Miriam Duarte Pereira

Miriam Duarte Pereira
Projetos

“A periferia é um cárcere a céu aberto, o povo já nasce com algemas”

Miriam Duarte Pereira teve seus três filhos internados e torturados na FEBEM, instituição criada durante a ditadura civil-militar para punir crianças e adolescentes a partir de 12 anos

por Amanda Stabile
Do Nós, mulheres da periferia para o Memórias da Ditadura

Chove nos olhos de Miriam Duarte Pereira, assim como aconteceu há 22 anos, quando, do portão de sua casa, ouviu a notícia de que seu primeiro menino havia sido assassinado. Era 27 de março de 2000, um dia que ela relembra nos mínimos detalhes, como se o amanhã nunca tivesse chegado e ela ainda estivesse esperando Jhones no portão.

Na época, o garoto tinha apenas 17 anos. O racismo estrutural fez mais uma vítima. Mais um jovem impedido de chegar à fase adulta. Além de sua mãe, a partida precoce de Jhones deixou para trás os corações arrasados de seu pai e dos dois irmãos mais novos.

Miriam: do ventre à luta

Dona Miriam deu à luz cedo. Em 1982, aos 19 anos, já segurava o mais velho nos braços; em 1984, sentia os chutes de Michael na barriga; e, em 1985, Miguel veio ao mundo. Para complementar a renda do marido, motorista de ônibus, Miriam foi manicure e faxineira, mas sua maior ocupação sempre foi o cuidado.

Após perder a mãe, teve de cuidar das crianças, do marido, da casa, dos dois irmãos e até de seu pai. Descendente de cearenses, mineiros e indígenas, ela foi criada em Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo, bairro em que também viu seus meninos crescerem e desbravarem as ruas da periferia.

Seja pela proximidade dos nascimentos ou pelos ensinamentos de Miriam, seus filhos sempre foram muito apegados uns aos outros. Uma diversão dos pequenos era dançar e cantar junto à mãe. Na época, o grupo porto-riquenho Menudo fazia sucesso e, ao som de “Não se reprima”, os quatro faziam a festa na sala de casa. Infelizmente, eles descobririam cedo que o verbo “reprimir” sempre faria parte de suas vidas – e seria imposto pelo vocabulário do Estado.

Da margem às grades

“O meu mais velho, quando tinha 12 anos, já começou a dar um pouquinho mais de trabalho”, conta Miriam. Para evitar que Jhones se envolvesse com o que considerava “amizades erradas”, ela deixou que o menino trabalhasse na empresa de reciclagem da tia. Mas sempre o levava e buscava em todos os compromissos.

Quando ele completou 14 anos, a mãe conseguiu matriculá-lo em um curso gratuito de eletricista. Porém, como a nova escola estava há 30 minutos a pé de sua casa, Miriam já não conseguia acompanhá-lo. “Por esses caminhos ele foi pegando amizade, se relacionando com a molecada. Com 15 anos conheceu as drogas”, conta.

Em 1998, aos 16 anos, Jhones foi internado pela primeira vez na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo (FEBEM), rebatizada, em 2006, como Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), após o sancionamento da Lei 12.469/06. Isso ocorreu após cometer pequenos roubos para sustentar o vício.

As FEBEMs foram criadas durante a ditadura militar, em 1976, para punir adolescentes a partir de 12 anos de idade, acusados de problemas de conduta. Desde a década de 1990, a instituição já era alvo de denúncias de tortura, surras e espancamentos.

Nem o choro é livre

Sua primeira visita à instituição em que o filho estava internado deixou Miriam em choque. Os meninos estavam sujos e com mal cheiro. Quando a viu, Jhones imediatamente a abraçou e cochichou em seu ouvido: “pelo amor de Deus, você não pode chorar aqui. Porque se você chorar, eu vou sofrer. Eles espancam se a mãe chora”. Como em um passe de mágica, a nuvem que pairava nos olhos de Miriam se dissipou. As lágrimas fizeram o caminho inverso.

Após 15 dias, a internação de Jhones progrediu para a Liberdade Assistida (LA) – uma medida que permite que o adolescente não perca seu convívio familiar e comunitário, mas que determina um acompanhamento sistemático. Porém, como ele já era dependente químico e não aceitava tratamento, não conseguia administrar o horário e as regras. Depois de 4 meses em LA, voltou para a FEBEM.

Neste período, Michael, aos 15 anos, acabou sendo internado na mesma unidade que o irmão, mas em uma ala diferente. “O Jhones ficou muito emocionado de saber que o Michael estava lá e queria ver o irmão dele de todo jeito”, conta a mãe.

Já fazia quatro meses que os meninos que nasceram quase grudados não se viam. O mais velho arrumou um jeito de entrar na outra ala com o nome do irmão. “Eles se abraçaram muito, só que pagaram um preço muito alto por isso. Molharam o corpo deles e deram choques”, recorda Miriam com lágrimas nos olhos. E essa foi apenas uma das torturas que relataram para a mãe.

Quanto vale uma vida negra?

Em 1999, após uma rebelião, Jhones conseguiu fugir. Em outubro, Miriam tomou a decisão de interná-lo em uma clínica de reabilitação paga por um benefício do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA). Porém, estar ali não isentou Jhones de ser acusado do homicídio de um policial, em fevereiro de 2000. A sorte foi que a testemunha enfatizou sua inocência.

Em 12 de março, o adolescente fugiu da clínica e não queria ver a mãe porque achava que seria mais uma decepção para ela. Mas Miriam o encontrou pelas ruas do bairro, o abraçou e foram juntos para casa. Após passar três dias na rua, o menino voltou no dia 24.

