Atuação Profissional
deputado constituinte de 1946Organização
PCB e Ação Libertadora Nacional (ALN)Filiação
Maria Rita do Nascimento Marighella e Augusto MarighellaData e Local de Nascimento
5/12/1911, em Salvador (BA)Data e Local de Morte
4/11/1969, em São Paulo (SP)Político, guerrilheiro e poeta, Carlos Marighella vivenciou a repressão de dois regimes autoritários: o Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, e a ditadura militar iniciada em 1964. Foi um dos principais organizadores da resistência contra o regime militar e chegou a ser considerado o inimigo número um da ditadura. Teve ao todo quatro passagens pela prisão, onde sofreu espancamentos e torturas, sendo a primeira delas aos vinte anos de idade. Militou durante 33 anos no Partido Comunista e depois fundou o movimento armado Ação Libertadora Nacional (ALN).
Começou sua trajetória política bem jovem. Sua primeira prisão ocorreu em 1932, após escrever um poema contendo críticas ao interventor Juracy Magalhães. Em 1936, abandonou o curso de Engenharia Civil e se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), na época dirigido por figuras históricas como Astrojildo Pereira e Luís Carlos Prestes. Tornou-se, então, militante profissional do partido e se mudou para o Rio de Janeiro.
Durante a ditadura na Era Vargas, foi preso por subversão e torturado pela polícia de Filinto Müller duas vezes. Ficou na prisão até 1945, quando foi beneficiado com a anistia pelo processo de redemocratização do país.
Elegeu-se deputado federal constituinte pelo PCB baiano em 1946, como um dos mais bem votados da época. Mas, nesse mesmo ano, Marighella voltou a perder o mandato porque o governo Dutra, por orientação do governo estadunidense, cassou todos os políticos filiados a partidos comunistas.
Impedido de atuar pelas vias legais, retornou à clandestinidade e ocupou diversos cargos na direção partidária. Convidado pelo Comitê Central, passou os anos de 1953 e 1954 na China, para conhecer de perto a Revolução Chinesa.
Em maio de 1964, após o golpe militar, foi baleado e preso por agentes do Dops dentro de um cinema, no Rio. Libertado em 1965 por decisão judicial, no ano seguinte decidiu se engajar na luta armada contra a ditadura e escreveu o livro “A crise brasileira”.
Foi expulso do PCB, em 1967, por divergências políticas, e no ano seguinte fundou o grupo armado Ação Libertadora Nacional, com dissidentes do partido. A organização participou de diversos assaltos a banco e do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em setembro de 1969, numa ação conjunta com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Depois, o embaixador foi trocado por 15 presos políticos.
Com o recrudescimento do regime militar, os órgãos de repressão concentraram esforços em sua captura. Na noite de 4 de novembro de 1969, Marighella foi surpreendido por uma emboscada de proporções cinematográficas na alameda Casa Branca, na capital paulista. Foi morto a tiros por agentes do Dops, em uma ação gigantesca coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. A morte de Marighella marcou a história da resistência armada urbana à ditadura militar no Brasil. A ALN continuou em atividade até o ano de 1974.
Alguns escritos políticos de Marighella, embora redigidos em português, ganharam primeiro uma edição em outra língua, devido à censura imposta a obras do gênero pelo regime militar brasileiro. É o caso de “Pela libertação do Brasil”, que em 1970 ganhou uma versão na França, financiada por grupos marxistas. Estão disponíveis em português: “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil” (1958), “Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil” (1967) e “Chamamento ao povo brasileiro” (1968). Uma das mais divulgadas obras de Marighella, “O minimanual do guerrilheiro urbano”, foi escrita em 1969, para servir de orientação aos movimentos revolucionários. Circulou em versões mimeografadas e fotocopiadas, algumas diferentes entre si, sem que se possa apontar qual é a original. Nessa obra, ele detalhou táticas de guerrilha urbana a serem empregadas nas lutas contra governos ditatoriais. Ainda na prisão, desta feita em 1939, ele compôs o poema “Liberdade” – sua obra poética está reunida no livro “Rondó da Liberdade.”
“(…) E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.”
