Marcia Gazza

Márcia Gazzarolli: ‘Não podemos deixar nossos filhos virarem estatísticas’

Coordenadora do Movimento Mães de Maio da Leste, Márcia Gazzarolli teve o filho torturado e morto em 2015. Ainda hoje luta para conseguir ao menos denunciar o assassinato. Ela encontrou na luta junto a outras mães um jeito de sobreviver.

por Jéssica Moreira
Do Nós, mulheres da periferia para o Memórias da Ditadura

Aos 62 anos, Márcia Gazzarolli é uma abraçadora. Em uma sala improvisada na parte baixa de sua casa, bexigas, cadeiras, água e café quente convidam a entrar. Na parede, letras cursivas encontram um banner alto e largo com os rostos de meninos e meninas. Não há dúvida: “aqui, os nossos filhos têm voz”. Estamos na sede do Movimento Mães de Maio da Leste.

São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. No dia 18 de março de 2015, a região mais populosa da capital paulista, com mais de 6 milhões de habitantes, tornou-se um espaço apertado e dolorido para Márcia. Naquele dia, as ruas e esquinas que compunham um mosaico de suas memórias, formavam agora uma geografia carregada de dor e saudade. Uma saudade chamada Renatinho.

Os olhos delineados de preto, logo se enchem. Mais de sete anos se passaram desde o assassinato à luz do dia do filho, mas sempre parece que foi ontem.

São águas de uma mãe saudosa. Saudosa em ver o filho entrando pela porta e pedindo lasanha no almoço ou bolacha recheada de sobremesa. Saudosa daquele sorriso largo que amava empinar pipa e sentar na calçada e “passar o tempo conversando”, como cantou o grupo de rap da região Doctor MC’s.

Para ela, “a lágrima é o meio de tirar aquela coisa ruim que a saudade faz no coração de uma mãe”.

Uma vida em movimento

Marcia Gazza

Em dia de encontro com mães cujo os filhos foram vítimas do Estado, Márcia realiza um ritual. Faz o download das fotos dessas mulheres com seus filhos, imprime e cola em um mural na porta. Também separa uma planta para cada uma. Mesmo vivendo seu luto, encontra um jeito de abraçar essas mulheres que vivem dores semelhantes às dela.

“Convivo com várias mães e tenho um carinho por todas, porque a dor que a gente sente é dor que só a gente pode entender. É uma dor muito grande perder um filho, ainda mais pela violência: por pessoas que, na verdade, deveriam estar nos dando segurança”.

A prática acolhedora talvez venha da infância. A primeira morte de Márcia foi aos cinco anos. Sua mãe, Margarida Alves, já havia dado à luz a 11 crianças. Na dieta do último, a insuficiência respiratória em decorrência de tuberculose pulmonar, deixaram-a mais fraca. Em uma época em que não havia cura para a doença e a família não tinha condições de pagar por um hospital, a morte era um destino quase certo.

“Estava bem próxima do local, mas até chegar no portão parecia tão distante. A hora que eu cheguei já estava na maca, entrando na ambulância. Foi a última vez que vi minha mãe. Dali, ela morreu”.

As tias e pessoas conhecidas se dividiram para cuidar das crianças por alguns meses. Nunca se esquece do acolhimento de Dona Samira, onde permaneceu até o pai, Silvério Gazzaroli, vir buscá-la. Quando conseguiu se organizar, o pai uniu os filhos outra vez e todos se mudaram para Jacareí, interior de São Paulo.

Ainda em um processo de sofrimento pela morte da esposa, Silvério encontrou no álcool um refúgio, o que causou desentendimentos com os filhos. A família voltou para São Paulo. Os irmãos mais velhos alugaram uma nova casa longe do pai.

Márcia passava horas na máquina de costura produzindo bandeiras e outros adereços de time junto aos irmãos. Foi assim que conheceu José Ferreira, um dos vendedores. Ela tinha apenas 16 anos, mas a cobrança dos mais velhos, unida à falta de liberdade em sua casa, culminou na vontade de se casar com o namorado.

Foram felizes nos três primeiros anos de relacionamento. Michele Adriana, Lilian Regina, Willian Martins e Robson Eduardo foram frutos desse período. Mas não demorou muito para José mostrar uma outra face.

“Conheci a violência doméstica, mas fui dando várias chances para ele. Fomos morar em Santa Isabel. Eu dando chances para termos uma vida melhor, com quatro filhos pequenos, foi quando eu tive uma depressão, fiquei psicologicamente abatida”, conta.

Mesmo diante de um ciclo de violências, Márcia ainda queria um recomeço. Sem que soubesse, isso estava prestes a acontecer, mas não exatamente no relacionamento.

O (re)nascimento de Renatinho

Era fim de janeiro de 1994. Márcia já havia parido quatro vezes, antes de parir a quinta. As contrações ou as mais de 42 semanas de espera deram lugar ao aviso de uma amiga: “Você ficou sabendo da Shirley? Ela teve um neném, mas ela não cuida dele, nasceu com equimose. Ele fica doente, ela nem dá banho”.

Preocupada, Márcia saiu correndo em direção ao endereço da sobrinha e do bebê de pouco mais de um mês. Quando chegou, a encontrou no bar. “Cadê seu neném?”, perguntou. “Ele tá lá em casa, eu vou dar ele. A mulher vai vir buscar amanhã. Se ficar comigo, ele vai morrer”.

Quando abriu a porta e viu aquele bebê miúdo, que cabia quase inteiro em sua mão, Márcia pariu pela quinta vez. “Eu cheguei na casa dela, ele estava no berço chorando. Parece que sentiu que Deus tinha me levado lá. Eu peguei no colo. Estava com a sonda na barriguinha. Aí eu falei assim: ‘se você for dar ele pra alguém, dá pra mim. Eu sou sua tia. Vou criar ele com o maior amor do mundo’”.

Ao lado do berço da criança, ela renasceu Márcia e renasceu mãe. Lembrar desse dia traz de novo a água da saudade: ela amou Renatinho desde o primeiro momento que o viu.

“A partir do momento que eu levar ele pra casa, você não é mais mãe dele, eu vou ser mãe dele”, disse à Sobrinha Shirley. O diálogo foi o suficiente para firmar um acordo amigável entre as duas mulheres, que nunca mais se viram.

‘Ele tem cara de Renatinho’

Márcia chegou em casa cheia de alegria. Sua filha mais velha, Michele, já era uma adolescente de 15 anos. Ao olhar para o menino, o rebatizou: “Ele não tem cara de Peterson. Ele tem cara de Renatinho. Vamos chamar ele de Renatinho”.

O novo nome pegou em toda a família, que agora tinha um caçula para mimar. Os cinco primeiros anos foram difíceis. A doença com a qual o menino havia nascido o impedia de comer. “Ele nasceu com atresia do esôfago. A gente tinha que alimentar ele pela sonda. Tinha que encher uma seringa com 20 ml de leite. Foi assim que cuidei dele por bastante tempo. O líquido foi para o pastoso. Até começar a comer pela boca foi um processo de seis anos”.

Nas fotos de criança, é impossível não reconhecê-lo: é o mesmo sorriso largo das imagens da adolescência. Sorriso que abraça a mãe, as irmãs, os irmãos e as sobrinhas.

Mesmo depois de crescido, Renatinho continuava sendo uma criança grande, que adorava brincar com as sobrinhas, bater uma bola e escutar seu cantor favorito, Bob Marley.

Na escola, não dava trabalho. Não era mal-educado com a professora, nem brigava com os colegas de turma. Mas a verdade, conta Márcia, é que o colégio não era interessante para o menino. Assim como vários outros em sua idade, Renatinho evadiu, parando de estudar ainda no 6º ano do Ensino Fundamental.

Durante a infância, o pai foi preso. Mesmo ficando seis anos afastado da família, Márcia e Renatinho o visitavam na prisão. Separaram-se assim que José foi liberto, mas continuaram próximos por conta do filho.

“O Renatinho foi muito, muito amado. Eu tenho quatro filhos biológicos e o Renatinho era meu filho adotivo. É uma coisa tão linda. Eu falo: Deus deu ele pra nós cuidarmos. E ele precisava de nós. E isso fez a gente amar ainda mais ele”.

