A Abertura - Marcelo Vigneron
Vala de Perus: uma biografia. Por Camilo Vannuchi. Cap. 1 - A Abertura. Um repórter investigativo. Um funcionário público disposto a contar o que sabia.

1 – A Abertura

Projetos

Você me prende vivo, eu escapo morto.
De repente, olha eu de novo.
Perturbando a paz, exigindo troco.

Paulo César Pinheiro, em “Pesadelo”

— Você tem certeza que quer entrar aí?

Caco notou algum sarcasmo na pergunta feita pelo diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Rubens Brasil Maluf, no final de 1987.

— É importante — disse o repórter. — Os dados que eu procuro estão aí dentro.

— Você é quem sabe, mas antes vou te mostrar o lugar — assentiu o diretor. — Algo me diz que você vai se arrepender.

Quase três anos após aquela conversa, Caco Barcellos ainda frequentava aquela sala, no segundo andar do IML, no número 151 da Rua Teodoro Sampaio, colado à Faculdade de Medicina da USP, em Pinheiros. Ia normalmente à noite, após o expediente na televisão, e passava algumas horas debruçado sobre laudos periciais.

Era um muquifo, embora a placa fixada sobre a porta de entrada indicasse dissesse “museu”. A sujeira, a sensação de clausura e a permanente desorganização o faziam sentir saudade não apenas das reportagens na rua, seu habitat natural, mas também da redação.

A sede da TV Globo em São Paulo não era nenhum exemplo de conforto ou modernidade em 1990. Ocupava um predinho de três andares na Praça Marechal Deodoro, bem em frente à recém-inaugurada estação de metrô. Era um imóvel antigo, geminado, estreito e comprido, com elementos neoclássicos na fachada e vista para os pilares do Minhocão. Uma escada conduzia à redação, no primeiro andar. Caco costumava saltar os degraus de dois em dois, atrasado para entregar a fita com a matéria a tempo de ser exibida no telejornal da noite. Tudo muito rústico, apertado, com mesas de madeira vincadas pelo tempo, estantes abarrotadas e caixas de filme empilhadas atrás da porta.

Quem assistia ao Jornal Nacional ou ao Globo Repórter não desconfiaria que as instalações da emissora eram tão precárias. Ainda assim, comparada ao “museu” do IML, o predinho da Marechal parecia um palácio.

A sala era uma combinação de arquivo com espaço museológico, carente de limpeza e ventilação, onde estavam guardados todos os registros do IML desde os anos 1920. Nos cálculos do diretor, 60 mil documentos eram arquivados ali a cada ano.

Arquivados não é exatamente a palavra. Deveria haver dois milhões de fichas, algumas em estantes, outras sobre as mesas e mais um bocado espalhado pelo chão.

Quando começou a frequentar o muquifo, no comecinho de 1988, uma das primeiras providências tomadas pelo jornalista, com a ajuda de um estagiário, foi colocar em ordem cronológica aquela montanha de pastas e papéis. O resultado: duas paredes de 7 metros de comprimento por 3 metros de altura tomadas de alto a baixo pela papelada.

Para além do cheiro de mofo e da espessa camada de poeira que cobria aquele material, o que tornava especialmente insalubre o dia-a-dia naquela sala era uma horripilante coleção de pedaços humanos armazenados em grandes potes de vidro num armário sem portas. Mãos, pés, olhos, fetos e outros fragmentos imersos em formol eram expostos numa espécie de cristaleira macabra.

Tudo era macabro naquele pardieiro. Álbuns imensos com fotografias de cadáveres, ampliações feitas para evidenciar os detalhes mais fúnebres, instrumentos usados em exames de necropsia no início do século XX, máquinas de escrever emperradas, pedaços de macas e cadeiras quebradas completavam o cenário, uma espécie de sótão abandonado de filme de terror.

Caco Barcellos tinha 40 anos de idade e frequentava aquele lugar desde o final de 1987. Gaúcho radicado em São Paulo em 1975, quando ingressou no Jornal da Tarde, Caco passara pelas redações das revistas IstoÉ e Veja e também atuara na imprensa alternativa antes de pendurar no pescoço um crachá da Globo, em 1985. Especializado em jornalismo policial, Caco tinha uma razão muito particular para fazer hora extra naquele lugar sinistro: nos intervalos entre as reportagens para a TV, investigava os homicídios praticados por policiais militares, atividade que ocupava quase todo seu tempo livre havia mais de cinco anos.

Seu objetivo era identificar todos os desconhecidos mortos pela Polícia Militar de São Paulo desde sua fundação, em 1970. Numa etapa seguinte, pretendia listar os campeões da pena de morte, ou seja, os oficiais com mais execuções nas costas. Caco partilhava da tese de que esses policiais agiam de forma deliberada quando executavam delinquentes. Ou seja: atiravam para matar. O que ele não sabia quando começou sua investigação, mas descobriria ao longo da pesquisa, é que, em mais da metade das vezes, a vítima não tinha passagem pela polícia nem era suspeita de nenhum roubo ou furto. Os matadores de bandidos, tratados como heróis por certos radialistas e políticos, não passavam de matadores de inocentes. Sete anos dedicados ao tema resultariam no livro Rota 66: a história da polícia que mata, lançado por Caco Barcellos em 1992.

Naquela sala pestilenta, Caco encontrou alguns dos principais insumos para sua pesquisa. Sobretudo, ali estavam os primeiros registros da chegada dos corpos, trazidos normalmente num rabecão do IML após requisição feita por algum delegado de polícia, e também os exames datiloscópicos, realizados pelos médicos do instituto. Por meio deles, Caco conseguia aferir o local de origem dos cadáveres, a cor da pele e a circunstância da morte, pelo menos segundo a versão oficial. Quando havia indicação de tiroteio ou resistência à prisão, por exemplo, ou quando os laudos descreviam dois ou mais ferimentos a bala, deflagrados à queima-roupa (com indícios de pólvora ao redor da perfuração) ou contra a cabeça ou as costas da vítima (sinal de que ela já estava rendida), então o caso era selecionado para ser melhor investigado.