Quando foi morto, na noite de 4 de novembro de 1969, Carlos Marighella era considerado pela ditadura militar o seu inimigo número um. Apesar de sua execução ter sido realizada pelo DOPS/SP, sua busca envolveu praticamente todo o aparato repressivo, com a colaboração de vários órgãos na operação que resultou na sua localização.
Essa informação é confirmada pelo Relatório no 30-Z-160-2739-A, do DOPS/SP, assinado pelo delegado Ivair Freitas Garcia, que diz: “no estado da Guanabara a preciosa colaboração do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e do SNI”. Segundo a versão oficial, Marighella morreu em tiroteio com policiais do DOPS/SP. O exame necroscópico, realizado no dia seguinte, pelos legistas Harry Shibata e Abeylard de Queiroz Orsini, registra que ele morreu “na alameda Casa Branca defronte ao número 806 por ocasião de um tiroteio com a polícia”.
A justificativa seria reiterada por anos, como se observa no Ofício nº 002/1975, do Centro de Informação da Polícia Federal, encaminhado à agência central do SNI, carimbado como “secreto” e “confidencial”, que registrou: “morto em tiroteio travado com a polícia, em frente ao nº 800 da alameda Casa Branca, em São Paulo (SP), no dia 4 de novembro de 1969, fato esse, amplamente divulgado pela imprensa nacional e internacional, na época”. Sob tortura, um militante da ALN revelou uma importante pista aos agentes da repressão: que Marighella tinha uma ligação com membros da ordem religiosa dos dominicanos.
Presos e torturados, dominicanos foram usados como “isca”, ou seja, forjaram um encontro com o líder guerrilheiro, justamente o local onde ele seria executado. O Relatório Especial de Informações (REI) nº 08/1969, de 21 de outubro de 1969, assinado pelo coronel Adyr Fiúza de Castro, então chefe do CIE, indicava: “Em recentes diligências que realizaram na capital paulista, os integrantes da OB [Operação Bandeirante] desbarataram 13 ‘aparelhos’ e prenderam 19 terroristas da ALN, três dos quais participaram do sequestro do embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, na Guanabara.”
Com as prisões pelo DOPS/SP, com apoio do Cenimar, dos dominicanos frei Fernando Brito e Yves do Amaral Lesbaupin, que adotava o nome de Frei Ivo, além de outros dominicanos e militantes ligados à ALN, os agentes da repressão precisavam agir rapidamente para que as baixas não chegassem ao conhecimento de Marighella. Do telefone da livraria Duas Cidades, no centro de São Paulo, onde trabalhava, frei Fernando marcou um ponto como líder da ALN, como havia feito outras vezes.
Um grande aparato policial foi montado no local, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O Volkswagen Fusca azul placa 24-69-28 (São Paulo-SP) ficou parado no meio-fio esquerdo da alameda Casa Branca, em frente ao nº 806, com os dois dominicanos nos bancos da frente. Próximo ao carro, policiais se posicionaram atrás de um tapume de obra. A poucos metros, o delegado Fleury, um policial e as investigadoras Estela Borges Morato e Ana Teresa Leite ficaram em um carro Chevrolet ano 1956, como se fossem casais.
Outros carros se posicionaram nas imediações, estrategicamente, como uma picape coberta com uma lona, embaixo da qual se escondeu o investigador do DOPS/SP João Carlos Tralli, o Trailer, com sua inseparável Winchester calibre 44, que chamava de Vilminha. Fleury sabia que Marighella dispensava seguranças e a expectativa era que ele chegasse até o Fusca onde estavam os dominicanos, entrasse e se sentasse no banco de trás. Foi o que aconteceu.
Naquela noite de 4 de novembro, no horário marcado, Marighella atravessou a alameda Lorena e viu o Fusca azul dos dominicanos. Ele se aproximou, abriu a porta do carona e entrou no carro, que tinha frei Fernando no banco de carona e frei Ivo ao volante. Ato contínuo, os policiais do DOPS/SP tiram os dominicanos do carro e encurralam Marighella. Fleury chega em seguida e dá voz de prisão. Ao que Marighella fez um gesto, de pegar alguma coisa na pasta que trazia consigo, os policiais abriram fogo à queima roupa, matando o guerrilheiro indefeso. Os policiais iriam se vangloriar da execução, reivindicando a autoria de um dos quatro ou cinco tiros certeiros. Tralli e Fleury disputavam a glória da autoria do tiro fatal que vitimou Marighella, que não teve qualquer chance de defesa.