Mesmo o pai contribuindo nas despesas de casa, o menino queria seu próprio dinheiro. Trabalhou como ajudante de pedreiro e também em uma auto elétrica, além de ajudar a mãe com as entregas de marmita que ela cozinhava para vender.

‘Ele sempre foi meu companheiro’

“Ele era meu companheirinho pra tudo. Todo mundo gostava dele”. Conta Márcia, em uma tentativa de reafirmar a inocência e a biografia do filho, assim como fazem diversos pais e mães também vítimas de violência. “Nunca tive uma reclamação do Renato no portão da minha casa. Nunca foi polícia no portão da minha casa”.

A adolescência de Renatinho foi a fase mais complexa para Márcia. O garoto continuava respeitando a mãe e nunca sequer levantou a voz para ela ou os irmãos. Ela sabia, no entanto, que o filho precisava de ajuda profissional, diante da dependência química.

“Eu e o pai dele tivemos uma luta acirrada. Internamos ele. Não usava crack, era cocaína. Descobrimos, foi uma luta incansável. O Renatinho fazia mal pra ele, mas pra mais ninguém. Renato só sabia rir”.

Houveram tentativas de internação em clínicas de reabilitação, mas sem o resultado esperado por Márcia. Desesperada, vendeu as máquinas de fazer marmita para bancar uma clínica mais qualificada. “Aí eles deixaram a estadia de R$1200 para R$700. Vendi minhas máquinas e consegui manter ele nessa clínica durante seis meses”.

Após sua saída, Márcia o considerava curado. “Ele falava ‘mãe, eu não precisei da clínica pra eu usar droga, eu vou sair dessa. Um dia, a senhora vai ver, eu vou parar, eu tenho fé em Deus que eu vou parar’. Eu via nos olhos dele que queria parar, mas o vício era muito forte, e eu era a pessoa que mais entendia, ninguém entendia. Ninguém entende uma pessoa viciada”.

‘Fizeram o Renatinho comer maconha’

Pouco tempo depois da reabilitação, Márcia viu um machucado no rosto do filho. O menino, astuto, disse que havia batido a cabeça na mesa sem querer. Márcia achou estranho, mas não entrou em detalhes.

Só depois de sua morte descobriu: um policial havia dado uma coronhada em Renatinho. Os dias se seguiram, mas a marcação com o menino não.

“O Robson, meu outro filho, falou assim: ‘mãe, um dos policiais que participaram da morte do Renato, foi quem bateu nele’. Eu achava que ele tinha batido na mesa. Ele não quis me contar, mas a polícia tinha batido nele e até feito ele comer a maconha que estava fumando. Então, eu acredito que o Renatinho já estava marcado pra morrer”.

‘Meu filho foi torturado’

Eram 15h30 da tarde, na Zona Leste. O lava-rápido estava funcionando a todo vapor. As pessoas na rua ou no portão. Pelas contas de Márcia, o filho voltava da casa de uma amiga. Não carregava nenhum tipo de droga, tampouco havia cometido algum delito.

Passar em uma rua da mesma região onde cresceu, no entanto, foi o suficiente para Renatinho ser abordado, em plena luz do dia, por um grupo de policiais.

Segundo testemunhas que hoje preferem não se identificar, Renatinho estava simplesmente caminhando quando o arrastaram para uma rua com menos movimento e lá o encheram de socos e chutes.

O garoto gritava. “Vocês me conhecem, pô, vocês me conhecem”. Os gritos também foram ouvidos mais tarde pela própria Márcia, que teve acesso às imagens feitas no celular de uma testemunha. “Viram muita pancada, viram rasteira, ele caiu de cara no chão. Ali, ficaram uns três em cima dele”, conta a mãe.

Um dos conhecidos chegou a ver o momento em que a polícia o jogou no chão encostando algo em seu corpo que o fazia tremer. “Uma testemunha que hoje não quer ser testemunha, porque tem medo, na época, falou que viu passando um negócio no corpo do Renato, e o Renato pulava no chão, eu acredito que era choque”.

“Meu filho foi torturado. Torturado. Torturado”, repete Márcia na mesma sentença, para enfatizar que a tortura que tanto falamos remetendo aos tempos da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) continua entre nós, principalmente nas periferias. Renato ainda tinha vida quando entrou na viatura. “Eles falam que chegou ainda com vida no hospital, mas eu acredito que o meu filho chegou no hospital sem vida”.

Márcia estava do outro lado da cidade nesse dia. Ela dormia na casa da irmã durante a semana para conseguir trabalhar na Feirinha da Madrugada, no Brás, e terminar o Ensino Médio simultaneamente. A nora telefonou para a irmã de Márcia, que deu o recado na hora que ela chegou da escola: “Na hora que minha irmã falou eu gritava. Eu fiquei sem chão nesse dia”.

‘Eu não podia deixar quieto essa morte’

Marcia Gazza

Passados seis meses da morte do filho, o ex-marido, José, faleceu em decorrência de um câncer no fígado. Os lutos de Márcia se somavam e ela se viu em uma profunda depressão.

“Durante uns três anos eu vivi na escuridão. Depois da morte do Renato, eu só via o cinza, eu num via cores. Minha filha, Michele, que começou a dar entrada em processos. Mas a depressão também pegou ela”.

Para continuar lutando por justiça por seu filho que Márcia começou a estudar tudo que se relacionava à morte do filho. “Eu não podia deixar ficar quieto essa morte. Quanto mal esses policiais já não fizeram? Tantas mães já não choraram por causa deles?”.

A família sabia que tinha o direito de exigir um laudo cadavérico do filho, que é um tipo de laudo mais detalhado e que pode mostrar as origens da morte. “Eu li muito sobre isso. O laudo mostrou que Renatinho apresentou a mancha de tardieu [ segundo a Infopédia, são pequenas manchas arredondadas de sangue coagulado, que podem surgir em casos de morte por asfixia]”, conta Márcia. “Ele teve sufocamento no tórax, hemorragia em todos os órgãos do corpo e traumatismo craniano. Como que meu filho não foi assassinado?”, questiona Márcia.

Márcia conta apenas com a análise do promotor de justiça. Só é possível ter um advogado pessoal a partir do momento que o caso for denunciado. Coisa que Márcia ainda não conseguiu, mesmo com todas as provas. “Num foi denunciado ainda. Sete anos e não foi denunciado. O promotor falou pra mim: ‘os casos chegam aqui já mastigados pela delegacia, para o arquivamento”.

O caso de Renatinho só não foi arquivado porque a mãe juntou todas as provas e imagens do local do crime, além do laudo cadavérico completo.

“Agora, o promotor pediu outro laudo. O perito fala ‘nós não podemos afirmar mas não podemos descartar que foram os policiais que causaram a morte’. Quer dizer, tô sem respostas ainda. Na hora que ele entrou na viatura ele não tinha nada, depois meu filho apareceu morto no hospital com vários hematomas com traumatismo, com hemorragia. Meu filho não foi morto? Não foi assassinado? Eu não aceito isso. Vou lutar até o fim da minha vida”.

‘É a luta que me mantém viva’

Muitas vezes, ao andar pelas ruas, Márcia via um rapaz de costas parecido com Renatinho, corria e pegava em seu braço. Quando se dava conta, pedia desculpas e dizia que parecia seu filho. Era como se ela, a algum momento, ainda fosse o encontrar vivo.

“Era o que eu queria, mas aí o tempo foi passando e eu vi que aquilo era impossível. São 7 anos agora, mas parece que foi ontem. Aquela dor sangrenta, que não dá pra explicar, parecia que me sufocava, que eu iria morrer, aquela dor sufocante, que sangra. Hoje,não tenho aquela dor sangrenta dentro do meu coração. Existe aquela saudade, aquela dor da saudade, aquela dor da falta, aquela dor que sangrava”.

Foi no Facebook que ela conheceu outras mães que haviam perdido seus filhos pelas mãos do estado ou ainda por outras causas.