“Eu falei: ‘olha, eu vou trancar essa casa e você não vai sair’”, conta a mãe. Entretanto, ele aproveitou a brecha deixada por algumas vizinhas que chamaram Miriam no portão. “Rapidinho ele se arrumou, passou entre a gente, me deu um beijo e outro nas minhas vizinhas”, recorda.

Ficou então mais três dias sem notícias do filho, mas decidiu que, após sua aula – ela havia voltado a estudar – sairia à procura de Jhones. Apesar da distância, o cordão umbilical que os ligava há 17 anos ainda parecia intacto. “Quando deu umas 17h20, na escola, eu senti um impacto na minha nuca, aquela quentura”, lembra.

Após o fim das aulas, correu para deixar a mochila em casa e partir em busca de seu mais velho. Enquanto trancava a porta, um rapaz a chamou no portão: “Miriam, mataram o Jhones lá em Santo André”. Demorou alguns segundos para a ficha cair.

Quando chegou no necrotério, apenas pelo pé de fora do lençol já sabia que aquele era o corpo do seu menino. Conta que ele ainda estava quentinho na hora em que ela lhe deu um beijo no rosto. “Pode passar o tempo que for, mas o luto não passa. Porque a partir do momento que mata o teu filho, te mata também”, chora.

Jhones era conhecido dos policiais que o chamavam “neguinho”. Segundo a mãe, foram pedir dinheiro para o menino e disseram que, caso não desse, iriam colocá-lo de volta na FEBEM. Com medo, o adolescente decidiu roubar um carro, mas não sabia que o dono também era policial. “Ele não foi homem pra dar um tiro na perna, no braço. Deu um único tiro de execução na nuca”, conta Miriam indignada.

Cárcere a céu aberto

A maternidade é para sempre e não é uma tarefa fácil, especialmente nas periferias. “O seu filho completa certa idade e você já fica com medo, porque a polícia já vai revistar, bater documento. Na periferia não tem liberdade, é um cárcere a céu aberto. O povo já nasce com algemas”, desabafa Miriam.

De seus filhos, Miguel foi o único que terminou o ensino médio e até se inscreveu para fazer um curso de processamento de dados. Falava para a mãe que queria ser advogado. Também não dormia fora de casa, nem usava drogas. Mas foi o que entrou mais cedo na FEBEM, aos 14 anos.

Miguel ficou em uma unidade diferente da dos irmãos, para crianças e adolescentes de 12 a 14 anos. Passou pela instituição sete vezes: nas primeiras, sempre ficou por pouco tempo; na última, a juíza determinou que ficasse por um ano e oito meses.

Três anos depois, quando o menino tinha 17 anos, Miriam viu o pior dia de sua vida se repetir. Lembra de tudo da noite anterior: de seus filhos escutando Racionais MC’s, da conversa que teve com o caçula. “Foi um papo bem gostoso. Era o último, né?”, lamenta.

No dia seguinte, Miriam fez a comida favorita do menino para o almoço – carne moída com abobrinha – enquanto ele estava sentado na calçada com o irmão. Quando os chamou para comer, Michael disse que Miguel tinha ido dar uma volta de moto e que ia esperar o irmão para almoçar.

Logo ouviram um burburinho na rua de casa: eram os vizinhos gritando que Miguel havia sido morto. Todos saíram correndo. Miriam travou. Ficou com medo de ver se seu caçula estava muito machucado. Mas na periferia, tudo se sabe. Tudo te contam.

“Vieram me falar que o cara matou o Miguel porque ele estava andando na moto dele. Meu filho pegou a moto emprestada de um amigo, que pegou emprestado de um primo, que era esse cara. Ele viu o Miguel de moto e deu três tiros nas costas e três tiros no peito”, lembra.

Sobrevivente

Michael foi o único que conseguiu chegar à idade adulta. Sobreviveu à FEBEM e, de 2011 a 2018, fez parte dos mais de 700 mil presos que colocam o Brasil em terceiro lugar no ranking de população carcerária. “Se eu fosse o presidente do Brasil eu ia ter vergonha de ver a quantidade de pessoas presas. É o fardo do fracasso. Quanto mais pessoas presas tem, mais fracassado o governo é”, esbraveja Miriam.

Porém, por causa de tantas torturas que sofreu, Michel hoje é uma pessoa com deficiência. Ele teve dois AVCs [acidente vascular cerebral] isquêmicos. Aos 38 anos, tem cegueira periférica, não escuta do ouvido direito e tem dificuldades para formar frases.

A luta continua

Desde que Jhones foi internado na FEBEM pela primeira vez, em 1998, Miriam luta pelos direitos humanos dos adolescentes internados. Na fila das visitas, conheceu Railda Alves, que entregava um papel da Associação de Mães da FEBEM. As duas fundaram a Associação de Amigos/as e familiares de presos/as (AMPARAR).

A organização, com sede na Zona Leste, dá apoio social e assessoria jurídica aos familiares de pessoas presas, especialmente às mães que também são punidas e criminalizadas pelo sistema e pela sociedade. A AMPARAR também realiza rodas de conversa para a troca de experiências e discussão de desafios comuns; além da organização e realização de seminário sobre prisão provisória e encarceramento em massa.

“Nós começamos com o trabalho nas filas de visita e dos ônibus. Elas nos procuram, acolhemos, e mostramos para elas que são seres humanos e merecem respeito. É todo um processo”, conta Miriam.

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