Em mais da metade das vezes, as vítimas da PM de São Paulo eram pretas ou pardas e seus corpos tinham sido resgatados em hospitais da periferia. O esquema envolvia a colaboração de diretores de hospitais, que aceitavam receber as vítimas já mortas e confirmavam a versão divulgada pela corporação: “o bandido não resistiu aos ferimentos e veio a falecer ao dar entrada no pronto-socorro”. Essa tática era conhecida como “esquentar” o corpo. O policial responsável por aquela morte assumia a posição de alguém munido de boas intenções, disposto ao gesto humanitário de levar imediatamente o suspeito para o hospital a fim de socorrê-lo. No boletim de ocorrência, o policial era sempre apresentado como vítima do suposto delinquente, que resistira à voz de prisão e atirara contra o agente. O morto era o culpado da própria morte.

Outro padrão percebido por Caco dizia respeito ao destino do cadáver. Os corpos das vítimas da PM eram quase sempre enterrados às pressas, como indigentes, mesmo que portassem documento na ocasião de sua morte. Quanto mais rapidamente o corpo sumisse, e sem o conhecimento da respectiva família, menores as chances de revolta ou de algum jornalista incauto resolver denunciar a brutalidade da ação. Para isso, era preciso lançar mão de expedientes pouco ortodoxos. Um deles era sumir com os documentos da vítima. Outra era alterar a identidade ao fazer o registro do sepultamento para dificultar a localização. Aparentemente, o esquema de morte e ocultação de cadáveres das vítimas da PM contava também com a conivência do serviço funerário. Ninguém em sã consciência ousaria negar um pedido da Rota.

Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar era o nome completo da Rota, a tropa de elite da PM de São Paulo nos anos 1970 e 1980. Exercia uma espécie de monopólio da pena de morte no Estado. Em dez anos, entre 1981 e 1991, o número de homicídios com envolvimento da PM no Estado saltaria de 300 por ano para mais de mil. Conhecer os nomes dessas vítimas, saber as circunstâncias dessas mortes e ouvir as histórias dessas famílias virou uma espécie de obsessão de Caco na década de 1980. E o museu do IML poderia dar as respostas que ele buscava.

Em meados de 1990, pesquisando aquela papelada, Caco encontrou um detalhe intrigante. Em alguns dos laudos amontoados na salinha do segundo andar, em particular nos processos datados de 1971 a 1973 e referentes a encaminhamentos feitos ao IML pelo Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, havia uma letra rabiscada a mão com lápis vermelho. Uma letra T.

Após dois anos fazendo plantão no muquifo, Caco gozava da confiança de alguns funcionários do IML. Levou aqueles papéis para um deles.

— O que significa essa marca? — perguntou. — A mesma marca aparece em diversos laudos do início dos anos 1970. De 1971 a 1974, para ser exato. Depois para.

— É T de terrorista — o informante revelou.

Terrorista era a forma com que a repressão se referia aos integrantes de organizações armadas de oposição à ditadura militar. Caco não ficou exatamente surpreso com aquela descoberta. Calejado após tantos anos analisando laudos e reportagens sobre letalidade policial e formas de repressão, o jornalista sabia que os militantes executados nos anos 1970 também teriam de passar pelo IML. Mas por que assinalar nos laudos sua condição de terroristas? Para quem seria aquele recado?

Os laudos marcados com a letra T tinham outras peculiaridades. Uma delas era o fato de que as vítimas assinaladas, embora jovens, eram quase todas brancas, enquanto as vítimas habituais da Rota eram quase todas pretas ou pardas. Outra peculiaridade era o destino dos corpos: a maioria, senão todos, tinha sido levada para o mesmo cemitério de Perus aonde eram conduzidos os mortos da polícia. E, segundo os laudos, teriam sido enterrados como indigentes, embora a maioria das fichas indicasse nome e filiação.

Caco percebeu que estava diante de documentos que poderiam indicar o paradeiro de alguns dos militantes políticos desaparecidos nos anos de chumbo, um tema ao qual ele ainda não havia se dedicado. O livro Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, trazia uma lista de 125 opositores do regime militar que tinham simplesmente sumido, apesar de testemunhas afirmarem que tinham sido vistos em algum órgão da repressão ou centro de tortura, como o DOI-Codi ou a Casa da Morte de Petrópolis. O número estimado de desaparecidos políticos, àquela altura, devia ser ainda maior.

Caco levou o caso para a Globo. Ele dificilmente conseguiria aproveitar aquele material no livro que estava escrevendo sobre as mortes cometidas pela Polícia Militar, uma vez que os “terroristas” não tinham sido vítimas da Rota nem da PM, mas poderia tratar daquela descoberta numa boa matéria para a TV. Seria um furo de reportagem, uma revelação inédita.

Sozinhos, aqueles laudos já justificariam uma boa matéria. Mas Caco queria mais. Aplicou sobre aqueles documentos a mesma lógica que adotara ao pesquisar os laudos das vítimas da PM: Como identificar essas pessoas? Como foram mortas? Quais as circunstâncias dessas mortes? Em poucos dias, separou as fichas de 158 cadáveres encaminhados ao IML por policiais do Dops entre 1970 e 1974. Em todas elas, a mesma explicação: mortos em tiroteio com órgãos de segurança. Caco anotou o que havia de identificação naquelas guias, a data de entrada no IML e a data e o local de destino.

Maurício Maia, produtor de jornalismo do Fantástico, na TV Globo, assumiu a tarefa de cruzar aqueles dados com as diferentes listas de desaparecidos políticos elaboradas até então, tanto em publicações como o Brasil: Nunca Mais quanto por grupos como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Embora os nomes constantes nas fichas fossem quase todos falsos, havia uma enorme coincidência de informações em parte significativa da lista. Vinte e oito corpos levados para Perus tinham dado entrada no IML exatamente nas datas prováveis de seu desaparecimento conforme as listas de mortos e desaparecidos. Desses, treze haviam sido localizados e trasladados pelas famílias para outros cemitérios ao longo das décadas de 1970 e 1980. Faltavam quinze.