“Um dia eu fui ao CONDEP (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), onde encontrei o Fuca (ativista em Direitos Humanos). Ele sentou do meu lado e fiquei pensando que era um policial. Mas não. Ele trabalhava com Direitos Humanos e pessoas que sofrem com violência policial. Papo vai, papo vem, ele falou que ia ter uma atividade da Cidade Tiradentes, extremo leste. Resolvi ir”.

Foi nesse dia, em dezembro de 2016, que Márcia encontrou pela primeira vez Débora Silva, criadora do Movimento Mães de Maio. O filho de Débora foi assassinado durante os Crimes de Maio de 2006, quando mais de 500 jovens das periferias foram assassinados frente ao conflito entre o crime organizado e o Estado.

Desde então, Márcia entendeu que era possível também organizar sua dor junta outras mães iguais a ela. “É a luta que me mantém viva. Eu tive um câncer de pele em 2017, devido ao emocional. Mas Deus tem um propósito na vida da gente, que é a luta”.

Uma das mães deu a ideia de se organizarem no Cedeca Sapopemba. Ao todo, seis mães se reuniam para trocar experiências. Como em todos os movimentos, neste também havia divergências, o que fez Márcia se afastar do grupo.

Já em 2019, um tanto perdida e sem a rede de acolhimento, Márcia encontrou nas palavras de outro ativista, William Marques, o incentivo para continuar lutando. “Você não pode parar, você tem que continuar, você vai fazer a diferença”, dizia ele.

Marcia Gazza

“Tinha as Mães de Maio do Cerrado. Mães de Maio de Minas Gerais. Tinham as Mães de Maio de Salvador. Eu achei legal a ideia. Foi quando mudamos o nome da página de Mães em Luto da Leste para Mães de Maio da Leste. E o William fez logo pra mim, mãos com o mapa pingando sangue”.

Ela se convenceu e articulou junto à Débora Silva a criação do Movimento Mães de Maio da Leste, o qual coordena desde o nascimento, também em 2019. São cerca de 20 mães de diferentes bairros da zona leste paulistana. A participação não é obrigatória, já que Márcia sabe que o luto é cíclico e que nem todas conseguem participar de maneira contínua.

“Eu queria que todas as mães fossem que nem eu [de lutar por justiça]. Mas tudo tem sua hora. Todas têm seu luto. Todas têm seu tempo. A gente não pode forçar nenhuma mãe a ir pra luta. As que estão no grupo, todas fazem a diferença. Tem muitas ainda que não estão preparadas para lutar. Mas eu nunca vou parar e vou puxar essa sementinha. Vou deixar aqui plantada, por mais que não consiga justiça pro meu filho eu sei que tem uma mãe ou outra que vai ficar aí continuando. Lutando”

Márcia começou a fazer de sua própria casa o espaço de acolhida das mulheres. No lugar onde fizemos a entrevista, as paredes e cartazes falam por si: aqui é um espaço de dor, mas também de memória.

“Eu tô pra aqui dar uma palavra de carinho, um abraço, isso que elas gostam. Eu não vou forçar ninguém a ir gritar. Quando tem essas reuniões, é muito gratificante para todas as mães. É um acolhimento gostoso. É onde as mães podem se abrir, falar daquele filho que não tá mais lá. A família da maioria delas não quer que toque no assunto dentro de casa. O espaço com outra mãe é o espaço para desabafar, igual eu tô fazendo com vocês hoje”, disse para a equipe do Nós, mulheres da periferia.

Na semana da realização da entrevista, Genivaldo de Jesus, um homem Negro, havia sido asfixiado dentro do carro da Polícia Federal em Sergipe. No Rio de Janeiro, na Penha, uma chacina deixou mais de 25 pessoas mortas. Questionada se ela via ou não o noticiário, Márcia é enfática:

“É a realidade que está acontecendo não só no nosso país, como no mundo. Realidade que não aceitamos, mas nós somos ainda minoria. Para mudar esse sistema, tem que mudar o Judiciário e o Ministério Público. Enquanto não mudarmos o sistema, nós vamos continuar vendo isso. Somos uma sementinha. Pouco podemos fazer, mas o pouco que podemos fazer já é muito pro mundo”.

Marcia Gazza

“Sempre falo pras mães: vocês têm que falar, não podem deixar a história morrer. Nosso filho que foi morto vai ficar só na estatística se a gente não falar. A gente não pode deixar só na estatística. Não pode deixar morrer a história de nossos filhos. Quantos não foram mortos há anos e hoje ninguém fala mais? São mortes que estão sendo esquecidas. A mãe não pode deixar isso acontecer. Se eu viver vinte anos, por vinte anos eu vou contar a história do Renato eu vou falar.”

Agradecimentos

À Márcia Ganzarolli, por nos confiar sua história e de seu filho, Renatinho. Ao articulador e defensor de Direitos Humanos, Danilo César, por nos apresentar a história de Márcia e demais trajetórias que devem ser visibilizadas.

Maria Cristina Quirino Portugal

Maria Cristina: “Estou aprendendo a lutar da pior forma que existe”

Mãe de Denys Henrique Quirino, morto no Massacre de Paraisópolis, em 2019, conta como se deparou com a realidade da violência policial no Brasil

Por Semayat Oliveira
Do Nós, mulheres da periferia para o portal Memórias da Ditadura

Funk: um gênero musical dos anos 60, nascido nas comunidades negras norte-americanas e representado pela mistura do soul, jazz e rhythm and blues de James Brown. Na mesma década, a luta por igualdade racial e direitos civis explodiu nos Estados Unidos. Como ondas sonoras, as batidas e reivindicações cruzaram mares e alcançaram o lado sul da América.

Em plena ditadura militar no Brasil, entre 1970 e 1980, a repressão policial em bairros empobrecidos, e habitados majoritariamente por pessoas negras, ganhou proporções estarrecedoras. Ainda assim, os chamados Bailes Blacks transbordaram das periferias de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Contemporâneamente, surgiu o Movimento Negro Unificado, estabelecendo articulações nacionais sobre a condição da população negra.

Dom Filó, um dos grandes produtores musicais cariocas da época, além de ativista pela igualdade racial, viu e sentiu na pele a violência, chegando a vivenciar um episódio de prisão. Sua existência ameaçava o regime ditatorial, já que a promoção de bailes com um reunião massiva de jovens negros indicava, também, um fortalecimento político.

De lá pra cá, o funk desenvolveu características profundamente brasileiras e se estabeleceu como uma cultura nacional. Desde as casas noturnas até às festas de família, o ritmo é um dos mais ouvidos no país. No entanto, os tradicionais bailes funk, originalmente realizados em territórios periféricos, ainda sofrem com a criminalização e perseguição do estado. O dia primeiro de dezembro de 2019 traz a marca sangrenta desta realidade.

Em 31 de novembro, uma noite de sábado, cerca de 5 mil pessoas saíram de suas casas para o famoso Baile da DZ7, em Paraisópolis, favela localizada na zona sul da capital paulista. Durante a madrugada do dia seguinte, com um público massivo ocupando as ruas, uma ação truculenta da polícia militar impôs um trágico fim ao evento.

Agentes do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano invadiram o baile para uma ação de dispersão conhecida como ‘Operação Pancadão’. Entretanto, os jovens acabaram encurralados e agredidos em becos e vielas. Quem presenciou aquele início de domingo voltou para casa com a lembrança de uma noite violenta. Pelo menos 12 pessoas ficaram feridas, uma delas teve uma bala de borracha alojada na perna e nove jovens nunca mais retornaram para suas famílias.

Conhecido como Massacre de Paraisópolis, o que ainda se ouve sobre o caso sai da voz de mulheres como Maria Cristina Quirino, uma das mães que recebeu uma ligação surpresa do Hospital Campo Limpo. “Me ligaram e pediram para algum familiar do Denys Henrique Quirino da Silva comparecer lá”, relata. Brava com o filho por ter saído sem voltar, suas irmãs quase a impediram de ir. “Mas fui sim, sou a mãe dele. Minha intenção era chegar lá e trazer ele pelo pescoço”.

