Atuação Profissional
militarOrganização
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)Filiação
Gertrudes da Conceição Lamarca e Antônio LamarcaData e Local de Nascimento
27/10/1937, Rio de Janeiro (RJ)Data e Local de Morte
17/9/1971, Ipupiara (BA)“Ousar lutar, ousar vencer”. Era assim que Carlos Lamarca, um dos principais lutadores da oposição armada à ditadura no Brasil, terminava seus escritos. Ele entrou na carreira militar bastante cedo e, alguns anos após o golpe, chegou a ser capitão do Exército brasileiro. Mas, em 1969, já engajado na luta armada contra o regime, desertou e foi expulso da corporação no ano seguinte. Considerado em certo momento o inimigo número um do regime, foi duramente perseguido e fuzilado pelos militares.
Um momento marcante de sua formação foi em 1962, quando foi enviado para integrar as forças de paz da ONU na região de Gaza (Palestina), de onde voltou 18 meses depois. Uma experiência que marcou sua vida e sensibilizou o jovem contra as injustiças sociais.
Em 1967, foi promovido a capitão e, dois anos depois, já militante da organização que daria origem à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organizou um grupo de militares do 4º Regimento de Infantaria para desertarem daquela unidade, levando consigo 63 fuzis e metralhadoras leves que deveriam servir para a luta armada contra a ditadura.
Para manter a segurança da família, Lamarca mandou a mulher e os dois filhos para Cuba, onde viveram por dez anos. Em 1959, ele havia se casado secretamente com Maria Pavan, sua irmã de criação, que já esperava o primeiro filho do casal.
Na VPR, conheceu Iara Iavelberg, por quem se apaixonou imediatamente. Os dois passaram a viver juntos em diversos aparelhos pelo país. As cartas de amor que trocaram nesse período são conhecidas, assim como o famoso diário do guerrilheiro, com textos dirigidos a ela.
Dentre suas ações contra a ditadura, está o sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, em 1970, que resultou na libertação de 70 presos políticos dos porões da ditadura, além de vários assaltos a bancos para financiar as ações do grupo armado. Viveu quase um ano clandestino em São Paulo, participando de ações de guerrilha urbana, até se instalar no Vale do Ribeira, com um reduzido grupo de militantes, para realizar treinamentos militares.
O local foi descoberto pelos órgãos de segurança em abril de 1970 e cercado por tropas do Exército e da Polícia Militar. Uma gigantesca operação de cerco se prolongou por 41 dias, mas, após dois choques armados, o pequeno grupo guerrilheiro, sob a liderança do capitão rebelde, conseguiu escapar rumo a São Paulo.
Em março de 1971, seis meses antes de sua morte, desligou-se da VPR para se integrar ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), que o deslocou para o sertão da Bahia, no município de Brotas de Macaúbas, com a finalidade de estabelecer uma base da organização naquela região.
Em 17 de setembro de 1971, Lamarca foi fuzilado por integrantes da “Operação Pajuçara”, em Ipupiara, no interior da Bahia. Essa operação, iniciada em agosto de 1971, entrou para a história como uma das mais violentas, sobretudo em Buritis, que se tornou à época um verdadeiro campo de concentração, com torturas e assassinatos em praça pública, diante da população. Lamarca tinha 34 anos quando morreu.
Mais de 30 anos depois, em 2007, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu a patente de coronel do Exército a Carlos Lamarca e o status de perseguidos políticos à sua primeira esposa, Maria Pavan Lamarca, e a seus dois filhos, que passaram a ter direito a pensão e indenização. Em 2010, entretanto, acatando ação do Clube Militar, a juíza Cláudia Maria Pereira Bastos Neiva suspendeu a decisão da Comissão de Anistia. A questão continua indefinida.
Em 1980, Emiliano José e Oldack Miranda escreveram a biografia “Lamarca: o capitão da guerrilha”. E em 1994 o diretor Sérgio Rezende lançou o filme Lamarca, baseado no livro.