Depois da ação, Tralli afirmou: “Numa guerra você tem de atirar primeiro. É como acontece nos filmes. Você vai esperar o cara pegar a arma? É guerra, filho.” O Relatório Especial de Informações (REI) nº 9/69 do CIE mostra o que Marighella trazia em sua pasta: mil dólares, alguns cruzeiros novos, duas cápsulas de substâncias [depois identificadas como cianureto], um molho de chaves, miudezas e rascunhos. Marighella estava desarmado. Os rascunhos e anotações eram criptografados, com códigos e hieróglifos. O documento (REI) apresenta possibilidades de interpretação, nenhuma, aparentemente, com sucesso.
No REI nº 08/1969, de 13 de novembro de 1969, produzido pela Oban, vinculada ao II Exército (São Paulo), a execução de Marighella é considerada “indubitavelmente uma desarticulação profunda no esquema subversivo-terrorista”. A respeito da operação, o relatório informa ainda que houve “intenso tiroteio, não sendo possível precisar de onde partiram os tiros. É bastante provável que Marighella estivesse com ‘cobertura’, todavia não foram identificados veículo ou pessoas que estivessem fazendo essa ‘cobertura'”.
Documento secreto, a Informação no 183/QG-4, do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), de 24 de novembro de 1969, descreve que: “[…] foi dada a ordem de comando e uma das equipes cercou o automóvel dando voz de prisão e mandando que Marighella saísse com as mãos para cima. Os freis saltaram do carro conforme o combinado, e o terrorista ao invés de obedecer, segurou uma pasta de couro preta, que estava em seu poder. Diante da indicação de resistência, foram feitos disparos, principalmente contra sua mão esquerda que segurava a pasta; esta foi perfurada a tiro, perdendo ele a falange do indicador da mão esquerda.”
A imprensa contribuiu para difundir essa versão, com manchetes como ‘Metralhado Marighella, chefe geral do terror’ e reportagem que afirmava que a morte havia ocorrido “durante violento tiroteio travado entre membros de seu bando e agentes da Operação Bandeirante” (Folha da Tarde, de 5 de novembro de 1969). O livro-relatório “Direito à memória e à verdade”, da CEMDP, retrata o tamanho da operação de captura do líder da ALN e traz detalhes de seu planejamento: “Morreu em via pública de São Paulo, durante emboscada de proporções cinematográficas, na qual teriam participado cerca de 150 agentes policiais equipados com armamento pesado, sob o comando de Sérgio Paranhos Fleury […] A gigantesca operação foi montada a partir da prisão de religiosos dominicanos que atuavam como apoio a Marighella.”
Na versão oficial, um deles foi levado pelos policiais à livraria Duas Cidades onde recebeu ligação telefônica com mensagem cifrada estabelecendo horário e local de encontro na alameda Casa Branca. A perícia da CNV concluiu que Carlos Marighella foi atingido por pelo menos quatros projéteis de arma de fogo, que foram desferidos quando ele estava no banco traseiro do Fusca em que foi encontrado. Fortalece tal afirmação a inexistência de qualquer marca de sangue nas molduras das portas do veículo. Também constatou-se não ter havido troca de tiros, pois todos os disparos observados partiram de fora para dentro do veículo. Também ressalta que todas as marcas de sangue observáveis nas fotografias de perícia de local são compatíveis com a posição do corpo de Marighella, após a morte. Suas roupas apresentam apenas marcas de sangue limpas, sem nenhuma sujeira adquirida por contato com o solo – o que teria ocorrido se tivesse sido atingido fora do veículo e caído ao ser alvejado.