Qualquer possibilidade de morte ficou longe do seu pensamento, assim como não sabia da ida do filho à Paraisópolis. Sua preocupação e aborrecimento naquele momento era a convivência com o ímpeto adolescente comum na idade dele. Semanas antes, Cris, como costuma ser chamada, tinha conversado com ele e pedido para evitar aglomerações. Ao mesmo tempo, ela sabia que seu menino estava apenas começando a descobrir o mundo.

Maria Cristina Quirino Portugal

“Ele queria sair, conhecer lugares e viver as mesmas aventuras que eu vivi nessa idade”, reconhece. E Denys não era o único. Matheus dos Santos Costa, o mais velho entre as vítimas, tinha apenas 23 anos. Os outros jovens envolvidos no massacre foram Marcos Paulo de Oliveira Santos (16), Dennys Guilherme dos Santos Franco (16), Gustavo Cruz Xavier (14), Gabriel Rogério de Moraes ( 20 ), Bruno Gabriel dos Santos, (22), Eduardo da Silva (21) e Luara Victoria de Oliveira (18).

Questionada por repórteres no dia do acontecimento, Cristina chegou a criticar o fato do filho estar em um baile funk. Horas depois, começou a ouvir argumentações sobre a culpa das mortes terem sido dos próprios jovens por estarem naquele espaço e dos pais, por terem permitido. Sua vida levou um solavanco. Ela entrou em choque. Por alguns dias, tudo o que ficou foi uma névoa intensa e a dor de uma mulher que nunca mais foi a mesma.

“Eu corria pra ver a polícia passar”

Embora seja natural de São Paulo, uma das tristezas de Cristina foi não ter nascido no Ceará: “meu pai, minha mãe e meus dois irmãos são cearenses e vieram pra cá em 1979, mesmo ano em que nasci”. A nova etapa da história de sua família começou em Heliópolis, a maior favela do estado de São Paulo.

Não demorou muito e seu pai conseguiu um emprego na prefeitura de São Paulo, ela e os irmãos iam à escola e passavam a maior parte do tempo ao lado da mãe. Na infância, admirava o trabalho dos agentes de segurança pública. A menina sonhava em usar a farda e gostava da forma como atuavam. “Na época, a polícia era muito bem vista pela sociedade, como segurança”, reforça.

Sua perspectiva de criança não a permitia enxergar os profissionais de forma diferente. Todos os dias, ao voltar do prezinho, ia para casa, deixava a mochila, se trocava e voltava para a esquina da sua rua. “Naquele mesmo horário, passava um camburão da ROTA”, resgata na memória. [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, conhecida como tropa de elite da Polícia Militar do Estado de São Paulo e também a mais letal].

“Eu sentava na esquina junto com outras crianças. Eles passavam e davam uma fruta, um pão com presunto. Para nós, que éramos pobres, isso já era demais”, lembra. O sonho de se tornar policial, porém, não se realizou. Após a separação dos pais, sua mãe acabou se mudando para a Brasilândia, na zona norte, e seu pai para o Carrão, na zona leste. No meio desse contexto, as condições financeiras pioraram e, aos 12 anos, decidiu parar de estudar e procurar um emprego.

“Precisava me sustentar e dar suporte para minha mãe. Então, deixei de lado meu sonho”, explica. Um dos episódios definitivos para sua saída da escola na 6ª série aconteceu após a sua primeira menstruação. “Fiquei mocinha e minha tia me ensinou a usar um absorvente. Mas, no mês seguinte, minha mãe já não tinha condições de comprar. Tive que me virar com pano”. Neste dia, trabalhar se tornou uma prioridade.

Anos mais tarde, a não realização do sonho ganhou outro sentido e o respeito à farda deu espaço para outro sentimento: a indignação. “De repente, tudo o que eu acreditava mudou. Eu achava que eles eram a segurança da minha família, mas percebi que nada era como imaginei ser”, lamenta.

“Tentei fazer tudo diferente”

Curiosidade. Essa palavra define a juventude de Cristina. “Com 13 pra 14 anos minha cabeça já estava a milhão”, fala, mantendo as mãos em movimento para demonstrar a velocidade da sua vida no período. Em busca da sua independência, teve diferentes experiências profissionais: telefonista, empregada doméstica, assistência técnica. “Trabalhei de tudo”, resume.

Sorrindo, se recorda de andar pela cidade fascinada.. Chegava a pegar o metrô e viajar de um extremo ao extremo, só pra ter o prazer de ver lugares diferentes. “Aproveitei bastante a minha juventude. Aquela Cristina não tinha medo de nada, era uma jovem aventureira que acreditava em sonhos, na sorte e na possibilidade de encontrar um bom trabalho”.

Com 17 anos, vivenciou seu primeiro casamento. O primeiro filho, Daniel, chegaria aos 18. Embora acreditasse em uma relação duradoura, a união se manteve por um curto período. Após um ano e meio, veio a separação. A partir deste momento, a jovem Cris enfrentou uma sequência de relacionamentos seguidos de desamores, “Enfim, aos 22, eu tinha passado por três relações, era mãe de três filhos e estava sozinha”.

Daniel, Danilo e Denys enfrentaram altos e baixos ao lado da mãe. Mais tarde, nasceu a única menina: Sabrina. Sempre com a avó, tias e pessoas com quem Cristina desenvolveu laços de afeto por perto, a sobrevivência da sua família foi um processo coletivo e baseado na ajuda mútua. “Passei anos da minha vida dedicada à minha família, sendo aquela pessoa que luta pela união familiar”.

Poucos dias antes de Denys ser assassinado, ela tinha se mudado para Pirituba, bairro da zona norte de São Paulo. Os dois mais velhos já não estavam com ela, Daniel morava sozinho e Danilo, agora universitário, passava os dias no alojamento destinado aos estudantes da USP (Universidade de São Paulo). Mas a mãe escolheu uma casa espaçosa, com quintal e garagem, pensando em acolher a família inteira. “Era uma casinha velha, mas do jeito que eles queriam”.

Essa foi sua alternativa para possibilitar que os mais novos tivessem acesso a escolas melhores e evitar que enfrentassem dificuldades semelhantes às dela. “Conseguir um emprego é difícil para qualquer pessoa de comunidade, principalmente o primeiro”, fala, com os olhos enchendo d’água. “Para aumentar a chance deles, levei para estudarem em um lugar melhor. Dentro do possível, tentei fazer tudo diferente”, terminou, com o rosto escorrendo em lágrimas.

Sem venda nos olhos

Maria Cristina Quirino Portugal

“Esta na sua frente não é a mesma que lutava por tudo e por todos. Hoje eu luto, mas com visões diferentes”. Com um olhar endurecido, doído, a Cristina do agora diz sentir como se tivesse vivido 40 anos da sua vida com os olhos vendados. “De repente, você tira uma máscara e se vê em uma realidade que você nunca imaginou estar”.

Mesmo conhecendo episódios como os Crimes de Maio de 2006, avalia ter observado casos de violência policial por uma perspectiva diferente da atual. “Eu pensava que a pessoa estava fazendo algo errado e, com isso, precisava pagar pelo erro”, reflete. De forma cruel, a mudança de opinião se impôs com a morte de uma das pessoas que mais amava.

Para ela, a “ficha caiu” quando assistiu aos vídeos da noite do massacre. Cada registro escancara diferentes situações de violência: pessoas encurraladas em vielas, uso de bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e cenas de agressão. “Soube ali que meu filho tinha sido assassinado e determinei que isso não ficaria assim. Eu não poderia me conformar com a ideia da polícia ter matado meu filho e ficar quieta. Não, eles estão fora da lei!”.

Pouco tempo após o episódio, a Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, responsável por investigar a conduta dos 31 policiais militares envolvidos, pediu o arquivamento do caso alegando legítima defesa, pois os PMs teriam sido atacados pelo público do baile com paus, pedras e garrafas.