“Brasil, 26 de julho de 1969
Aos meus filhos
Vivo falando de vocês com meus companheiros, eles estão longe dos filhos também e falam nos filhos deles. Um só é o desejo de todos nós, é que nossos filhos sejam revolucionários. O que é um revolucionário? É toda a pessoa que ama todos os povos, ama a Humanidade, tem uma imensa capacidade de amar, ama a justiça, a igualdade. Mas ele tem de odiar também, odiar os que impedem que o revolucionário ame, porque é uma necessidade amar. Odiar aos que odeiam o povo, a Humanidade, a justiça social. Odiar aos que dominam e exploram o povo, odiar aos que corrompem, ameaçam e alienam as mentes, aos que degradam a Humanidade, aos injustos, falsos, demagogos, covardes”
“Sonhei com você. Acordei num misto de alegria e tristeza – compreendi que te desejava. (…) Sinto-me oco. Esse estado não posso superar, o que posso fazer? No fim, um cocô atolado”.
“Sonhando com você, acordo no meio da noite e volto a sonhar. Sonhei com você até nas vias de fato, pode? Ora, por que o sonho? Necessidade sexual não pode ser só, já sonhei inclusive nesse nível com você. Como, até mesmo dormindo contigo sonhei, só posso concluir que a minha cuca é mais complicada do que eu pensava”.
“Brasil, 26 de julho de 1969
Minha querida esposa,
O meu pensamento vive voltado para essa ilha, constantemente, mas o dia de hoje se reveste de especial atenção, de meditação, o pensamento que aflora é iniciar – cumpre iniciar a luta. Ainda não recebi notícias.
A organização a que pertenço, a Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-Palmares), que nasceu da fusão da Vanguarda Popular Revolucionária com o Comando de Libertação Nacional, não tem canal de comunicação com a ilha, só quem tem é o Marighella.
Aí pensam que ele é o líder e o comandante da revolução no Brasil. É engano, primeiro porque não tem qualidades para isso, é egoísta, personalista e desleal, e segundo porque a organização dele (não tem nome – usa-se o nome dele) é mal estruturada; muitos militantes dele estão passando para a nossa organização.
A concepção brasileira da luta é a seguinte: quem imprime a luta no campo são as cidades. O fundamental é a luta no campo, mas, se ela iniciar e for derrotada no campo, a organização bem estruturada nas grandes cidades, dentro de pouco tempo, pode reiniciar. A nossa organização é a única que está bem estruturada nas grandes cidade e já começamos a organizar no campo. Antes não havia nada e nenhuma organização sozinha poderia levar o processo à frente – agora vamos.”
Carlos Lamarca foi morto por agentes do Estado brasileiro no dia 17 de setembro de 1971, em Ipupiara (BA), na região de Brotas de Macaúbas, sertão da Bahia, na chamada “Operação Pajussara”, que contou com diversas forças de segurança em uma ação conjunta para capturar o “Capitão da Guerrilha”, como ficou conhecido o líder da VPR e, posteriormente, do MR-8.
O comandante do DOI-CODI de Salvador e Chefe da 2ª Seção do Estado-Maior da 6ª Região Militar, major Nilton de Albuquerque Cerqueira, reuniu um efetivo de mais de duzentos agentes militares e policiais, de órgãos como o Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP), Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), Força Aérea Brasileira (FAB), Departamento de Polícia Federal da Bahia (DPF/BA) e Polícia Militar da Bahia (PM/BA), que invadiram a região de Buriti Cristalino, no dia 28 de agosto de 1971, em busca de Lamarca.
O episódio, uma das maiores ofensivas dos órgãos de repressão da ditadura brasileira, marcou, com o seu desfecho, o início de intensa disputa pela memória e pela história de Lamarca, que foi um dos principais líderes da luta armada contra a ditadura. As investigações realizadas pelos órgãos do Estado brasileiro permitiram constatar que era falsa a versão divulgada oficialmente à época dos fatos. De acordo com essa versão, Lamarca teria morrido em um tiroteio travado contra as forças de segurança. Foi morto, com Lamarca, José Campos Barreto, o Zequinha, que havia sido uma importante liderança sindical em Osasco (SP), nas greves de 1968.
A versão dos acontecimentos que culminaram na morte dos dois ganhou força à época. Os jornais noticiaram a morte de Lamarca como uma grande vitória das forças de segurança contra a “subversão” ao regime militar. O Jornal do Brasil, por exemplo, na edição de domingo, 19 de setembro de 1971, destacava que, com a morte de Lamarca, chegava ao fim a “trilogia de líderes subversivos brasileiros”, em alusão aos militantes Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, mortos em 1969 e 1970, respectivamente. A Tarde, periódico publicado em Salvador, reforçou a versão divulgada pelo Exército, destacando, na edição de 20 de setembro, que não houve feridos no tiroteio travado entre Lamarca e os agentes das forças de segurança, “apesar de ter Carlos Lamarca puxado o revólver, na tentativa de evitar que agentes de segurança se aproximassem dele”. O Globo registrou que a “morte de Lamarca representava muito mais que a eliminação de um líder terrorista, significa o fim de um mito”.
