Edmur Péricles Camargo, conhecido como Gauchão, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1944, para o qual trabalhou como jornalista em diversas publicações partidárias. Exilou-se no Uruguai depois do golpe militar, em abril de 1964. Três anos depois retornou ao Brasil. Acompanhou Carlos Marighella na cisão do partido e ingressou na recém fundada Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de resistência armada à ditadura.
Em junho de 1969, decidiu se desligar da organização e sair de São Paulo. Criou a organização M3G (Marx, Mao, Marighella e Guevara) e, através dela, realizou pelo menos cinco assaltos a bancos, no Rio Grande do Sul. Acabou preso nas dependências do Dops em Porto Alegre, e foi um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, sequestrado no Brasil pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Em seguida, foi para o Chile do presidente Salvador Allende, onde viveu oficialmente como exilado político. Continuou em contato permanente com outros brasileiros no exílio, atuando na resistência. Em 16 de junho de 1971, embarcou num voo de carreira da Lan-Chile para o Uruguai, com escala na cidade de Buenos Aires. Nunca mais foi visto.
Em 2013, a Comissão Nacional da Verdade divulgou estudo reconhecendo que a Força Aérea Brasileira (FAB) foi responsável pelo desaparecimento de Gauchão, em 1971. Ele foi capturado pelos militares na Argentina, com o auxílio de autoridades daquele país e informantes uruguaios. A última informação que se tem de seu paradeiro é de que embarcou em um avião da FAB rumo ao Brasil.
Tal ação confirma que o governo brasileiro mantinha relações de cooperação com outros regimes militares latino-americanos ainda antes de se tornar pública a existência da Operação Condor, no ano de 1975. A Operação Condor era uma coordenação internacional entre as ditaduras do Cone Sul e a CIA, agência de espionagem e inteligência dos Estados Unidos. Foi criada com o objetivo de organizar a repressão a opositores dessas ditaduras, o que possibilitou a perseguição e a eliminação de lideranças de esquerda fora de seus territórios nacionais, como no caso de Edmur.
Edmur Péricles Camargo foi preso em abril de 1970 e banido do país, após o sequestro do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, quando 70 presos políticos foram trocados pelo diplomata. Foi para o Chile com os demais banidos, onde permaneceu até junho de 1971. Naquela época, a preocupação com a movimentação do grande número de asilados no Chile de Allende já não estava limitada às esferas de segurança e despontara também na agenda diplomática. Telegramas trocados entre a Secretaria de Estado (Ministério das Relações Exteriores – MRE) e a Embaixada em Buenos Aires, em janeiro de 1971, com o índice “Coordenação de medidas contra a subversão: Brasil-Argentina” trazem informações sobre as conversações entre as chancelarias dos dois países sobre a possibilidade de ser estabelecida uma adequada coordenação entre as autoridades competentes de ambos os países, em caráter confidencial, tendente a acentuar o controle de agentes extremistas, de seus deslocamentos, localização e elementos de luta. A proposta, que partiu dos argentinos, envolveria os canais diplomáticos: o embaixador João Hermes Pereira de Araujo relatou que o diretor-geral de Informações da chancelaria argentina sugeriu “que a troca de informações proposta poderia, a seu ver, processar-se no plano chancelaria-embaixada, em Brasília e em Buenos Aires”, que o sistema “deveria ter em vista máxima rapidez na troca das informações, a fim de ser eficaz”, e reiterou “a importância que o Palácio San Martin atribui a uma mais íntima e permanente colaboração com o Governo brasileiro em assunto de tão grande atualidade”. No dia 16 de junho de 1971, Péricles Camargo deixou Santiago do Chile com destino a Montevidéu para um tratamento ocular, uma vez que as torturas a que fora submetido no Brasil haviam comprometido sua visão. Os dados dessa viagem haviam sido comunicados, na véspera, pelo cônsul do Brasil em Santiago, embaixador Mellilo Moreira de Mello, em telegrama secreto-urgentíssimo à Secretaria de Estado. Por sua vez, segundo a informação no 68, de 16 de junho de 1971, um adido da aeronáutica na Embaixada brasileira em Montevidéu recebeu uma comunicação, através do posto Correio Aéreo Nacional (CAN) de Montevidéu, que – com seu próprio nome Edmur Péricles Camargo Villaça – o brasileiro estava viajando para o Uruguai pela LAN-Chile. Em contato com a companhia aérea, o adido verificou que o avião faria escala na Argentina e, após ligação à Embaixada do Brasil em Buenos Aires, deslocou-se àquela cidade “a fim de saber das providências que ali seriam tomadas”. Segundo o adido, “a polícia argentina prendeu Edmur no Aeroporto de Ezeiza e o entregou às autoridades brasileiras”. Em outra informação