Caco e Maurício pegaram o carro e foram até o cemitério. Como o rosto de Caco aparecia toda hora na TV, decidiram que Maurício iria sozinho até a administração e, sem se apresentar como funcionário da TV, pediria para consultar os livros dos primeiros anos da década de 1970. Abriu a lista de datas e nomes que havia preparado e pôs-se a pesquisar. Dali a uma hora, voltou ao carro.

— Os livros estão todos aí — Maurício contou. — Catorze desses corpos não têm destino certo. As ossadas foram exumadas e não se sabe para onde foram. Só se diz, laconicamente, “exumado na data tal”.

Para Caco, cada nova informação funcionava como um estímulo. Tinha o efeito de uma xícara de café, capaz de afastar o sono por um par de horas, ou de uma barra de chocolate: doce recompensa pelo esforço empenhado. Mais do que isso, era como se cada nova fase da investigação injetasse uma dose extra de adrenalina no jornalista. Quem é repórter investigativo por certo já sentiu essa pulsão. A descoberta de uma pista, o encontro com um novo informante, uma denúncia anônima, cada novidade fazia Caco mergulhar ainda mais fundo no trabalho, doze, treze, quinze horas por dia. Inclusive nos fins de semana.

Era um domingo quando o jornalista entrou pela primeira vez no Cemitério Dom Bosco, no distrito de Perus. Os fins de semana são sempre movimentados nos cemitérios. Mesmo nas tardes de julho, quando um vento frio costumava varrer o aclive suave da área destinada às sepulturas de Perus, familiares levavam flores, limpavam as placas de homenagem, arrancavam ervas daninhas. Em razão da pesquisa sobre as mortes da PM, Caco gostava de ir aos cemitérios aos domingos, justamente cogitando encontrar algum parente enlutado disposto a contar detalhes sobre a morte do filho, do neto ou do irmão. Desta vez, seu propósito era investigar as incongruências no caso dos “terroristas”. Levou ao cemitério os primeiros locais de sepultamento daqueles corpos, antes da exumação, e foi conferir o que existia em cada cova.

Como Caco previra, nenhuma sepultura coincidia. Nas covas onde teriam sido enterrados os cadáveres cujos laudos tinham sido assinalados com a letra T, havia outros corpos, de outras pessoas, sepultadas anos depois, conforme se podia ler nas placas de homenagem. Um sepultador explicou a ele que era assim mesmo, que os restos mortais eram exumados após três anos e reinumados no mesmo local, ou seja, enterrados novamente, num saco menor e num patamar um pouco mais fundo, de modo a abrir espaço para a chegada de outro caixão. E assim sucessivamente.

— Que ano foi enterrada a pessoa que o senhor procura? — ele quis saber.

— 1972.

— Xi, setenta e dois? É muito tempo. Já deve ter uns cinco ou seis cadáveres que chegaram depois dela na mesma cova.

— Mas e a placa com o nome?

— Quem chega para ser enterrado traz uma placa nova e a que tinha antes é descartada.

O que Caco não conseguia entender era a ausência absoluta de informações sobre o local de reinumação das ossadas mais antigas. Nos livros dos cemitérios, o caminho percorrido pelo cadáver é sempre registrado. Trata-se de um protocolo, uma exigência administrativa: “no dia tal, os restos mortais de fulano de tal foram exumados da cova x e reinumados na cova y”. Em Perus, essa norma não tinha sido observada. Pelo menos não nos anos 1970. Faltavam as datas e os locais de reinumação.

— E por que não há referência ao local de destino dessas ossadas? — o jornalista perguntou ao funcionário.

— Isso eu não sei dizer, não, senhor.

***

“Puta merda, o que esse jornalista tá fazendo aqui?”

Da janela da administração, Toninho viu o repórter da Globo conversando com os sepultadores bem ali, na entrada da quadra 2, e logo o reconheceu. Arrumou os fios do bigode com as pontas dos dedos e foi em direção a ele.

Antônio Pires Eustáquio tinha 43 anos, três a mais que o repórter, e era o chefe do Cemitério Dom Bosco desde 1978. Cuidava do lugar como se fosse um caseiro. Naquele momento, em julho de 1990, estava empenhado na construção de um ossário geral, uma grande galeria feita de alvenaria para a qual, vencido o prazo legal de três anos e um mês para a exumação dos corpos, seriam transferidas as ossadas dos indigentes e aquelas que não fossem retiradas pelas famílias.

Assim que o administrador se aproximou, os sepultadores se afastaram, intuindo que poderia sobrar para eles. Vai que escapa alguma coisa que não deveria ser dita. Toninho se apresentou e perguntou se Caco havia farejado algo ali para o noticiário.

Caco contou um pouco da pesquisa que estava fazendo sobre morte violenta em São Paulo e que havia se deparado com muitos personagens que tinham sido enterrados em Perus. Comentou que alguns dos mortos não estavam mais nas valas em que tinham sido enterrados, o que trazia alguma dificuldade para conferir informações.

Toninho foi enfático:

— Isso não é nada perto do que eu tenho pra te falar. Eu tenho a matéria que vai te consagrar.

Caco Barcellos desconfiou.

— E o que é?

— Vem comigo.

O administrador queria falar com o jornalista num lugar mais reservado, longe da vista dos funcionários e do corre-corre das crianças, uma tradição naquele cemitério, encravado num bairro periférico carente de áreas de lazer.

— Olha, você não vai conseguir encontrar as ossadas que você está procurando — Toninho afirmou. — Essas ossadas não estão mais nas covas originais.

Caco ouviu atento o relato do administrador.

— Existe um buraco aqui no cemitério, um ossário clandestino onde foram jogados os restos mortais de umas 1.500 pessoas, enterradas como indigentes, em 1976. Garanto pra você que esses corpos que você procura estão escondidos nesse buraco. São as pessoas que sumiram dos livros de registros.

O jornalista saiu do cemitério impressionado. Aquilo era grave. Muito grave. Prometeu voltar outro dia.

Naquela mesma noite, Caco telefonou para o editor do Globo Repórter, Narciso Kalili. Resumidamente, contou que as pesquisas no IML o haviam conduzido à descoberta dos laudos com a letra T de “terrorista” e que essas mesmas pessoas haviam desaparecido dentro do cemitério de Perus, na periferia de São Paulo. Contou a revelação feita pelo administrador e compartilhou com o editor a desconfiança de que aquele caso poderia jogar alguma luz sobre a busca pelos desaparecidos da ditadura.

