explicitada em nomeações como a de Paulo Freire, preso e exilado em 1964, e de Rosalina Santa Cruz, ex-guerrilheira e presa política, irmã do desaparecido Fernando Santa Cruz, para a Secretaria de Bem-Estar Social. Além, é claro, do então vice-prefeito Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado com destacada atuação na defesa de perseguidos políticos, presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e um dos responsáveis pela pesquisa que resultou no livro Brasil: Nunca Mais.

Aberta a vala, Erundina assumiu para si a responsabilidade pela preservação e pela investigação daquele material surpreendente. Peitou a Polícia Civil e o IML, que reivindicavam a tutela das ossadas, e determinou que caberia à Prefeitura conduzir esse processo, firmando os convênios necessários e estabelecendo diálogo com os familiares de desaparecidos. “O governo municipal não vai abrir mão desses encaminhamentos”, declarou. “Temos que levá-los às últimas consequências, dure o tempo que durar, custe o que custar. É isso que é importante e é isso que nos dá vontade e certeza dos resultados desse esforço, que não é só do governo municipal, mas também da sociedade, dos familiares e das entidades que lutam pelos direitos humanos em nossa cidade e em nosso país”.

Por volta do meio-dia, a imprensa internacional também começou a se dirigir a Perus. Repórteres da BBC de Londres e da RAI italiana estavam entre os jornalistas que se acotovelavam em busca de declarações. Suzana telefonou para outros integrantes da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, como Amelinha Teles e Ivan Seixas, e pediu para que fossem até lá. Era humanamente impossível supervisionar sozinha a retirada dos ossos e atender a tantos pedidos de entrevistas e esclarecimentos.

As imagens capturadas pelas câmeras eram chocantes. Além dos sacos azuis fechados, havia ossos dispersos, espalhados pela vala ou que acabavam vertendo dos sacos ressequidos e quebradiços pelo tempo. Crânios eram retirados do buraco e sintetizavam o sentido fúnebre daquela revelação. Mais do que fúnebre, funesto.

A vala clandestina era um buraco estreito e pouco profundo, com 30 metros de comprimento por 50 centímetros de largura e 2,70 metros de profundidade. Ao longo daquela semana foram retirados 1.049 sacos de plástico azul cheios de ossos e realocados numa sala de velório que os funcionários chamavam de capela. Em tese, havia uma ossada em cada saco, o que fez com que os meios de comunicação divulgassem a notícia de que 1.049 ossadas haviam sido localizadas. Aqui e ali, percebia-se a mistura de ossos, o que indicava a necessidade de um rigoroso trabalho arqueológico de limpeza e separação.

Um sistema extraoficial de morte e ocultação, adotado como política de Estado, começava a ganhar visibilidade. Tudo carecia de explicação. As informações eram desencontradas.

O momento era de tensão nos setores mais conservadores das Forças Armadas. Ameaças de morte logo começaram a aparecer, direcionadas num primeiro momento ao administrador do cemitério, que ousara dar com a língua nos dentes e mexer naquele vespeiro. Para os familiares de mortos e desaparecidos, as ameaças eram uma constante.

Enquanto as ossadas eram retiradas da vala, providências foram tomadas na Prefeitura, na Câmara Municipal, no gabinete do governador. Havia muita coisa a ser feita. O então secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, prometeu vigilância permanente no local até que todas as ossadas fossem retiradas e levadas a um local seguro. Vereadores discutiam a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a origem daquela vala e apurar as responsabilidades. Nos bastidores, a prefeita mexia os pauzinhos para formar uma comissão de acompanhamento sob sua alçada e definir a melhor maneira de analisar aquela montanha de ossos a fim de identificá-las. Quem eram aquelas pessoas? Como e por que foram mortas?

Naquela noite, o Jornal Nacional exibiu uma matéria curta, de três minutos, com imagens da abertura da vala de Perus, nome pelo qual o ossário clandestino se tornaria conhecido. A expectativa pela reportagem completa, a ser exibida na sexta-feira no Globo Repórter, só aumentava.

Por coincidência ou ironia do destino, aquela sexta-feira seria o feriado pátrio de 7 de setembro, aniversário da Independência, data em que desfiles militares e apresentações da esquadrilha da fumaça costumavam elevar o ufanismo verde-amarelo a um patamar sem precedentes. Exibir aquele programa em um 7 de setembro seria não somente uma afronta, mas um golaço contra os militares. Suzana Lisbôa prestara atenção às palavras usadas pelo repórter ao gravar a matéria e estava exultante. Caco se referia aos desaparecidos como guerrilheiros, e não como terroristas, algo pouco comum no horário nobre. E colocava na conta da repressão práticas criminosas como sequestro, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres.

Quando a sexta-feira chegou, outro programa foi ao ar. A reportagem de Caco Barcellos havia sido engavetada.

Somente cinco anos depois, em 21 de julho de 1995, quando o Governo Federal discutia a elaboração de uma lei que oficializaria a morte de 136 desaparecidos políticos, os brasileiros puderam assistir na telinha da Globo a história completa da vala de Perus e sua participação no acobertamento de graves violações de direitos humanos.

 

Leia no próximo capítulo: Por que o prefeito Paulo Maluf construiu um novo cemitério nesse lugar em apenas um ano? Uma exumação em massa. Se a lei proíbe, muda-se a lei. Familiares de guerrilheiros mortos pela repressão encontram uma pista no livro de registros. “Seu irmão era alto?”