secreta, de n o 17, o adido do Exército em Buenos Aires é também notificado de que, em 16 de junho de 1971, Péricles Camargo “passaria por Buenos Aires, com destino a Montevidéu, viajando em avião da LAN-Chile, sendo-lhe solicitado verificar a possibilidade de obter das autoridades argentinas sua prisão e entrega às autoridades brasileiras”. O contato imediato com autoridades da Coordenação da Polícia Federal Argentina foi feito e, em resposta, chegou a comunicação de que “a Brigada da Repressão já tinha montado a operação”. O próprio adido que relata a prisão nesse documento foi ao aeroporto de Ezeiza e constatou que os elementos da polícia federal argentina estavam no aeroporto e lá teriam detido Péricles Camargo. Assim, de acordo com o informe, entraram em contato com as autoridades argentinas para detalhes de sua entrega às autoridades brasileiras. Foi providenciado um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que chegou em Buenos Aires na madrugada do dia 17 e, algumas horas depois, partiu para a base militar do Galeão, no Rio de Janeiro. “Por volta das 5h do dia 17, chegou na zona militar do aeroporto um avião da FAB para o qual foi transferido o terrorista [Péricles Camargo] tendo o avião decolado por volta das 6h45”. O avião da FAB levava Péricles Camargo “acompanhado do coronel Lana, adido aeronáutico e do secretário Nery que seguiu de Brasília no mesmo avião”. O diplomata Paulo Sérgio Nery, morto em 1979, exercia na época a função de diretor-executivo do Centro de Informações do Exterior (Ciex), lotado na Secretaria-Geral do MRE. Miguel Cunha Lana era coronel-aviador e exercia as funções de adido militar aeronáutico em Buenos Aires. De acordo com esse mesmo documento, “o adido da aeronáutica e seu substituto”, que estavam em Buenos Aires, teriam solucionado “todos os problemas referentes à autorização para sobrevoo, utilização da área militar aérea e etc.”. Os agentes apreenderam os papéis que estavam com Edmur, tais como o seu salvo conduto, a documentação do serviço de saúde do Chile e uma carta do almirante Cândido Aragão que deveria ser entregue em mãos ao presidente João Goulart. A informação n o 68 registra que “o agente do Itamaraty conseguiu obter uma carta de apresentação do general Aragão para um contato de Edmur em Montevidéu”. Sobre a prisão de Péricles Camargo, o adido de Montevidéu ainda comenta que “apesar das grandes dificuldades que se tem para acompanhar esse pessoal no Uruguai, no caso presente, parece que a polícia argentina se precipitou pois, no momento em que o fato venha a público, será difícil justificar a entrega e o recebimento de um banido”. A relação de passageiros da LAN-Chile veio com a observação de que Edmur Camargo foi detido pela polícia de Ezeiza. O adido naval do Brasil no Chile, identificado como Jordão, em documento do Ciex, recebeu “a informação da viagem de Edmur Péricles Camargo graças à infiltração do Serviço Argentino na LAN-Chile e que, de posse da informação, transmitira a mesma ao adido aeronáutico em Buenos Aires, o qual montara a „operação prisão‟ de Edmur”. De acordo com o Jornal de Serviço de 2 de novembro de 1970, o capitão de mar e guerra Benedito Jordão de Andrade, adido naval no Chile, representou o governo brasileiro nas solenidades de posse do presidente daquele país, Salvador Allende. Segundo o Diário Oficial, em 19 de dezembro de 1971, Benedito Jordão de Andrade foi exonerado do cargo de adido naval junto à Embaixada do Brasil no Chile, com sede em Santiago. O Ciex, em índice dedicado às “Atividades de asilados e foragidos brasileiros”, distribuiu aos demais órgãos da comunidade de informações – CIE, SNI-AC, 2a seção/EME, 2a seção/EMAER, Cenimar etc. – a informação no 429, timbrada como secreta, datada de 21 de outubro de 1971, em que informava a entrega de um documento às autoridades chilenas por parte de exilados e refugiados brasileiros dando conta do desaparecimento de Edmur Péricles Camargo e informando que […] até esta data [agosto de 1971] EDMUR CAMARGO não mais se comunicou com qualquer de seus companheiros, os quais têm recebido informes [de companheiros em Montevidéu e Buenos Aires], de que EDMUR CAMARGO teria sido preso pelas autoridades argentinas e brasileiras e entregue à ditadura brasileira.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Edmur Péricles Camargo desapareceu a partir de ações perpetradas por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964. As circunstâncias do desaparecimento de Edmur Péricles Camargo evidenciam a articulação entre os serviços policiais brasileiros e argentinos e o trabalho clandestino desses para monitorar, perseguir e sequestrar exilados políticos no Cone Sul. Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso para a localização de seus restos mortais, identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.