— Vai atrás — Kalili respondeu. — Do que você precisa?

— Só preciso ficar mais uns dias nessa matéria, conversar melhor com esse Toninho e checar as informações que ele me passar.

Toninho, por sua vez, voltou para casa preocupado aquela noite. Ele não queria mais guardar aquele segredo. Sabia que aquelas ossadas precisavam ser reveladas e identificadas. Sentia um dever cívico, um clamor pela verdade, um impulso que o impelia a contar o que sabia e acabar com essa história de uma vez por todas. Era preciso agir, e um repórter conhecido como Caco Barcellos poderia ajudar. Ao mesmo tempo, Toninho temia a repercussão que aquela denúncia poderia suscitar. E se algum desafeto espalhasse que tinha sido ele o delator? E se houvesse alguma represália?

Por um momento, o administrador se arrependeu de ter contado. A ditadura havia acabado, mas ainda não tinha esfriado.

Quando Caco retornou ao cemitério, na terça-feira, Toninho não quis recebê-lo. Após alguma insistência do repórter, o atendeu e negou tudo. Dizia que não tinha falado nada daquilo no domingo anterior. Pronto: Toninho estava sendo ameaçado ou tinha se arrependido de dar com a língua nos dentes, o jornalista concluiu. E agora?

Constrangido, Caco avisou ao editor que a pauta havia caído, que o informante não tinha sustentado a história. Voltou no domingo seguinte, disposto a retomar os crimes da Rota e a tentar identificar alguma vítima ali.

— Preciso falar com você — Toninho o abordou. — Tenho informações sigilosas para lhe passar.

“Que cara maluco”, Caco pensou. “Acho que aos domingos ele bebe, fica meio alto e se enche de coragem. Ou então inventa essas histórias”.

Toninho repetiu com ele exatamente a mesma sequência da semana anterior. Os dois se afastaram das quadras para conversar, caminharam até próximo ao muro do cemitério, e Toninho contou sobre o ossário escondido, exatamente como fizera da outra vez.

— Toninho, você já mostrou esse lugar para mais alguém?

— Só pro Molina, um engenheiro do Rio que veio até aqui procurar o irmão.

— E quando foi isso?

— Faz muito tempo. Acho que em 1980 ou 1981. Foi logo depois da anistia.

— E o que você disse a ele?

— A mesma coisa que estou contando pra você. Só que ele foi mais curioso. Perguntou se eu poderia abrir um pedacinho da vala. Acho que ele é melhor repórter que você.

***

Naquela semana, Caco Barcellos começou a desenhar uma das muitas reportagens fascinantes e arriscadas que fizera ao longo da carreira. A disputa era acirrada. Em 1980, Caco fora feito refém na Nicarágua, confundido com um espião ao cobrir a guerra civil desencadeada pela revolução sandinista, que derrubara a ditadura da família Somoza no ano anterior. Em 1989, fora detido pelo Exército de Libertação Nacional da Colômbia enquanto investigava o sequestro de três engenheiros da Braspetro, mantidos em cativeiro no país vizinho para denunciar um governo que, segundo a organização guerrilheira, atentava contra a soberania nacional e permitia a exploração de suas riquezas a preço de banana por empresas estrangeiras, como a estatal subordinada à Petrobras.

Agora, o jornalista via-se diante dos escombros de uma outra guerra, apenas controlada com a volta dos civis ao poder em 1985 e a promulgação da Constituição Federal em 1988, mas que deixara pelo caminho um extenso repertório de mortes, muitas delas sob tortura, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres.

Caco sabia que aquela era uma oportunidade única de revelar informações preciosas que poderiam levar à localização de dezenas de desaparecidos. Impossível prever as reações que uma revelação como aquela poderia provocar nas Forças Armadas e em setores conservadores da política. Caco temia, sobretudo, pela carreira de Toninho. Quiçá pela vida do administrador.

Para dar seguimento à investigação, Caco precisaria entrevistar o tal Molina. Pegou uma lista telefônica do Rio de Janeiro e se preparou para ligar para todos os assinantes com aquele sobrenome. Logo na primeira tentativa, localizou quem ele buscava. Na mesma semana, foi até o Rio para encontrá-lo. O carro da reportagem buscou o engenheiro em Botafogo, no prédio da empresa em que ele trabalhava, e o levou até o Morro do Pasmado, onde foi feita a gravação. Gilberto Molina confirmou a história contada por Toninho. Ele não apenas tinha ido a Perus como havia visto as ossadas escondidas sob o gramado nos fundos do prédio da administração.

Ainda em 1979, Gilberto tivera acesso a documentos oficiais que confirmavam a morte de seu irmão mais novo, o militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) Flávio Carvalho Molina, aos 23 anos, em 1971. Um ofício assinado pelo então diretor do Dops, Romeu Tuma, revelava que Flávio havia falecido em 7 de novembro de 1971 e que seu corpo fora sepultado no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta, dois dias depois. Aquele papel comprovava a ocultação deliberada do cadáver, uma vez que a repressão conhecia não apenas seu codinome, mas também seu nome verdadeiro. Mesmo assim, Flávio fora enterrado como indigente, sem que nenhum familiar fosse comunicado.

Em 1981, Gilberto Molina aproveitou que estava em São Paulo por conta de um trabalho e tomou o trem rumo a Perus levando consigo o ofício assinado por Tuma. Se os restos mortais de seu irmão de fato estivessem naquele cemitério, conforme citado no documento do Dops, ele solicitaria imediatamente seu traslado para o jazigo da família, no Rio de Janeiro. Apresentou-se ao administrador e declinou os dois nomes de seu irmão, o verdadeiro e o falso. Uma anotação feita na página 33 do livro 3 do cemitério desfez qualquer dúvida: Álvaro Lopes Peralta tinha sido enterrado na cova número 14 da quadra 2 no dia 9 de novembro de 1971.

Emocionado, Gilberto perguntou ao administrador o procedimento para fazer o traslado dos restos mortais para o Rio.

