Raimundo Nonato Paz

Atuação Profissional

Camponês

Filiação

Francisca Fernandes Paz e Antônio Paz Ferino

Data e Local de Nascimento

Canindé (CE)

Data e Local de Morte

2/1/1971, Canindé (CE)

Raimundo Nonato Paz

Raimundo Nonato Paz

Raimundo Nonato Paz foi morto no dia 2 de janeiro de 1971, por agentes do DOPS/CE, no episódio conhecido como “Chacina de Japuara”. Nessa data, um grupo de aproximadamente 23 policiais, sob o comando de Cid Martus, cercou a residência da vítima e, de acordo com matéria do jornal O Povo, de 4 de janeiro de 1971, “armados de metralhadoras, fuzis mosquetões e revolveres empreendem no momento a mais rigorosa diligência no município de Canindé”.

A violência sofrida pelos moradores da fazenda Japuara, no município de Canindé, no Ceará, é emblemática do período em que se exacerbou no meio rural a repressão do regime militar, com a articulação entre as ações de violência comandadas pelo latifúndio e as promovidas pelos agentes do Estado, por meio das forças policiais. Os abusos praticados pelo novo proprietário da fazenda, Júlio Cesar Campos, sobre os moradores começaram no final dos anos 1960 e se intensificaram no começo dos anos 1970.

Os principais confrontos, conhecidos como a “Chacina de Japuara”, ocorreram em dois momentos no dia 2 de janeiro de 1971, conforme testemunho do camponês Francisco Blaudes de Sousa Barros, em seu livro Japuara, um relato das entranhas do conflito. Os conflitos ocorreram em 1968 quando a herdeira da fazenda, Hebe Braga Barroso, vendeu a propriedade para Júlio Cesar Campos.

O primeiro dono da área, Anastácio Braga Barroso, ainda em vida, havia arrendado a terra a seu sócio, Firmino da Silva Amorim, que, por sua vez, deixou-a sob a administração de Pio Nogueira, pai de Francisco Blaudes, que se tornou o líder da resistência dos moradores. Ao colocar a propriedade à venda, a herdeira, Hebe Braga Barroso, assumiu o compromisso de dar prioridade ao antigo ocupante, mas descumpriu o acordo verbal, vendendo a área a outro interessado. O ocupante deu entrada na Justiça em uma ação preferencial de compra e em outra exigindo indenização pelas benfeitorias.

O novo proprietário solicitou emissão de posse e ganhou a questão. Em 1969, foi expedido o mandado contra o ocupante e contra os moradores-parceiros. A ação atingiu 59 trabalhadores rurais e suas famílias. O mandado judicial concedia 24 horas para que deixassem a área. Um advogado designado pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece) dedicou-se à causa dos moradores, obtendo uma decisão favorável que sustou a ação de despejo.

Em 2/1/1971 ocorreram então os dois confrontos mais graves. No primeiro episódio, houve uma tentativa de despejar os moradores à força. O proprietário da fazenda contratou homens que trabalhavam nas frentes de emergência contra a seca para destelhar as casas e destruir as benfeitorias. No mesmo dia, o delegado do DOPS/CE, Cid Martus, acompanhado de policiais militares, invadiu a fazenda. Houve resistência dos moradores, que se defendiam com foices, facões e outros instrumentos de trabalho. Sem conseguir demover os agressores, o administrador da fazenda e líder do grupo, Pio Nogueira, foi para dentro de sua casa, que estava sendo destelhada, para impedir sua destruição.

Para tentar evitar o pior, disparou sua arma calibre 20 para o alto, ferindo um peão, que caiu sobre uma cerca de varas e morreu. Joaquim Rodrigues, o Piau, era um alistado nas frentes de emergência. Os peões começaram a se reunir em frente à casa. Temendo uma investida, Pio fez vários outros disparos para o alto. O grupo se dispersou e deixou a fazenda. No segundo episódio, em um confronto entre o mesmo delegado do DOPS/CE, policiais militares e agricultores, três pessoas perderam a vida: o próprio delegado, o agricultor Raimundo Nonato Paz e o policial militar Jorge Paulo de Freitas.

O conflito começou quando da chegada do delegado, acompanhado de um grupo de policiais militares armados. De forma violenta, o delegado interpelou Raimundo, um camponês de 60 anos de idade na ocasião, sobre onde se encontrava o líder do grupo, Pio Nogueira. Depois disso, humilhou o trabalhador. No livro Japuara, um relato das entranhas do conflito (2013), Francisco Blaudes de Sousa Barros descreveu o momento em que Raimundo foi interpelado pelo delegado, que tentou arrebatar-lhe bruscamente a foice das mãos.

Com dificuldades para responder por ter ficado muito nervoso e ser gago, Raimundo seguiu segurando firmemente seu instrumento de trabalho. De acordo com a narrativa, Incomodado com a resistência de alguém supostamente frágil, mas com tamanha firmeza, enquanto falava, num ímpeto, o delegado engatilhou seu revólver calibre 38 na face do velho e disparou à queima-roupa. O projétil se alojou na maçã do rosto do trabalhador, abaixo da cavidade do olho.

Depois de alvejado e desorientado pelo ferimento, Raimundo atingiu o delegado com a foice. Os policiais dispararam no trabalhador e no final do confronto, o camponês e o delegado morreram. De acordo com o livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (2007), um exame necroscópico foi realizado no corpo do trabalhador, na Delegacia de Polícia de Canindé, em 26/2/1972, assinado pelos médicos Waldez Diógenes Sampaio e Antônio Lins Mello, que confirmaram a morte do agricultor em tiroteio, atestando “parada cardíaca” como causa da morte.