A Polícia Civil indicou que os agentes agiram mesmo sendo previsível a ocorrência de resultado letal e contrariou a justificativa dos policiais militares sobre um suposto pisoteamento. Os laudos necroscópicos indicaram que 8 das vítimas morreram por sufocação indireta, ou seja, impossibilidade de respirar, e uma delas em decorrência de traumatismo raquimedular, associado à compressão ou uma pancada. Em novembro de 2021, o Centro de Arqueologia Forense da Unifesp (CAAF/Unifep), a pedido da Defensoria Pública, investigou e concluiu, entre outros pontos, que os jovens já chegaram mortos ao hospital, esperaram pelo menos 34 minutos até serem resgatados e que a corporação liberou apenas uma ambulância para atendimento no local.

Em julho do mesmo ano, a Justiça de São Paulo aceitou a denúncia do Ministério Público e 13 policiais militares se tornaram réus: 1 foi acusado pela explosão de um artefato e 12 por homicídio qualificado, por terem assumido o risco de praticar mortes, com agravantes de motivo fútil, dificultando a defesa das vítimas, com emprego de meio cruel e concurso de agentes (quando mais de uma pessoa participou do crime).

Meses mais tarde, em novembro de 2021, mais uma análise foi divulgada. Desta vez, feita pelo Centro de Arqueologia Forense da Unifesp (CAAF/Unifep), a pedido da Defensoria Pública. A investigação concluiu, entre outros pontos, que os jovens já chegaram mortos ao hospital, esperaram pelo menos 34 minutos até serem resgatados e que a corporação liberou apenas uma ambulância para atendimento no local. Também apontaram como inverdade a versão da polícia sobre terem sido cercados, causando o impedindo dos primeiros socorros.

“A investigação do CAAF tem me ajudado e me mostrado coisas difíceis de assimilar. Por exemplo, a relação do funk com o acontecido, as questões políticas, essas coisas…”, conta Cristina. Logo nas primeiras manifestações públicas para denunciar e repudiar o Massacre de Paraisópolis, a mãe ouviu alguém dizer que a morte do seu filho era uma questão política.

“Essa frase mexeu muito comigo, com meu psicológico, mas eu não tinha o entendimento. Hoje sei que essa questão é a política de morte. E quando falamos sobre isso, envolve todo o contexto: a periferia, a cor da pele, a discriminação, o descaso do Estado”, explica, enfatizando lutar contra tudo isso. “O estado mata os nossos filhos. Não perguntam se tem mãe, se tem pai, eles saem matando os filhos da gente”.

“Estou aprendendo a lutar da pior forma que existe”

Maria Cristina Quirino Portugal

Durante toda a entrevista Cris alternou entre o choro longo e os risos breves. Mostrou fotos do filho, fumou alguns cigarros, tomou café. Na hora de tirar fotos, não quis sorrir e disse à Jessy, a fotógrafa, que preferia permanecer séria. Logo no começo da conversa, expliquei que a intenção era ouvir, também, sobre sua própria vida. Então, ela respondeu:

“Hoje em dia nem consigo falar de mim. Todos os dias penso nisso. Como eu queria ser aquela de antes: a mãe, a filha, a irmã. É muito difícil. Falar de mim é o mais difícil de tudo hoje, é como se eu não existisse. É como se aquela Cristina não existisse mais”.

A solidão da sua fala tem rondado, também, seus caminhos. Sente falta de pessoas que ama e costumavam, antes, estar mais perto. Sem entender o motivo do afastamento de alguns, tem seguido seus dias mais só do que gostaria.

Em busca de compartilhar suas dores com quem possa compreendê-la, se conectar com outras mães ligadas à luta contra a violência de estado foi um passo importante, mas complexo e doloroso. “No começo, eu não conseguia ouvir a história delas. Cada nova mãe que eu escuto é como se eu sofresse um novo golpe”. Além disso, o medo de retaliações também foi um impeditivo. “Tive que me bloquear para entender o que estava acontecendo, depois fui assimilando e começando a me encontrar, mas é um processo”.

Manter-se em movimento é o jeito que encontrou para acolher a si e suas dores. Neste caminho, encontrou parceiras e parceiros na Rede Emancipa, um Movimento Social de Educação Popular que luta pela democratização do acesso à Universidade e por uma educação de qualidade, localizado no Grajaú, zona sul de São Paulo. Na luta por justiça, o espaço tem oferecido solidariedade e a oportunidade de compartilhar sua história com outras pessoas. O presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo, Dimitri Sales, também foi e tem sido um parceiro nesta jornada.

Além disso, Cris tem criado um laço de afeto com Adriana Regina dos Santos, mãe de outra vítima do massacre que leva o mesmo nome do seu filho, Dennys Guilherme dos Santos Franca. E mesmo diante dos riscos, se calar não está nos seus planos: “sempre corri pelo certo e pelo certo vou seguir”, afirma.

Maria Cristina Quirino Portugal

Na bolsa, ela carrega a faixa com o rosto das vítimas assassinadas durante o Baile da DZ7 e cartazes que distribui pelas ruas, na tentativa de evitar o esquecimento das vidas que a cidade de São Paulo e o Brasil perderam no dia 1 de dezembro de 2019, em Paraisópolis. Sobre ser ativista, diz ainda não se identificar com o termo. “Não sei se algum dia alcançarei este patamar, tem que ter muito peito”. Mas a tem certeza de fazer parte de uma história nacional que tem, ativamente, exigido o fim da violência de estado no Brasil.“Sou a mãe do Denys e estou militando por uma causa e aprendendo muito com isso. Estou aprendendo a lutar, essa é a real, aprendendo da pior forma que existe”.

Miriam Duarte Pereira

“A periferia é um cárcere a céu aberto, o povo já nasce com algemas”

Miriam Duarte Pereira teve seus três filhos internados e torturados na FEBEM, instituição criada durante a ditadura civil-militar para punir crianças e adolescentes a partir de 12 anos

por Amanda Stabile
Do Nós, mulheres da periferia para o Memórias da Ditadura

Chove nos olhos de Miriam Duarte Pereira, assim como aconteceu há 22 anos, quando, do portão de sua casa, ouviu a notícia de que seu primeiro menino havia sido assassinado. Era 27 de março de 2000, um dia que ela relembra nos mínimos detalhes, como se o amanhã nunca tivesse chegado e ela ainda estivesse esperando Jhones no portão.

Na época, o garoto tinha apenas 17 anos. O racismo estrutural fez mais uma vítima. Mais um jovem impedido de chegar à fase adulta. Além de sua mãe, a partida precoce de Jhones deixou para trás os corações arrasados de seu pai e dos dois irmãos mais novos.

Miriam: do ventre à luta

Miriam Duarte Pereira

Dona Miriam deu à luz cedo. Em 1982, aos 19 anos, já segurava o mais velho nos braços; em 1984, sentia os chutes de Michael na barriga; e, em 1985, Miguel veio ao mundo. Para complementar a renda do marido, motorista de ônibus, Miriam foi manicure e faxineira, mas sua maior ocupação sempre foi o cuidado.

Após perder a mãe, teve de cuidar das crianças, do marido, da casa, dos dois irmãos e até de seu pai. Descendente de cearenses, mineiros e indígenas, ela foi criada em Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo, bairro em que também viu seus meninos crescerem e desbravarem as ruas da periferia.

Seja pela proximidade dos nascimentos ou pelos ensinamentos de Miriam, seus filhos sempre foram muito apegados uns aos outros. Uma diversão dos pequenos era dançar e cantar junto à mãe. Na época, o grupo porto-riquenho Menudo fazia sucesso e, ao som de “Não se reprima”, os quatro faziam a festa na sala de casa. Infelizmente, eles descobririam cedo que o verbo “reprimir” sempre faria parte de suas vidas – e seria imposto pelo vocabulário do Estado.

Da margem às grades

Miriam Duarte Pereira

“O meu mais velho, quando tinha 12 anos, já começou a dar um pouquinho mais de trabalho”, conta Miriam. Para evitar que Jhones se envolvesse com o que considerava “amizades erradas”, ela deixou que o menino trabalhasse na empresa de reciclagem da tia. Mas sempre o levava e buscava em todos os compromissos.