A perícia da CNV inferiu, ainda, que todos os disparos partiram de um plano superior ao da vítima e que esta se encontrava deitada no banco do carro. O tiro que atingiu Marighella na região torácica, provavelmente o último, foi efetuado a curtíssima distância (menos de oito centímetros), através do vão formado pela abertura da porta direita do veículo, numa ação típica de execução. Na operação de execução de Marighella também morreram, por tiros dos agentes, a policial Stela Borges Morato e o protético Friederich Adolph Rohmann, este último, porque ultrapassou o cerco policial e foi confundido com apoio da ALN a Marighella. Também foi ferido na perna o delegado Rubens Cardozo de Mello Tucunduva.
A farsa da versão que seria divulgada pela polícia, de que houve troca de tiros e Marighella não estava sozinho, se, em parte, foi para justificar a execução sumária do guerrilheiro, também o foi para dar uma satisfação pelas outras duas mortes, resultados de imprudência e imperícia dos agentes do Estado. Houve intenso debate na CEMDP sobre o entendimento a respeito do artigo 4º, inciso I, letra b da Lei 9.140/95, que estabelece como atribuição da Comissão Especial proceder ao reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes de pessoas “que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, tenham falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas”.
Segundo o relator, duas interpretações emanavam desse dispositivo: Uma restritiva, que admite apenas o reconhecimento de pessoas mortas em base física fechada, apta para nela conter quem estiver detido. E outra, mais abrangente, permite o reconhecimento de pessoa morta em locais diferentes dos estabelecimentos especificamente utilizados para o encarceramento ou o interrogatório de presos políticos, desde que as circunstâncias indiquem que a vítima já se encontrava sob o domínio do poder público. “[…] Estamos, na verdade, diante de um conceito eminentemente político e não territorial. Quando a lei estabelece ‘dependências policiais ou assemelhadas’, não está se referindo a obras de engenharia, como prisões, prédios policiais, militares, ou mesmo prédios privados, eventualmente utilizados pelos órgãos de segurança, mesmo porque, como se sabe, o abuso repressivo ultrapassou estes limites físicos.”
Assim, entre outras ponderações, o relator justificou seu voto favorável, por concluir que: “A morte de Carlos Marighella não corresponde à versão oficial divulgada na época pelos agentes policias. Os indícios apontam para a não ocorrência do tiroteio entre a polícia e seus supostos seguranças e indicam, também, que ele não morreu na posição em que o cadáver foi exibido para a imprensa e para o perito.” Carlos Marighella, afirma o parecer médico-legal “[…] foi morto com um tiro a curta distância depois de ter sido alvejado pelos policiais, quando já se encontrava sob seu domínio, e, portanto, sem condições de reagir. Confirma-se, assim […], que a operação policial extrapolou o objetivo legítimo de prendê-lo.” Mesmo admitindo que ele “tentou resistir, procurando abrir a pasta […]”, como sustenta a versão oficial, fica claro que os disparos anteriores já o tinham imobilizado, a ponto de permitir a aproximação do executor para o tiro fatal – “quase encostado”. Do excesso, resulta a responsabilidade do Estado. “[…] O poder público tinha controle absoluto da área, o que se verifica pelo fuzilamento do único civil que inadvertidamente ultrapassou o cerco formado por pelo menos 29 policiais” – o dentista alemão. “[…] É dever do agente guardar quem está sob sua responsabilidade. A execução do infrator, pelo policial que o procura, é o mais sumário e o mais assustador dos julgamentos. Se executar alguém não é errado, nada é errado.”
Na CEMDP, seu caso foi aprovado por 5 votos a favor e 2 contra, os do general Oswaldo Pereira Gomes e de Paulo Gustavo Gonet Branco, em 11 de setembro de 1996.
Marighella foi enterrado como indigente no cemitério de Vila Formosa, na capital paulista. Em dezembro de 1979, a família e companheiros realizaram um ato público em sua homenagem no Instituto dos Arquitetos do Brasil, em São Paulo (SP), quando seus restos mortais foram transferidos para o cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Carlos Marighella foi executado por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964.
Recomenda-se a retificação da certidão de óbito de Carlos Marighella, assim como a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso, para a identificação e responsabilização dos agentes envolvidos.
O Estado brasileiro utilizou uma série de mecanismos para amedrontar a população, sobretudo aqueles que não estivessem de acordo com as medidas ditatoriais. Conheça os reflexos do aparato repressivo e os focos de resistência na sociedade.