A necropsia foi feita por solicitação do capitão da PM Antônio Carlos Alves Paiva, encarregado do Inquérito Policial Militar (IPM). Depois do confronto, os líderes camponeses que resistiram à ação policial se esconderam na mata. As mulheres e filhos enfrentaram espancamentos, humilhações e perseguições. Um dos casos registrados foram os maus-tratos sofridos pelo menino Francisco de Souza Barros, de nove anos, registrados no livro Brasil Nunca Mais: interrogado pela polícia sobre onde estava seu pai, ele foi sequestrado e obrigado a carregar armas pesadas mata adentro, ficando com graves sequelas emocionais.

O grupo de moradores formado por Francisco Nogueira Barros, o Pio; seu filho, Francisco Blaudes de Sousa Barros; Joaquim Abreu, Alfredo Ramos Fernandes, o Alfredo 21; Antonio Soares Mariano, o Antonio Mundoca; e Luís Mariano da Silva, o Luís Mundoca, ficou vários dias na mata. Ao ser resgatado, o grupo ficou preso por cerca de um mês em uma unidade do Corpo de Bombeiros, quando se iniciou o IPM.

Depois, o caso foi remetido à Justiça comum. Dez trabalhadores foram indiciados como implicados nas mortes de um carreteiro, do soldado e do delegado. Ninguém foi indiciado pela morte do camponês Raimundo Nonato Paz. Dias depois, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece) encaminhou pedido de desapropriação da fazenda ao recém-criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

A solicitação estava fundamentada na eclosão do próprio conflito, na irregularidade da venda da área e no fato de que 80% das benfeitorias existentes pertenciam aos moradores-parceiros. Temendo que o episódio estimulasse novas ações de resistência na região, o presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, assinou decreto desapropriando 3.645 hectares em benefício de 39 famílias. A resistência da fazenda Japuara converteu-se, assim, no primeiro caso de desapropriação para fins de Reforma Agrária, em pleno regime militar.

O registro feito pela Gazeta de Notícias, na data da desapropriação da fazenda, em 25 de março de 1971, destacou que […] o decreto baseou-se na exposição de motivos do Ministério da Agricultura que lembrou os lamentáveis feitos ali ocorridos recentemente, quando ocupantes da área, há vários anos, com arrendamento e parceria, foram vítimas da violência por parte do proprietário Júlio Cesar Campos.

Diz ainda o ministro que a área se caracteriza como de forte tensão social. Estudiosos apontaram tratar-se de uma “medida acauteladora” do governo Médici, traduzindo o temor, por parte do regime militar, de que o caso da fazenda Japuara se estendesse a outras propriedades em situação de conflito. A princípio os jornais tratavam os camponeses como “bárbaros”, que “ceifaram a vida de policiais trabalhadores”.

Depois reconheceram que eles “apenas agiram em legítima defesa para defenderem seus lares dos algozes contratados pelo fazendeiro”. E, ao final, entenderam que “tão justa foi sua causa que o Governo Federal os beneficiou com a primeira Reforma Agrária do Estado do Ceará”.

Em 1978, o próprio assessor jurídico da Fetraece, Lindolfo Cordeiro, que prestou assistência aos trabalhadores rurais no episódio, foi preso pelo governo militar e assassinado ao sair da prisão, a mando de latifundiários. Passados quase 15 anos do conflito, em 1984, todos os camponeses indiciados no processo foram absolvidos com base na tese de legítima defesa e negativa de autoria dos crimes. Os restos mortais de Raimundo Nonato Paz foram enterrados no cemitério de Canindé, no Ceará.

Sobre
Saiba mais sobre o projeto, realizadores e seus objetivos.
Apoio ao Educador
Aplique o conteúdo sobre a ditadura no Brasil na sala de aula para ampliar o estudo da História do Brasil e a formação da cidadania com o suporte de sequências didáticas e a promoção do protagonismo dos alunos. Consulte sequências didáticas que poderão auxiliar os educadores a trabalharem o tema da ditadura militar brasileira em sala de aula.
Projetos
Visite a galeria de projetos especiais realizados pelo Instituto Vladimir Herzog na promoção da Memória, Verdade e Justiça no Brasil, e na difusão de histórias inspiradoras de luta.
Acervo
Explore uma diversidade de conteúdos relacionados ao período da ditadura militar brasileira que ocorreu entre 1964 e 1985.
Memória Verdade e Justiça
Os direitos da Justiça de Transição promovem o reconhecimento e lidam com o legado de atrocidades de um passado violento e de um presente e futuro que precisam ser diferentes, para que se possa dizer: “nunca mais!”. Conheça algumas medidas tomadas pelo Estado e sociedade brasileiros para lidar com o que restou da ditadura de 1964.
Cultura e Sociedade
Apesar do conservadorismo e da violência do regime, a produção cultural brasileira durante a ditadura militar se notabilizou pelo engajamento político e desejo de mudança. Conheça um pouco mais sobre as influências do período em diversos setores da sociedade.
Repressão e Resistência

O Estado brasileiro utilizou uma série de mecanismos para amedrontar a população, sobretudo aqueles que não estivessem de acordo com as medidas ditatoriais. Conheça os reflexos do aparato repressivo e os focos de resistência na sociedade.