Quando ele completou 14 anos, a mãe conseguiu matriculá-lo em um curso gratuito de eletricista. Porém, como a nova escola estava há 30 minutos a pé de sua casa, Miriam já não conseguia acompanhá-lo. “Por esses caminhos ele foi pegando amizade, se relacionando com a molecada. Com 15 anos conheceu as drogas”, conta.

Em 1998, aos 16 anos, Jhones foi internado pela primeira vez na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo (FEBEM), rebatizada, em 2006, como Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), após o sancionamento da Lei 12.469/06. Isso ocorreu após cometer pequenos roubos para sustentar o vício.

As FEBEMs foram criadas durante a ditadura militar, em 1976, para punir adolescentes a partir de 12 anos de idade, acusados de problemas de conduta. Desde a década de 1990, a instituição já era alvo de denúncias de tortura, surras e espancamentos.

Nem o choro é livre

Miriam Duarte Pereira

Sua primeira visita à instituição em que o filho estava internado deixou Miriam em choque. Os meninos estavam sujos e com mal cheiro. Quando a viu, Jhones imediatamente a abraçou e cochichou em seu ouvido: “pelo amor de Deus, você não pode chorar aqui. Porque se você chorar, eu vou sofrer. Eles espancam se a mãe chora”. Como em um passe de mágica, a nuvem que pairava nos olhos de Miriam se dissipou. As lágrimas fizeram o caminho inverso.

Após 15 dias, a internação de Jhones progrediu para a Liberdade Assistida (LA) – uma medida que permite que o adolescente não perca seu convívio familiar e comunitário, mas que determina um acompanhamento sistemático. Porém, como ele já era dependente químico e não aceitava tratamento, não conseguia administrar o horário e as regras. Depois de 4 meses em LA, voltou para a FEBEM.

Neste período, Michael, aos 15 anos, acabou sendo internado na mesma unidade que o irmão, mas em uma ala diferente. “O Jhones ficou muito emocionado de saber que o Michael estava lá e queria ver o irmão dele de todo jeito”, conta a mãe.

Já fazia quatro meses que os meninos que nasceram quase grudados não se viam. O mais velho arrumou um jeito de entrar na outra ala com o nome do irmão. “Eles se abraçaram muito, só que pagaram um preço muito alto por isso. Molharam o corpo deles e deram choques”, recorda Miriam com lágrimas nos olhos. E essa foi apenas uma das torturas que relataram para a mãe.

Quanto vale uma vida negra?

Em 1999, após uma rebelião, Jhones conseguiu fugir. Em outubro, Miriam tomou a decisão de interná-lo em uma clínica de reabilitação paga por um benefício do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA). Porém, estar ali não isentou Jhones de ser acusado do homicídio de um policial, em fevereiro de 2000. A sorte foi que a testemunha enfatizou sua inocência.

Em 12 de março, o adolescente fugiu da clínica e não queria ver a mãe porque achava que seria mais uma decepção para ela. Mas Miriam o encontrou pelas ruas do bairro, o abraçou e foram juntos para casa. Após passar três dias na rua, o menino voltou no dia 24.

“Eu falei: ‘olha, eu vou trancar essa casa e você não vai sair’”, conta a mãe. Entretanto, ele aproveitou a brecha deixada por algumas vizinhas que chamaram Miriam no portão. “Rapidinho ele se arrumou, passou entre a gente, me deu um beijo e outro nas minhas vizinhas”, recorda.

Ficou então mais três dias sem notícias do filho, mas decidiu que, após sua aula – ela havia voltado a estudar – sairia à procura de Jhones. Apesar da distância, o cordão umbilical que os ligava há 17 anos ainda parecia intacto. “Quando deu umas 17h20, na escola, eu senti um impacto na minha nuca, aquela quentura”, lembra.

Após o fim das aulas, correu para deixar a mochila em casa e partir em busca de seu mais velho. Enquanto trancava a porta, um rapaz a chamou no portão: “Miriam, mataram o Jhones lá em Santo André”. Demorou alguns segundos para a ficha cair.

Quando chegou no necrotério, apenas pelo pé de fora do lençol já sabia que aquele era o corpo do seu menino. Conta que ele ainda estava quentinho na hora em que ela lhe deu um beijo no rosto. “Pode passar o tempo que for, mas o luto não passa. Porque a partir do momento que mata o teu filho, te mata também”, chora.

Jhones era conhecido dos policiais que o chamavam “neguinho”. Segundo a mãe, foram pedir dinheiro para o menino e disseram que, caso não desse, iriam colocá-lo de volta na FEBEM. Com medo, o adolescente decidiu roubar um carro, mas não sabia que o dono também era policial. “Ele não foi homem pra dar um tiro na perna, no braço. Deu um único tiro de execução na nuca”, conta Miriam indignada.

Cárcere a céu aberto

A maternidade é para sempre e não é uma tarefa fácil, especialmente nas periferias. “O seu filho completa certa idade e você já fica com medo, porque a polícia já vai revistar, bater documento. Na periferia não tem liberdade, é um cárcere a céu aberto. O povo já nasce com algemas”, desabafa Miriam.

De seus filhos, Miguel foi o único que terminou o ensino médio e até se inscreveu para fazer um curso de processamento de dados. Falava para a mãe que queria ser advogado. Também não dormia fora de casa, nem usava drogas. Mas foi o que entrou mais cedo na FEBEM, aos 14 anos.

Miguel ficou em uma unidade diferente da dos irmãos, para crianças e adolescentes de 12 a 14 anos. Passou pela instituição sete vezes: nas primeiras, sempre ficou por pouco tempo; na última, a juíza determinou que ficasse por um ano e oito meses.

Três anos depois, quando o menino tinha 17 anos, Miriam viu o pior dia de sua vida se repetir. Lembra de tudo da noite anterior: de seus filhos escutando Racionais MC’s, da conversa que teve com o caçula. “Foi um papo bem gostoso. Era o último, né?”, lamenta.

No dia seguinte, Miriam fez a comida favorita do menino para o almoço – carne moída com abobrinha – enquanto ele estava sentado na calçada com o irmão. Quando os chamou para comer, Michael disse que Miguel tinha ido dar uma volta de moto e que ia esperar o irmão para almoçar.

Logo ouviram um burburinho na rua de casa: eram os vizinhos gritando que Miguel havia sido morto. Todos saíram correndo. Miriam travou. Ficou com medo de ver se seu caçula estava muito machucado. Mas na periferia, tudo se sabe. Tudo te contam.

“Vieram me falar que o cara matou o Miguel porque ele estava andando na moto dele. Meu filho pegou a moto emprestada de um amigo, que pegou emprestado de um primo, que era esse cara. Ele viu o Miguel de moto e deu três tiros nas costas e três tiros no peito”, lembra.

Sobrevivente

Michael foi o único que conseguiu chegar à idade adulta. Sobreviveu à FEBEM e, de 2011 a 2018, fez parte dos mais de 700 mil presos que colocam o Brasil em terceiro lugar no ranking de população carcerária. “Se eu fosse o presidente do Brasil eu ia ter vergonha de ver a quantidade de pessoas presas. É o fardo do fracasso. Quanto mais pessoas presas tem, mais fracassado o governo é”, esbraveja Miriam.

Porém, por causa de tantas torturas que sofreu, Michel hoje é uma pessoa com deficiência. Ele teve dois AVCs [acidente vascular cerebral] isquêmicos. Aos 38 anos, tem cegueira periférica, não escuta do ouvido direito e tem dificuldades para formar frases.

A luta continua

Desde que Jhones foi internado na FEBEM pela primeira vez, em 1998, Miriam luta pelos direitos humanos dos adolescentes internados. Na fila das visitas, conheceu Railda Alves, que entregava um papel da Associação de Mães da FEBEM. As duas fundaram a Associação de Amigos/as e familiares de presos/as (AMPARAR).

A organização, com sede na Zona Leste, dá apoio social e assessoria jurídica aos familiares de pessoas presas, especialmente às mães que também são punidas e criminalizadas pelo sistema e pela sociedade. A AMPARAR também realiza rodas de conversa para a troca de experiências e discussão de desafios comuns; além da organização e realização de seminário sobre prisão provisória e encarceramento em massa.