A partir de pesquisas realizadas em arquivos como o do Serviço Nacional de Informações e de outros órgãos da repressão, de novas informações surgidas de depoimentos, além do parecer elaborado pelos peritos Celso Nenevê e Nelson Massini, após a exumação dos restos mortais de Carlos Lamarca, em 18 de junho de 1996, ficou evidente que a versão divulgada à época dos fatos não se sustentava. A operação militar que logrou localizar e matar Carlos Lamarca se inseriu em um complexo conjunto de ações militares. As forças de segurança recorreram a um conjunto de ações irregulares e ilegais, baseadas na prática de prisões arbitrárias e ilegais, tortura e execuções.
O caminho percorrido por esses agentes do Estado até a execução de Lamarca foi marcado por perseguições, tortura e mortes, como as de Iara Iavelberg, José Campos Barreto (Zequinha), Luiz Antônio Santa Bárbara, Otoniel Campos Barreto, Nilda Carvalho Cunha e Esmeraldina Carvalho Cunha. A investida de agentes do DOI-CODI de Salvador sobre o apartamento em que se encontrava Iara Iavelberg, companheira de Lamarca, em 20 de agosto de 1971, que resultou na morte dela e possibilitou a prisão de militantes que estavam no local, foi etapa decisiva na busca por Lamarca. No passo seguinte, o Comandante do DOI-CODI e chefe da 2ª Seção do Estado-Maior da 6ª Região Militar, major Nilton de Albuquerque Cerqueira, após reunir um grande aparato militar e policial, invadiu a região de Buriti Cristalino, em 28 de agosto de 1971.
Zequinha Barreto havia levado Lamarca para esta região, Buriti Cristalino, em Brotas de Macaúbas (BA), sua terra natal. Seu pai, o lavrador José de Araújo Barreto, então com 64 anos, tinha uma propriedade no local, e Zequinha e seus familiares eram conhecidos de todos. Recém integrados ao MR-8, vindos da VPR, Zequinha havia pedido autorização para levar Lamarca para lá, onde pretendiam estabelecer as bases para uma futura guerrilha rural. Em poucas semanas, no entanto, foram localizados. No dia 28 de agosto, na invasão de policiais do DOPS-SP, comandados pelo delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, e da equipe do CISA à propriedade da família Barreto, Olderico Campos Barreto, um dos irmãos de Zequinha, foi ferido no rosto; outro irmão, Otoniel, de 20 anos, foi morto com vários tiros.
Os agentes da repressão buscavam por Lamarca e, para isso, torturaram Olderico Campos Barreto, agrediram sua família e aterrorizaram os vizinhos e outras pessoas da localidade. Com o barulho de tiros, helicópteros e deslocamento de tropas, Lamarca e Zequinha abandonaram o acampamento onde se encontravam, a cerca de dois quilômetros da casa dos Barreto. Empreenderam fuga pelo sertão durante 20 dias. Exaustos, feridos e cada vez mais cercados pelas tropas da operação Pajussara, chegaram ao pequeno povoado de Pintada, em Ipupiara (BA).
Moradores do vilarejo contaram ter visto Zequinha carregando nos ombros o ex-capitão Lamarca, que se encontrava bastante debilitado. Segundo Olival Barreto, irmão mais novo de Zequinha, o paradeiro dos militantes foi informado pelo juiz do Fórum de Brotas de Macaúbas, Antônio Barbosa, às tropas do Exército: “[…] a gente só ficava ouvindo, ó, Zequinha e Lamarca passou em tal lugar, passaram em Ibotirama, passaram no Mocambo, passaram não sei aonde. Só que, por infelicidade, Zequinha foi passar num local que chama Três Reses, onde têm parentes nossos, e um infeliz, lá dos Três Reses, que é até primo da gente… Então, esse rapaz [Antônio de Virgílio] foi avisar, em Brotas, que Zequinha tinha passado lá, com o Lamarca. Como o Exército tinha oferecido esses prêmios, dinheiro, pra quem denunciasse, esse rapaz foi avisar em Brotas. E o juiz [Antônio Barbosa], lá em Brotas, pega um carro e vai até Seabra, e vai ligar, lá pra 6ª Região do Exército, pra voltarem. Aí, eles já voltaram com certeza de que eles já estavam lá.”