— Senhor Gilberto — Toninho falava pausadamente, com a gravidade que o assunto exigia —, infelizmente não vai ser tão fácil fazer esse traslado.

O engenheiro quis saber a razão.

— O senhor está vendo aqui no livro que o corpo do seu irmão foi exumado no dia 11 de maio de 1976?

— Sim.

— Pois é. Isso significa que ele foi retirado da cova original nessa data. Esse é um procedimento regulamentar, que acontece com os corpos dos desconhecidos e não reclamados após três anos e 30 dias do sepultamento, sempre que o serviço funerário julga necessário abrir espaço nas quadras para novos enterros.

— Eu entendo. Mas o corpo foi recolocado em outro local, certo?

— Aí é que está. No livro só consta que os despojos do teu irmão foram exumados. Não há nenhuma informação sobre reinumação, o senhor percebe?

— Ele foi retirado da cova e não foi realocado em lugar nenhum, é isso?

— Vem comigo.

Toninho conduziu o engenheiro até a quadra 12 e mostrou a ele a cova 14, local da sepultura original. Em seguida, explicou que, normalmente, vencido o prazo regulamentar, os restos mortais são acondicionados num saco menor e enterrados no fundo da mesma sepultura para que outro caixão pudesse ocupar o espaço acima. Feito isso, acompanhou o engenheiro até uma área onde havia um grande cruzeiro branco, sobre um pedestal onde os fiéis acendiam velas, junto a um barranco atrás do prédio da administração, e contou a ele que, anos antes, entre 1975 e 1976, houvera uma exumação em massa nas quadras 1 e 2. Com uma característica peculiar: não havia registro do local de reinumação de nenhuma ossada.

Quando soube disso, Toninho, que ainda não era funcionário do cemitério na época da exumação em massa, contara um a um os nomes que tiveram seus despojos exumados entre 1975 e 1976 e sobre os quais não constava nenhuma informação referente a reinumação. Chegou ao número aproximado de 1.500 indigentes. Era como se todos eles tivessem sumido aos olhos do Estado. Eles estavam ali, mas não estavam. Haviam desaparecido pela segunda vez.

— Que absurdo — Molina não se conformava.

Em seguida, o administrador contou ao engenheiro que buscou saber a razão daqueles dados incompletos e que, por muito tempo, fora demovido da busca. “Não mexe com isso”, dizia um funcionário mais antigo. “Deixa pra lá”, dizia outro. Até que um deles, cansado da insistência de Toninho em fazer perguntas sobre aquele assunto, revelara o que sabia. “Essas ossadas que você procura estão lá na área do cruzeiro”, ouviu de um sepultador. “Fui eu que abri o buraco com a retroescavadeira, cumprindo ordens. Agora vê se não enche mais o saco. São indigentes, porra, quem se importa com eles?”

Gilberto Molina ouviu calado à exposição feita por Toninho. Pensava em seu pai e, sobretudo, em sua mãe, na esperança que eles tinham de enterrar o filho desaparecido. Desde meados dos anos 1970, ele havia procurado advogados, juntado documentos, cobrado autoridades, feito reuniões com familiares de desaparecidos. Agora estava ali, em São Paulo, tão perto do irmão. Dali a poucos meses, a morte de Flávio completaria dez anos. Não haveria ocasião melhor para fazer o traslado e organizar uma cerimônia de despedida no Cemitério São João Batista.

— Se eu requerer a exumação, vocês ainda assim não poderão abrir o buraco?

— Não é tão simples — Toninho lamentou. — Será necessária uma solicitação oficial, a abertura de um processo administrativo. Tecnicamente, esse buraco não existe. Seu pedido será negado porque o serviço funerário não tem como localizar o corpo.

— Como não tem, se o corpo está aqui, bem embaixo dos seus pés? — Molina parecia angustiado. — É preciso denunciar, abrir logo esse buraco. Deve haver outros desaparecidos aí.

— Durmo e acordo pensando nisso todos os dias, senhor Gilberto. Mas o momento não é favorável…

Em 1981, o Brasil ainda era presidido por um general. O Dops estava em plena atividade. A Lei de Segurança Nacional vigia. Havia prisões políticas, como as dos sindicalistas do ABC um ano antes, e práticas nebulosas norteavam os trabalhos na auditoria militar e no Supremo Tribunal Militar. Os julgamentos eram viciados e inevitavelmente terminavam na condenação do mais fraco. Sobretudo, o Estado de São Paulo era governado por Paulo Maluf, um político conservador, amigo da Rota e dos militares, que tinha sido prefeito exatamente nos anos em que aquele cemitério fora construído e inaugurado.

Gilberto Molina parecia exausto, resignado em voltar ao Rio de mãos vazias.

— Seu Antonio, me elucida mais uma dúvida, por gentileza. Se as ossadas estiverem mesmo aí embaixo e forem retiradas, elas estarão identificadas? — quis saber. — Ou seja: será possível encontrar um saco com o nome do meu irmão?

— Tudo indica que sim. Os sacos são etiquetados. Pelo menos é esse o procedimento padrão em todas as exumações.

— E você me permitiria ver? Seria muito importante poder confirmar a existência desse ossário e voltar para casa com algum sinal de esperança.

Toninho foi buscar uma retroescavadeira e pôs-se a escavar numa das pontas do local. Retirou uma camada de terra, algo como 50 centímetros de profundidade, e o primeiro saco de plástico azul apareceu. Desfez um laço e o primeiro punhado de ossos surgiu. Toninho agarrou um osso comprido, provavelmente um fêmur.

— Então, senhor Gilberto, seu irmão era grande?

O engenheiro sentiu as pernas bambas, a visão turva.

Toninho tirou outro saco do buraco e exibiu um crânio. Em nenhum dos sacos era possível encontrar etiquetas. Feitas de papel, por certo elas haviam se desintegrado no contato prolongado com a terra úmida.

O engenheiro veio às lágrimas. Afastou-se daquele lugar e fitou o horizonte, na esperança de se recuperar. O coração atropelado, a respiração arfante. Aquele calvário jamais teria fim? A mãe adoecida, envelhecendo… Gilberto Molina chegara ao cemitério otimista e encontrara ali um cenário de dor, mentira, descaso e injustiça.