“Nós começamos com o trabalho nas filas de visita e dos ônibus. Elas nos procuram, acolhemos, e mostramos para elas que são seres humanos e merecem respeito. É todo um processo”, conta Miriam.

Dona Zilda

Na luta por justiça pelo filho, Dona Zilda se mantém de pé

Fundadora do Mães de Osasco e Barueri, Dona Zilda conta sobre sua trajetória e a luta por justiça a partir do assassinato do filho em uma cachina.

Por Beatriz de Oliveira
Do Nós, mulheres da periferia para o Memórias da Ditadura

Era uma quinta-feira, 13 de agosto de 2015. Fernando Luiz de Paula, mais conhecido como Abuse, estava desempregado e tinha acabado de passar por uma tuberculose grave. Ao se recuperar, começou a fazer alguns reparos na casa em que vivia com a mãe, Zilda Maria de Paula. Nesse dia, usou a cor amarela para pintar uma das paredes da sala e, ao terminar, limpou o cômodo. Quando dona Zilda chegou do trabalho até estranhou, o filho costumava deixar a bagunça para ela.

Com 34 anos, o jovem cumprimentou a mãe e disse que levantaria cedo no dia seguinte para concluir a tarefa. Em seguida, perguntou se ela tinha gostado. Respondendo que sim, pegou um quadro com um desenho do rosto do menino quando criança e pendurou na parede ao lado. Então, Fernando tomou banho e foi em direção ao bar do Juvenal, próximo da casa localizada no bairro Jardim Munhoz Júnior, em Osasco, região metropolitana da cidade de São Paulo.

No caminho da porta, antes de chegar à rua, a cadela de estimação o seguiu, mas ele preferiu não levá-la. Logo após sua saída, a mãe começou a assistir televisão. De repente, o aparelho parou de funcionar. Como o filho tinha saído a pouco tempo, pensou em chamá-lo e pedir que consertasse, mas, ao se levantar, as imagens voltaram a aparecer.

Quando a noite chegou, próximo das 20h, escutou um som parecido com fogos de artifício. Minutos depois, um menino da vizinhança apareceu e disse que ela deveria pegar o documento de Abuse o mais rápido possível. Foi quando soube que os possíveis fogos eram tiro e que seu filho havia sido atingido.“Morreu?”, questionou. Mas o garoto retornou com o silêncio. Sua resposta só veio minutos depois: ao chegar no bar, encontrou Fernando enrolado em um saco plástico.

Chacina: uma palavra do Brasil

Dona Zilda

Naquela noite de 2015, três policiais militares e um guarda civil municipal assassinaram 18 pessoas e deixaram outras 3 feridas em um intervalo de apenas três horas. O motivo seria a retaliação e vingança pela morte de um policial militar e de um guarda civil metropolitano após um assalto ocorrido alguns dias antes.

A forma de atuação remonta cenas já vistas em outros acontecimentos tão violentos quanto: homens encapuzados desceram de um carro, se direcionaram a uma região de bares e dispararam vários tiros. Em alguns casos, perguntaram se a vítima tinha ou não passagem pela polícia antes de atirar.

O filho de Dona Zilda foi uma das vítimas do massacre que ficou conhecido como Chacina de Osasco e Barueri, considerada a maior da cidade de São Paulo. Matanças como essa, entretanto, não são casos isolados. Anualmente, os noticiários contam histórias semelhantes nas periferias de diferentes estados brasileiros.

Em 2016, a jornalista e advogada norte-americana, Shannon Sims, escreveu um artigo para o The Washington Post afirmando que “chacina” era uma das piores palavras que ela teria conhecido no Brasil, já que a origem do significado tem relação com a matança de animais e, aqui, se refere a morte de pessoas com o envolvimento de forças policiais.

No estudo Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, publicado pela Fundação Perseu Abramo, em 2019, os pesquisadores analisam a origem do fenômeno e trazem fundamentações teóricas para o uso do termo. Um dos trechos afirma que: “apesar de comum, chacina não é um conceito jurídico. A morte de diversas pessoas em uma ação planejada aparece no inquérito policial ou no processo judicial como “homicídios múltiplos”. Nesse sentido, a palavra chacina é o que os antropólogos denominam como uma categoria nativa (ou êmica), ou seja, ela opera no mundo prático e seu significado tem um valor histórico para determinadas sociedades ou grupos sociais (Guimarães, 2003)”.

Na história recente de São Paulo, porém, casos violentos como este também carregam o surgimento da resistência e do enfrentamento popular. O ano de 2006 ficou marcado por um caso conhecido como Crimes de Maio. Após um conflito com o PCC (Primeiro Comando da Capital) causar a morte de dezenas de policiais, uma retaliação resultou em um massacre que deixou 509 mortos nas periferias do estado, regiões habitadas majoritariamente pela população negra.

Por conseguinte, nasceu uma das organizações mais fortes em defesa dos direitos humanos na atualidade: o Movimento Mães de Maio. Composto pelas mães das vítimas, unidas pelo luto e pela busca por justiça, um dos objetivos do grupo é denunciar a ausência da democracia e a continuidade da ditadura no Brasil, especialmente para jovens negros e dos bairros empobrecidos do Brasil.

A partir deste exemplo, Dona Zilda e as outras mães criaram o movimento Mães de Osasco e Barueri. Por incentivo da ONG Rio de Paz, passaram a se reunir em sua casa para planejar manifestações, homenagens e para acompanhar as novidades sobre o caso. Nos protestos que realizam, carregam uma faixa com a foto e nome de cada um dos assassinados, cartaz que, inclusive, fica guardado na casa dela.

A mulher de voz rouca e firme, vence seus dias entre saudade e luta. “É tanta coisa que eu não sei definir se é dor, raiva, ódio, revolta. É isso que mata a gente. Não é uma dor de cabeça, uma dor de dente. No começo era uma dor sufocante, que dói tudo. É noite e dia, são 24 horas com aquilo na sua cabeça. Até hoje é assim, só que minimizado. Mas ainda é uma dor que eu não sei te explicar, só quem passa sabe”, afirma Dona Zilda, hoje com 68 anos de idade.

“Era feliz e não sabia”

“Eu não nasci, eu surgi”, diz, se referindo ao fato de ser adotada e não conhecer os pais biológicos. Durante a infância, Dona Zilda morou no Sumaré, bairro nobre da cidade, na casa da patroa em que sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Ao mesmo tempo, também tinha a Brasilândia como morada, bairro na zona norte, onde a família alugou uma casa por um período.

Estudou até o segundo ano do Ensino Fundamental e o significado da palavra trabalho veio logo cedo: aos 8 anos de idade já era responsável por tomar conta de outras crianças. Logo cedo, iniciou sua trajetória como empregada doméstica, à exemplo da mãe.

Quando completou 12 anos, a patroa não aceitou mais que a menina morasse lá. Então, a rua se tornou seu lar por alguns anos. “Era época da Jovem Guarda, isso me marcou muito”. Ela e as companheiras de rua, dormiam em frente a Record, na Av. Paulista, emissora que na década de 60 promovia shows de talentos e recebia muitos artistas.

“A gente era cambista, as primeiras fileiras eram 5 cruzeiros, aí chegavam as filhinhas de papai e a gente vendia os ingressos. Com esse dinheiro íamos comprar café”. Outro ponto de parada em que costumavam dormir era o Cemitério da Consolação, na região central da cidade.

“Engraçado, morei na rua, mas não carregava roupa nem cobertor”, diz. Na época, algumas de suas companheiras de ruas trabalhavam como empregadas domésticas, então, permitiam que as amigas entrassem pela área de serviço dos apartamentos e guardassem seus pertences no quarto da empregada. Eram nesses momentos que conseguiam tomar banho e lavar suas roupas.

“Eu era feliz e não sabia. Não tinha dívida, não tinha aluguel, corria atrás dos artistas, ia para o aeroporto”, conta entusiasmada. Nessas aventuras, conheceu músicos como Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Teve espaço até para um incidente com Agnaldo Timóteo: ela correu para abraçá-lo e ele rejeitou, então suas colegas atacaram o cantor. Aos 16 anos, conseguiu um emprego como empregada doméstica e voltou a morar na Brasilândia.