Na tarde do dia 17 de setembro, enquanto descansavam à sombra de uma baraúna, árvore típica da região, Lamarca e Zequinha foram surpreendidos pela tropa comandada pelo major Nilton de Albuquerque Cerqueira. O relatório da Operação Pajussara, elaborado pela 2ª Seção do Quartel-General da 6ª Região Militar do IV Exército, sugere que Lamarca e Zequinha, ao serem finalmente localizados, não ofereceram resistência: “O segundo [Lamarca] levantou-se, tentando também correr, carregando um saco. Esse foi abatido quinze metros à frente, caindo no solo, enquanto o que dera o alarme [Zequinha Barreto], apesar de ferido, prosseguiu na fuga. […] Pouco adiante, ‘Jessé’ [Zequinha Barreto] virou-se para o elemento que o perseguia, atirando-lhe uma pedra, recebendo então a última rajada. […] A condição física do combatente de A G, dos quadros, inclusive dos oficiais superiores, é também base para o sucesso da operação. […]” Esta afirmativa é baseada também no estado físico em que se apresentavam os dois terroristas ao final da ação, totalmente esgotados.
Lamarca foi executado por agentes do Estado brasileiro com sete tiros, disparados de diversas direções, inclusive por trás, o que atesta que foi cercado. Segundo moradores, seu corpo e o de Zequinha Barreto foram colocados à exposição pública na praça de Brotas de Macaúbas, onde foram chutados por militares e policiais, que se gabavam de tê-los executado. Depois, foram colocados em um helicóptero e levados para a capital, Salvador, onde foram sepultados, no cemitério do Campo Santo.
Diligência da CNV a Salvador, entre os dias 4 e 5 de agosto de 2014, localizou funcionários do cemitério responsáveis pelo sepultamento de Lamarca. Passadas décadas, eles lembravam com precisão do enterro de Lamarca, tamanho o aparato repressivo que cercou o episódio. Um deles, que colocou uma lápide na sepultura de Lamarca, foi repreendido por isso. Eles contaram que por dois anos, até a exumação de seus restos mortais, em setembro de 1973, quando foram trasladados para o Rio de Janeiro, agentes se revezaram, vigiando o túmulo, para evitar que ali virasse um local de reverência. O coronel Luiz Arthur de Carvalho, Delegado Regional da Polícia Federal, foi o responsável pelos sepultamentos de Lamarca, Zequinha Barreto e seu irmão, Otoniel.
Em 1996, foi feita nova exumação, para que fosse feita perícia, por solicitação da família. O parecer do perito Celso Nenevê e do legista Nelson Massini foi decisivo para o processo de Lamarca (038/96) voltar à pauta da CEMDP. Segundo os peritos, Lamarca, cercado, recebeu tiros de ambos os lados, inclusive por trás, sendo que o tiro fatal foi de cima para baixo. O que nos leva à presunção de que, provavelmente abatido pelas costas, caído, foi mortalmente atingido. O processo de Lamarca foi deferido em 11 de setembro de 1996, com parecer de Suzana Keninger Lisbôa, por 5 votos a favor e 2 contra.
Foi decisiva para o caso a interpretação do artigo 4º da Lei nº 9.140/95, que considerou que o legislador, ao se referir às mortes “em dependências policiais ou assemelhadas”, buscava definir que a pessoa em questão estava na esfera do domínio dos autores dos crimes. Sob o domínio de agentes do Estado brasileiro, Lamarca e Zequinha Barreto deveriam ter sido detidos, nunca executados. A morte de Carlos Lamarca é também relatada no capítulo 13, “Casos Emblemáticos”, deste Relatório.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Carlos Lamarca foi morto por ação de agentes do Estado brasileiro em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela Ditadura Militar implantada no país a partir de abril de 1964.
Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias de morte para a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.
O Estado brasileiro utilizou uma série de mecanismos para amedrontar a população, sobretudo aqueles que não estivessem de acordo com as medidas ditatoriais. Conheça os reflexos do aparato repressivo e os focos de resistência na sociedade.