Ele havia chegado tão perto e, mais uma vez, o direito de enterrar seu irmão lhe escapava pelas mãos.

***

De volta a São Paulo, Caco foi falar com o editor do Globo Repórter.

— A história é verdadeira, Narciso. Confirmei com o irmão de um desaparecido.

— Sensacional. E o que você sugere?

— Um programa. Vamos revelar o paradeiro desses desaparecidos no Globo Repórter. Preciso de duas semanas.

— Vai em frente.

O repórter gaúcho de corpo mirrado, radicado em São Paulo e morador da Rua Bento Freitas, no centro da cidade, se agigantou em seu 1,70 metro incompleto. A existência de um buraco repleto de ossos sem qualquer registro oficial já era, em si, conteúdo suficiente para uma grave denúncia. Aquela não era apenas uma vala comum, mas uma vala clandestina, na acepção exata da palavra. Uma vala extraoficial. Caco buscara se certificar disso. Sem levantar suspeitas, solicitara ao serviço funerário um mapa do cemitério e confirmou: não havia nada naquele espaço além do cruzeiro.

Bom, o que ele já tinha conseguido reunir? Os exames do IML com a letra T de “terrorista”, a certeza de que guerrilheiros tinham sido enterrados no Cemitério Dom Bosco com nome falso ou sem nome nenhum, a informação inédita – e exclusiva – de que uma vala clandestina construída nos anos 1970 ocultava parte desses desaparecidos. Tinha também o depoimento do Gilberto Molina, irmão do desaparecido Flávio Carvalho Molina. O que ele precisava, agora, era cruzar os documentos do IML com uma lista de mortos e desaparecidos e com os livros do cemitério. Por meio das datas prováveis das mortes e dos codinomes indicados nos laudos e nos livros, talvez fosse possível estabelecer uma relação entre aqueles indigentes marcados com o T de “terrorista” e as histórias por trás daquelas execuções.

Caco precisaria conversar com familiares de mortos e desaparecidos. Essas organizações, ele sabia, tinham desbravado muitos arquivos, inclusive nos cemitérios, e reuniam um acervo inesgotável de informações preciosas. Toninho sugeriu que ele procurasse uma moça de nome Suzana.

— Suzana?

— Ela e o marido foram guerrilheiros. Ele morreu em 1972. O corpo dele foi enterrado aqui, registrado com o nome de Nelson Bueno. Sempre a mesma história.

Toninho havia ajudado Suzana a localizar os restos mortais do marido no livro de registros e, por extensão, sua sepultura, em 1979. Em 1982, cuidara da exumação e do traslado para Porto Alegre.

— Suzana é corajosa — afirmou. — Vai ajudar no que você precisar.

Em 1990, Suzana Keniger Lisbôa militava na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, organização que havia surgido anos antes para reivindicar verdade e justiça. Luís Eurico Tejera Lisbôa, seu marido, morrera em 1972. A versão oficial dizia que ele tinha cometido suicídio numa pensão onde se hospedara no Bairro da Liberdade, em São Paulo. Ela nunca acreditou na versão oficial, sustentada inclusive pela dona da pensão, mas jamais conseguira obter informações que a confrontassem.

Semanas antes, Suzana tinha sido procurada pelo produtor Maurício Maia, que contara a ela sobre a descoberta dos laudos com a letra T e pedira sua ajuda para obter uma lista atualizada dos desaparecidos políticos com as datas prováveis de morte de cada um. Agora, Caco queria entrevistá-la para que ela comentasse a existência da vala clandestina e contasse a história da busca e da localização dos restos mortais de seu marido. Feita a entrevista, Caco perguntou se ela o acompanharia numa visita à pensão onde Luís Eurico teria se suicidado. Ele queria gravar um depoimento dela ali e fazer imagens do quarto onde acontecera o suposto suicídio.

Numa reviravolta surpreendente, um dos inquilinos da pensão afirmou diante das câmeras que a história que corria na pensão era outra.

— Entraram pela janela e atiraram nele — contou. — Ele era contrabandista.

Caco perguntou se ele sabia quantos eram os policiais.

— Parece que foram dois. Chamaram, ele não atendeu, aí foram e atiraram por ali. Aí puxaram ele e estava cheio de sangue. Depois que mataram ele, voltaram e falaram que era assaltante. Quem explicou pra mim foi uma senhora que morou aqui.

— A dona da pensão?

— A dona da pensão.

— Qual o nome dela?

— Marina.

Caco virou-se para Suzana e perguntou se ela já tinha ouvido aquela versão.

— É a primeira vez. Falei diversas vezes com a Dona Marina aqui, ela nunca foi chamada a depor, e pelo jeito é a única pessoa que conta a verdade sobre essa história.

Suzana desatou a chorar. Um choro sofrido, de revolta e dor, capturado pelas câmeras da reportagem após quase 20 anos de mentira.

Agosto ainda não tinha terminado quando Caco Barcellos deu o programa por encerrado. Além de Suzana e Gilberto Molina, irmão do Flávio, Caco havia entrevistado dona Iracema Rocha Merlino, mãe de Luiz Eduardo Merlino, Shuniti Torigoe, irmão de Hiroaki Torigoe, e o casal Berl e Bilma Reicher, pais de Gelson Reicher, entre outros familiares de mortos e desaparecidos. Agora, estava tudo pronto. Faltava apenas o mais importante: um desfecho para a denúncia sobre a vala. “Daqui a pouco o ossário geral fica pronto, os sepultadores transferem as ossadas da vala clandestina para lá e ninguém fica sabendo de nada disso”, Caco pensava. Pediu ajuda para Suzana.

— A matéria está pronta, Suzana. Só falta abrir a vala.

Servidora da Assembleia Legislativa de São Paulo cedida para a Prefeitura e lotada no Anhembi até o mês anterior, Suzana sugeriu levar o assunto a Lúcio Gregori, então Secretário Municipal de Serviços e Obras. No dia seguinte, ela voltou com o encaminhamento do secretário. Segundo Suzana, Gregori recomendou ao grupo agendar uma visitar ao cemitério junto com o diretor superintendente do serviço funerário, Rui Alencar. E garantiu a ela que autorizaria a abertura da vala.