No samba, um desamor

Fernando foi desejado, alguém que insistiu em receber e cuidar do mundo. Na sua juventude, antes mesmo de seu menino nascer, Dona Zilda gostava de se arrumar e sair para dançar. E foi em um dia de diversão na escola de samba Rosas de Ouro, em 1972, que conheceu o homem que viria a ser seu marido e pai de seu filho.

“Até aí eu vivi, mas depois soube quem ele era de verdade”, lembra. “Chegou uma hora que não podia me pintar nem conversar com ninguém. Machismo! Fui submissa e ele continuou a vidinha dele de solteiro, conversando com a mulhereda”.

Durante os 11 anos de relacionamento Dona Zilda passou por traições e violência doméstica. Mesmo tentando se separar algumas vezes, acabava voltando, principalmente pelo filho. Até que um dia, mesmo desempregada, conseguiu. “Ele pegou guarda-roupa, pegou panela de pressão, garrafa de bebida, coberta. Eu falei: ‘você pode levar tudo, a única coisa que quero de você é o meu filho’”, lembra. “Fiquei na rua da amargura”.

Quem lhe ofereceu refúgio foi a ex-sogra, a quem define como ‘uma mulher justa’. Voltou a trabalhar e Fernando passava o dia na casa de parentes e conhecidos. Desde então, decidiu que nunca mais colocaria homem nenhum dentro de casa. A partir daquele momento seria ela e o filho.

“Tava na hora do Fernando ter a casa dele”

Antes de Abuse vir ao mundo, Dona Zilda passou por cinco abortos espontâneos. “Para ter esse menino precisei ficar internada no HC [Hospital das Clínicas] até ele nascer”. Quando o filho nasceu, diz que ficou “boba”, cuidar dele era a prioridade de sua vida.

Aposentada há dois anos, trabalhou numa mesma casa com carteira assinada por 43 anos e chegou a morar na casa dos patrões por um tempo. “Criei meu filho lá, as crianças chamavam ele de irmão”. A trabalhadora considera o casal de filhos dos chefes como seus filhos também. Numa das paredes da sala, há uma foto deles pendurada.

“Coisas que eu não tive na infância, o Fernando teve”, diz a mãe. Ela conta que o filho assistia televisão sentado no sofá, enquanto ela, durante a infância, só podia assistir sentada no chão. Outra diferença era no momento da alimentação. “Eu fui comer na mesa com a minha patroa depois de 30 anos que eu estava lá. Tinha a minha mesinha na cozinha e a Lia [filha da patroa] vinha comer comigo, mas o Fernando ia comer na mesa”.

Os chefes chegaram a colocar Fernando em uma escola particular, “deu três meses, o Fernando teve que sair”, em razão de situações racistas que sofreu. Quando o menino completou 12 anos, Dona Zilda conseguiu comprar um terreno, em Osasco, onde construiu a casa que vive hoje. “Tava na hora do Fernando ter a casa dele”, comenta. “Surgiu a opção para comprar uma casa na favela”, então pediu ajuda aos patrões, que emprestaram o dinheiro.

Fã de basquete e dos Racionais Mc´s

Seu menino cresceu e chegou aos 1,90m de altura. Gostava de jogar basquete e colecionava figurinhas e pôsteres de jogadores norte-americanos. O fascínio do filho ainda é presente na casa em que mora até hoje. Logo na estante da sala, Dona Zilda guarda as medalhas que ganhou ao longo da vida. Inteligente e bom em matemática, ela não tinha muito do que reclamar, a não ser o fato de ser são paulino, o que desagradava a corinthiana.

Rapaz de muitos amigos, em um de seus cadernos um deles escreveu: “adorei ter te conhecido e ficarmos amigos, gosto muito de você”. Não é à toa que, no enterro do menino, vieram muitas pessoas que Dona Zilda nem conhecia, mas que lamentavam sua morte e destacavam o quanto era querido pela vizinhança.

Preocupada, a mãe aconselhava o filho a não andar com quem vendia drogas e sempre respeitar os vizinhos. As recomendações não o livraram de abordagens policiais violentas. Certa vez, pediu que o filho comprasse cigarro pra ela. O menino havia perdido o RG e, por isso, carregava um protocolo do documento. Abuse demorou a voltar para casa e a mãe acabou dormindo. No dia seguinte, foi até o quarto dele, que relatou ter sido parado por policiais. Perguntaram se ele estava com drogas, bateram nele e rasgaram o protocolo. “Mãe nenhuma tem filho para polícia bater”, reforça.

Na vida adulta, ele chegou a servir o exército, trabalhou em lava-rápido, mercado e como pintor. Amante do rap nacional, Racionais Mc’s era uma das trilhas sonoras do seu dia a dia. De tanto comprar os discos para o filho, ela também passou a gostar das músicas do grupo. Depois de sua morte, acabou doando os álbuns e ficou com apenas dois.

Hoje, não consegue escutar as letras, principalmente as do disco Sobrevivendo no Inferno, de 1997, pois revive a dor da perda. Apesar disso, confessa ter vontade de conhecer o rapper Mano Brown. Um dos grupos mais tradicionais do rap no Brasil, os álbuns são conhecidos por retratar a condição de desigualdade, racismo e violência policial vivenciada nas periferias da cidade de São Paulo. A abertura da música ‘Capítulo 4, versículo 3’ é um exemplo dessa narrativa:

“… 60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”

“Ninguém está preparado para isso”

A conversa para esta entrevista aconteceu em maio de 2022, numa manhã fria e, em muitos aspectos, voltar para aquela manhã de quinta-feira, quando seu menino ainda estava lá, é uma forma de alívio. A parede amarela pintada por Fernando permanece do mesmo jeito, assim como seu quadro de criança permanece pendurado em uma delas. Tudo está no mesmo lugar, com exceção da cachorra que o acompanhou até o portão naquela noite, a cadela faleceu na semana anterior à entrevista.

Desde a violência que sofreu como mãe e como cidadã, a vida de Dona Zilda e das outras mães tomou outro rumo. Embora não se conhecessem antes da chacina, a união entre elas é um motivo para continuar. Dona Zilda sempre é procurada por outras integrantes quando precisam de ajuda e costuma mobilizar esforços em busca de doações de fraldas e alimentos para apoiar aquelas que precisam. “É isso que me deixa de pé. Fico tão preocupada com a dor do outro, que a minha dá uma amenizada. Se não fosse isso, acho hoje estaria até com depressão”.

No último julgamento relativo à chacina, em fevereiro de 2022, o policial militar Victor Cristilder Silva Santos e o guarda Sérgio Manhanhã, receberam a anulação de suas sentenças. Em março de 2018, o policial havia sido condenado a 119 anos de prisão, já o guarda foi julgado em setembro de 2017 e condenado a 100 anos de reclusão. Os outros dois envolvidos, Fabrício Emmanuel Eleutério e Thiago Barbosa Henklain, também passaram pelo tribunal, em 2017, e receberam sentenças de 255 anos e 247 anos, respectivamente.

Para Dona Zilda, a luta por justiça continua. “A sensação que eu tenho é que isso não acabou. Eu sou muito devota das almas que têm sede de justiça”, afirma convicta.

“A justiça certa é o que a gente quer. O mal já foi feito. Estamos fazendo isso para não acontecer de novo, mas, infelizmente, aparecem mais mães perdendo [os filhos]. Às vezes, tenho a impressão que estamos enxugando gelo. Não é por mim [que eu luto], é porque sou a voz de muitas mães, eu falo por elas”.

Todos os anos, no dia do seu aniversário, sua casa recebe jornalistas e outras pessoas que ajudaram a cobrar autoridades e a divulgar o caso. Cozinhar um bom prato de feijoada anualmente é seu jeito de agradecer. Perguntada se se considera uma ativista, ela diz: “falta muito, estou engatinhando, estou aprendendo. Mas a turma fala que eu sou líder e ativista. To caminhando e fazendo minha parte, porque, na verdade, ninguém está preparado para isso”.