Cara a cara - 2 - jul. a dez. 78

Atuação Profissional

estudante

Organização

Ação Libertadora Nacional (ALN)

Filiação

Blima Reicher e Berel Reizel Reicher

Data e Local de Nascimento

20/2/1949, São Paulo (SP)

Data e Local de Morte

20/1/1972, São Paulo (SP)

Gelson Reicher

Gelson Reicher

Gelson Reicher morreu no dia 20 de janeiro de 1972, juntamente com seu companheiro de militância da Ação Libertadora Nacional (ALN), Alex de Paula Xavier Pereira, em ação perpetrada por agentes do DOI-CODI.

 

A nota oficial, distribuída pelos órgãos de segurança, seria divulgada pela imprensa dois dias após o suposto confronto armado. A edição de 22 de janeiro de 1972, de O Estado de São Paulo, informava que “O volks de placa CK 4848 corre pela Avenida República do Líbano. Em um cruzamento, o motorista não respeita o sinal vermelho e quase atropela uma senhora que leva uma criança no colo. Pouco depois, o cabo Silas Bispo Feche, da PM, que participa de uma patrulha, manda o carro parar. Quando o volks para, saem do carro o motorista e seu acompanhante atirando contra o cabo e seus companheiros; os policiais também atiram. Depois de alguns minutos três pessoas estão mortas, uma outra ferida. Os mortos são o cabo da Polícia Militar e os ocupantes do volks, terroristas Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher”.

Desde o início da década de 1970, Gelson Reicher e Alex de Paula eram acusados pelos órgãos de segurança de participação em diversas ações armadas. Ambos tinham suas fotos estampadas em cartazes que os identificavam como “Bandidos Terroristas Procurados”. O trabalho de desvendamento das circunstâncias que culminaram nas mortes de Gelson e Alex ganhou impulso, contraditoriamente, com a nota que fora produzida pelos órgãos de repressão para simular a efetiva dinâmica dos fatos relacionados a essas mortes.

Na nota distribuída à imprensa, havia a informação dos codinomes que os dois militantes utilizavam na clandestinidade. Foi com esses nomes que os agentes do Estado registraram a entrada dos corpos de Gelson e Alex no Instituto Médico Legal; Gelson Reicher como “Emiliano Sessa” e Alex Xavier como “João Maria de Freitas”. Com esses nomes falsos, também enterraram os dois militantes como indigentes no cemitério de Perus em São Paulo; e, contraditoriamente, graças a essa informação, foi possível encontrar os corpos registrados com os mencionados nomes falsos.

Os responsáveis pelas autópsias dos dois militantes foram os médicos legistas Issac Abramovitch e Abeylard de Queiroz Orsini. Isaac Abramovitch era vizinho da família de Gelson Reicher e o conhecia desde menino. Quando convidado a depor, em 7 de fevereiro de 1991, na Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a vala clandestina do Cemitério de Perus, Isaac alegou que, embora conhecesse Gelson, não o reconheceu quando realizou a autópsia; não podendo, portanto, evitar que fosse sepultado com nome falso. Entretanto, de acordo com o testemunho do pai de Gelson, Berel Reicher, foi o próprio Isaac que avisou a família sobre a morte do militante, o que auxiliou os familiares a resgatar o corpo e, em poucos dias, sepultá-lo no cemitério israelita.

Transcorridos mais de 40 anos, as investigações sobre esse episódio, realizadas ao longo das últimas décadas, e as pesquisas e estudos realizados pela Comissão Nacional da Verdade revelaram a existência de inúmeros elementos de convicção que permitem apontar que a versão divulgada à época não se sustenta. Desde a divulgação da nota oficial comunicando as mortes de Gelson e Alex, os familiares desses militantes levantaram dúvidas acerca da dinâmica das ações que culminaram em suas mortes. Quando os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP) foram abertos, em 1992, foram localizadas fotos dos corpos de Alex e Gelson, gerando novos questionamentos.

A visível presença de inúmeros hematomas e escoriações incitou a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos a encaminhar cópia das fotografias encontradas para o médico legista Nelson Massini e para o perito criminal Celso Nenevê, com o pedido de realização de um parecer. O Dr. Celso Nenevê descreveu todas as lesões produzidas por tiro, concluindo não poder restabelecer a dinâmica do evento por falta de elementos. Gelson recebera dez tiros: três na cabeça, três no tronco, um em cada braço e cada perna. Mas, de forma idêntica ao constatado no caso de Alex, a foto do corpo de Gelson mostrava lesões não descritas pela autópsia realizada em 1972.

Nas palavras do Dr. Nenevê: “[…] na região orbitária direita, na pálpebra superior direita, e na região frontal direita a presença de edema traumático, aparentemente associado a uma extensa equimose. A formação desta lesão apresenta características da ação contundente de algum instrumento […] Na linha da região zigomática, manchas escuras, com características genéricas de lesões, sem que se possa definir suas naturezas, e características do(s) instrumento(s) que as produziram, não se encontrando elas descritas no Laudo. O mesmo pode ser observado para a região deltoidea esquerda e região mamária direita.”