Faltava pouco para Caco Barcellos concluir a última etapa naquela apuração e garantir as imagens de abertura para o Globo Repórter.

Rui Alencar havia sido empossado em 15 de janeiro daquele ano. Chegara para apagar incêndio numa das autarquias mais complicadas daquela administração. Seu antecessor, empossado um ano antes, no início do governo, fora indicado pelo PCB, um dos partidos políticos coligados, e acabou exonerado em poucos meses, sob a acusação de conivência com práticas pouco republicanas no trato com a coisa pública. Militante da Ação Popular em Goiás nos anos de chumbo e fundador do diretório zonal do PT de Pinheiros, em São Paulo, nos anos 1980, Rui ouviu pedidos tão insistentes para que assumisse o cargo, inclusive da prefeita, que acabou aceitando a nomeação. Em uma semana, estava arrependido.

Sob a supervisão de Rui Alencar, o serviço funerário era uma autarquia com 1.800 funcionários, 21 cemitérios, doze agências e uma fábrica de caixões. Havia de tudo naquele microcosmo ao qual ele jamais prestara atenção: um percentual altíssimo de alcoolismo, um movimento grevista prestes a eclodir na fábrica, diversos cemitérios carentes de ossário geral, denúncias envolvendo máfias de certidões e comércio ilegal de sepulturas.

Aos poucos, Rui foi agendando visitas aos cemitérios a fim de conhecer os administradores e conferir as instalações. Em agosto, ele ainda não havia visitado nenhuma vez o Cemitério Dom Bosco, um dos mais afastados do centro, mas também o mais novo, inaugurado a menos de 20 anos. Cedo ou tarde, ele precisaria mesmo dar um pulo lá.

Foi Suzana quem tomou a iniciativa de telefonar para ele. Os dois já se conheciam. Prudente, ela preferiu não se alongar por telefone. Combinou de visitá-lo na sexta-feira e levou Caco Barcellos. Receptivo, Rui ouviu um resumo da audaciosa investigação conduzida pelo repórter nos últimos meses e também o corajoso périplo dos familiares ao longo de mais de uma década de buscas. Caco explicou que estava com um Globo Repórter praticamente pronto para contar a história da procura pelos desaparecidos políticos, mas que seria fundamental gravar algumas imagens da abertura da vala. Ele sabia que um ossário geral estava sendo construído ao lado da vala e que seria natural remover as ossadas para lá. Faltava a autorização da Prefeitura para a exumação.

Rui se lembrou que, ainda em janeiro, o vereador Adriano Diogo, ex-preso político, o alertara de que havia um problema no cemitério de Perus que exigiria alguma atenção do diretor superintendente recém-empossado. Agora, as peças pareciam se encaixar. Propôs fazerem juntos uma visita ao cemitério na terça-feira seguinte, dia 4 de setembro, às 10 horas, e encerrou a reunião convencido de que a visita que acabara de agendar teria caráter técnico. Rui pediria ao administrador, Antonio Pires Eustáquio, para indicar a localização da vala, como fizera com Caco e Suzana. Talvez escavasse um pequeno trecho para confirmar. Então deliberariam sobre o que fazer.

No dia 4 de setembro, às 10 horas, Rui estacionou seu carro em frente ao prédio de administração do cemitério e deu de cara com o circo armado. Caco Barcellos, repórter notívago conhecido pelos colegas pela dificuldade em acordar cedo e ser pontual nas pautas, havia caído da cama. Chegara ao local por volta das 8 horas. Junto com ele estava o cinegrafista Hugo Sá Peixoto, que àquela altura já subia e descia o barranco, fazendo as primeiras tomadas em vídeo.

Fotógrafos e repórteres de texto de outros veículos começaram a chegar. Toda a imprensa tinha sido convidada. A pauta? A abertura de uma vala clandestina onde teriam sido ocultadas mais de mil ossadas na metade dos anos 1970.

***

O telefone tocou no gabinete da prefeita. Toque de telefone é sempre igual. Se não fosse, a telefonista seria capaz de jurar que, daquela vez, o aparelho soara mais alto e estridente do que de costume. O telefone tinha motivos de sobra para gritar.

Rui Alencar não quis adiantar o assunto com ninguém. Nem com Muna Zeyn, secretária particular da prefeita, nem com Alípio Casali, o chefe de gabinete.

— Preciso falar com a prefeita com urgência! — anunciou. — Estou no cemitério de Perus e tem um caso sério acontecendo aqui neste exato momento.

Luiza Erundina interrompeu a reunião para atender ao telefone.

— Prefeita, estou aqui no Cemitério Dom Bosco e acabam de descobrir uma vala clandestina. Cavaram um buraco e não para de sair saco aqui de dentro. Sacos com ossos. São dezenas. Talvez centenas.

Erundina nem esperou o superintendente concluir a explicação para se levantar e encerrar a reunião. Em dois minutos, embarcava no carro oficial a caminho do local. Na lembrança de Rui Alencar, a prefeita transpôs em tempo recorde os 35 quilômetros que separavam a sede da Prefeitura, no Parque do Ibirapuera, e a vala clandestina, em Perus. Em vinte minutos, Erundina estava à beira da vala, conferindo de perto o trabalho de remoção das ossadas e respondendo às perguntas dos jornalistas.

Dois anos antes, em setembro de 1988, Luiza Erundina estava em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo, atrás do ex-prefeito e ex-governador Paulo Maluf e do secretário estadual de Obras, João Leiva, apoiado pelo então governador Orestes Quércia. Paraibana de Uiraúna, na divisa com o Rio Grande do Norte e o Ceará, Erundina tinha sido secretária de Educação e Cultura de Campina Grande e militara nas Ligas Camponesas na Paraíba antes de migrar para São Paulo, no início dos anos 1970. Eleita vereadora em 1982 e deputada estadual em 1986, surpreendera o diretório nacional do PT ao vencer a eleição interna para a escolha do candidato a prefeito, num momento em que os principais dirigentes petistas, como Lula e José Dirceu, apoiavam o nome de Plínio de Arruda Sampaio. Após uma campanha popular, investindo essencialmente no diálogo com a periferia, Erundina vencera a eleição com 33% dos votos válidos, superando Maluf (24%) e Leiva (14%), numa época em que não existia segundo turno.

Primeira mulher a governar São Paulo, e primeira prefeita declaradamente de esquerda, Erundina cercara-se de lideranças populares e intelectuais renomados para montar um secretariado de peso. Paulo Freire, Marilena Chaui, Paul Singer, Dalmo Dallari e Ermínia Maricato assumiram pastas como Educação, Cultura, Planejamento, Negócios Jurídicos e Habitação. A oposição à ditadura militar e o compromisso com a reparação histórica vinha explicitada em nomeações como a de Paulo Freire, preso e exilado em 1964, e de Rosalina Santa Cruz, ex-guerrilheira e presa política, irmã do desaparecido Fernando Santa Cruz, para a Secretaria de Bem-Estar Social. Além, é claro, do então vice-prefeito Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado com destacada atuação na defesa de perseguidos políticos, presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e um dos responsáveis pela pesquisa que resultou no livro Brasil: Nunca Mais.

Aberta a vala, Erundina assumiu para si a responsabilidade pela preservação e pela investigação daquele material surpreendente. Peitou a Polícia Civil e o IML, que reivindicavam a tutela das ossadas, e determinou que caberia à Prefeitura conduzir esse processo, firmando os convênios necessários e estabelecendo diálogo com os familiares de desaparecidos. “O governo municipal não vai abrir mão desses encaminhamentos”, declarou. “Temos que levá-los às últimas consequências, dure o tempo que durar, custe o que custar. É isso que é importante e é isso que nos dá vontade e certeza dos resultados desse esforço, que não é só do governo municipal, mas também da sociedade, dos familiares e das entidades que lutam pelos direitos humanos em nossa cidade e em nosso país”.

Por volta do meio-dia, a imprensa internacional também começou a se dirigir a Perus. Repórteres da BBC de Londres e da RAI italiana estavam entre os jornalistas que se acotovelavam em busca de declarações. Suzana telefonou para outros integrantes da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, como Amelinha Teles e Ivan Seixas, e pediu para que fossem até lá. Era humanamente impossível supervisionar sozinha a retirada dos ossos e atender a tantos pedidos de entrevistas e esclarecimentos.

As imagens capturadas pelas câmeras eram chocantes. Além dos sacos azuis fechados, havia ossos dispersos, espalhados pela vala ou que acabavam vertendo dos sacos ressequidos e quebradiços pelo tempo. Crânios eram retirados do buraco e sintetizavam o sentido fúnebre daquela revelação. Mais do que fúnebre, funesto.

A vala clandestina era um buraco estreito e pouco profundo, com 30 metros de comprimento por 50 centímetros de largura e 2,70 metros de profundidade. Ao longo daquela semana foram retirados 1.049 sacos de plástico azul cheios de ossos e realocados numa sala de velório que os funcionários chamavam de capela. Em tese, havia uma ossada em cada saco, o que fez com que os meios de comunicação divulgassem a notícia de que 1.049 ossadas haviam sido localizadas. Aqui e ali, percebia-se a mistura de ossos, o que indicava a necessidade de um rigoroso trabalho arqueológico de limpeza e separação.

Um sistema extraoficial de morte e ocultação, adotado como política de Estado, começava a ganhar visibilidade. Tudo carecia de explicação. As informações eram desencontradas.

O momento era de tensão nos setores mais conservadores das Forças Armadas. Ameaças de morte logo começaram a aparecer, direcionadas num primeiro momento ao administrador do cemitério, que ousara dar com a língua nos dentes e mexer naquele vespeiro. Para os familiares de mortos e desaparecidos, as ameaças eram uma constante.

Enquanto as ossadas eram retiradas da vala, providências foram tomadas na Prefeitura, na Câmara Municipal, no gabinete do governador. Havia muita coisa a ser feita. O então secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, prometeu vigilância permanente no local até que todas as ossadas fossem retiradas e levadas a um local seguro. Vereadores discutiam a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a origem daquela vala e apurar as responsabilidades. Nos bastidores, a prefeita mexia os pauzinhos para formar uma comissão de acompanhamento sob sua alçada e definir a melhor maneira de analisar aquela montanha de ossos a fim de identificá-las. Quem eram aquelas pessoas? Como e por que foram mortas?

Naquela noite, o Jornal Nacional exibiu uma matéria curta, de três minutos, com imagens da abertura da vala de Perus, nome pelo qual o ossário clandestino se tornaria conhecido. A expectativa pela reportagem completa, a ser exibida na sexta-feira no Globo Repórter, só aumentava.

Por coincidência ou ironia do destino, aquela sexta-feira seria o feriado pátrio de 7 de setembro, aniversário da Independência, data em que desfiles militares e apresentações da esquadrilha da fumaça costumavam elevar o ufanismo verde-amarelo a um patamar sem precedentes. Exibir aquele programa em um 7 de setembro seria não somente uma afronta, mas um golaço contra os militares. Suzana Lisbôa prestara atenção às palavras usadas pelo repórter ao gravar a matéria e estava exultante. Caco se referia aos desaparecidos como guerrilheiros, e não como terroristas, algo pouco comum no horário nobre. E colocava na conta da repressão práticas criminosas como sequestro, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres.

Quando a sexta-feira chegou, outro programa foi ao ar. A reportagem de Caco Barcellos havia sido engavetada.

Somente cinco anos depois, em 21 de julho de 1995, quando o Governo Federal discutia a elaboração de uma lei que oficializaria a morte de 136 desaparecidos políticos, os brasileiros puderam assistir na telinha da Globo a história completa da vala de Perus e sua participação no acobertamento de graves violações de direitos humanos.

Leia no próximo capítulo: Por que o prefeito Paulo Maluf construiu um novo cemitério nesse lugar em apenas um ano? Uma exumação em massa. Se a lei proíbe, muda-se a lei. Familiares de guerrilheiros mortos pela repressão encontram uma pista no livro de registros. “Seu irmão era alto?” 

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