Além do destaque para a ausência de registro das escoriações mencionadas, o Dr. Celso Nenevê destacou a probabilidade de que após Gelson Reicher ter seus quatro membros atingidos por projéteis de arma de fogo, “não oferecia mais condições de resistência armada nem tampouco de fuga.” As conclusões do perito ressaltam que “o edema e a equimose verificados na região orbital direita e circunvizinhas, se de natureza contusa, as quais para sua formação necessitam, obrigatoriamente, do contato físico entre o instrumento e a vítima, por conseguinte, de grande proximidade. Este ferimento não coaduna com o quadro comumente verificado em tiroteios, sendo possível que esta lesão contusa tenha sido produzida após as lesões perfuro-contusas anteriormente relacionadas, em circunstâncias que não estão esclarecidas, uma vez que a vítima provavelmente apresentava-se dominada em decorrência dos ferimentos em seus membros”.

Pode-se concluir, dessa forma, que Gelson Reicher teria sido submetido à tortura. As análises do Dr. Massini destacam que o laudo do IML, assinado por Issac Abramovitch e Abeylard de Queiroz Orsini, optou por descrever apenas os ferimentos produzidos por projétil de arma de fogo e não registrou nenhuma referência às equimoses e escoriações que se faziam visíveis nos corpos dos dois militantes. A partir da divulgação do laudo elaborado pelo Dr. Massini, que atestava a prática de tortura, novas pesquisas foram empreendidas.

A narrativa que havia sido apresentada pelos órgãos de segurança sustentava que o encontro entre os agentes da repressão e os militantes da ALN fora casual, culminando em troca de tiros e na morte de Gelson e Alex. Por intermédio de pesquisas realizadas nos arquivos do DOPS/SP, foram localizados documentos que revelam aspectos que indicam a fragilidade da versão oficial. Essa evidência se relaciona ao fato de que os corpos de Gelson Reicher e Alex de Paula deram entrada no IML trajando apenas cuecas, o que sugere que os militantes, após o suposto confronto armado do dia 20 de janeiro de 1972, foram conduzidos para outro local, antes de ingressarem no Instituto Médico-Legal.

 

No dia 24 de fevereiro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em parceria com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, realizou audiência pública sobre a morte de oito militantes da ALN mortos em São Paulo. Dentre as vítimas da ação repressiva do Estado encontrava-se Gelson Reicher. A equipe de peritos da CNV, que havia produzido laudo pericial sobre as circunstâncias da morte do militante Alex de Paula Xavier Pereira, apresentou análise comparativa com o caso de Gelson Reicher. As análises comparativas entre o laudo de necropsia, que fora concluído no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, em 1972, pelos legistas Issac Abramovitch e Abeylard de Queiroz Orsini, e o laudo produzido por Nelson Massini em 1996, revelaram incontornáveis contradições.

Também corrobora com a desconstrução da versão apresentada pela ditadura, o depoimento prestado à CNV pelo juiz auditor Nelson da Silva Machado Guimarães, no dia 30 de julho de 2014, quando foi indagado a respeito da ocultação dos cadáveres de Alex de Paula Xavier e Gelson Reicher, nos seguintes termos:

CNV – É, Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher. O senhor quis extinguir a punibilidade deles, para não aceitar uma denúncia e um processo contra pessoas que o senhor já tinha verificado que estavam mortas.

Nelson da Silva Machado Guimarães – Mas em que eu me baseio aí?

CNV – O senhor tem esse processo, e eu tenho aqui os documentos, que eu posso lhe passar daqui a pouco. Nesse processo, o senhor solicitou tanto à autoridade policial militar como à autoridade policial, ao DOPS, um delegado, o senhor solicitou o atestado…

Nelson da Silva Machado Guimarães – De óbito.

CNV – …de óbito. Esse atestado de óbito o senhor solicitou indicando o nome verdadeiro. Veio o atestado com o nome falso, que era como os atestados eram feitos, para viabilizar essa política de desaparecimento. O senhor extinguiu a punibilidade com base num atestado falso, e sabia que era falso. O senhor sabia que era falso, porque o senhor deu o nome verdadeiro dele, para pedir. Tem aqui a documentação. (…).

 

Além de demonstrar a participação do Poder Judiciário no processo de ocultação de cadáver dos dois militantes, o depoimento confirma que os órgãos de segurança tinham conhecimento da verdadeira identidade dos militantes quando fizeram o sepultamento com os nomes falsos, demonstrando a ação deliberada que visava impedir ou dificultar fortemente que as famílias localizassem os corpos.

Os restos mortais de Gelson Reicher foram enterrados como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP), sendo posteriormente trasladados por sua família para o Cemitério Israelita em São Paulo.

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