A bibliografia sobre a ditadura militar brasileira, em seus vários aspectos históricos e períodos cronológicos é enorme. Assim, organizar um guia de leitura com apenas 10 sugestões é sempre uma tarefa ingrata e arriscada, pois muitas obras importantes serão excluídas.
Diante da interminável bibliografia sobre a ditadura, o leitor não especialista pode começar com alguns livros de entrada, como manuais e coletâneas, para ter uma ideia geral do período, antes de partir para leituras mais especializadas e aprofundadas.
Há uma certa escassez de manuais historiográficos temáticos em português. É mais comum encontrarmos manuais por período histórico ou recortes nacionais. No caso da ditadura, não é diferente.
Há três manuais sobre a ditadura militar, escritos por especialistas no período, sem contar o trabalho clássico de Thomas Skidmore – Brasil, de Castelo a Tancredo, publicado ainda no final dos anos 1980.

Em 2004, Carlos Fico, professor da UFRJ e referência na história da ditadura, publicou um balanço crítico sobre a literatura acadêmica em torno do processo golpista e da construção do regime militar, cotejando as principais tendências de análise, mas sublinhando os desafios de uma história política que fosse além da narrativa empírica e que problematizasse as fontes primárias. O livro ainda organiza os eventos e sintetiza as interpretações clássicas.

Daniel Aarão Reis Filho, professor aposentado da UFF, publicou uma síntese sobre o período, lançando teses que ainda aguardam trabalhos monográficos de maior fôlego, como a “estranha derrota” da esquerda em 1964, além de reiterar o caráter civil-militar do regime e seus apoios espraiados pela sociedade (problematizando a tese da resistência generalizada da sociedade brasileira contra a ditadura).
Estas e outras proposições polêmicas vêm pautando o debate público sobre a ditadura há alguns anos, e o livro de Daniel Aarão é um bom guia para desconstruir certos mitos da memória social sobre o período. No contexto do cinquentenário do Golpe, sob o impacto do boom de memórias sobre a ditadura, várias revisões historiográficas transbordaram os limites acadêmicos e pautaram debates na imprensa. Por exemplo, a questão dos apoios sociais à ditadura, tema tabu da memória de esquerda sobre o período, e o caráter civil-militar do regime.

Um dos primeiros manuais mais completos sobre o período, também publicado em 2014, é “1964: História do Regime Militar Brasileiro”, de Marcos Napolitano, professor do Departamento de História da USP. Esse manual de entrada aborda o golpe e a ditadura brasileira como um todo, e ajuda a sistematizar os elos entre os principais eventos, processos e interpretações historiográficas, cobrindo os 21 anos do regime. O eixo do livro é dado pela história política e social, mas há capítulos sobre cultura e economia que servem de bases para outros trabalhos. Apesar de ser um manual, o autor propõe análises inovadoras sobre a temporalidade do golpe de Estado, sobre o caráter ditatorial do regime pré-AI-5, sobre a estrutura da repressão legal e paralegal, bem como sobre a natureza da “abertura política”, para além das armadilhas da memória social sobre estes temas.

Mais recentemente, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG e especialista no período com vasta obra sobre a história da ditadura, também sintetizou os principais eventos e processos, suas interpretações e polêmicas no livro “Passados, Presentes”, revisando o caráter do golpe de 1964 (“mais antiesquerdista do que antirreformista”) e esmiuçando a construção da “máquina política do regime”, entre outros temas.

No campo das coletâneas, destacamos o livro lançado também em 2014, em meio aos debates suscitados pelos 50 anos do Golpe e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Trata-se do livro “A ditadura que mudou o Brasil”.
A coletânea, organizada por Daniel Aarão, Marcelo Ridenti (professor na UNICAMP, referência em história cultural da ditadura) e Rodrigo Patto Sá Motta, atualizou a agenda temática e os resultados de pesquisa, propondo temas e perspectivas que iam além de uma visão dicotômica e simplista da história do golpe e da ditadura como um conflito entre vítimas e vitimários, resistência e repressão, civis democráticos e militares autoritários.
Nos textos que compõem a coletânea, os autores buscavam uma visão mais complexa sobre as dinâmicas temporais da ditadura, a modernização econômica e suas contradições, os jogos de acomodação e resistência, os apoios sociais e as dinâmicas da máquina repressiva, entre outros temas. Esta coletânea é uma excelente passagem de uma visão mais geral e ampla do período, propiciada pelos manuais e uma bibliografia mais temática e especializada.

Por incrível que pareça, o golpe de 1964, como evento político, foi mais estudado pelas áreas de ciência política e sociologia, com seus respectivos aportes teóricos e visões, por vezes, muito institucionais e normativas do processo golpista.
O pequeno livro de Carlos Fico, publicado em 2004 – Golpe de 1964 – Momentos Decisivos – é uma das primeiras e melhores, introduções ao processo golpista de 1964 a partir de uma perspectiva propriamente historiográfica. O livro critica visões sobre o caráter improvisado da derrubada de João Goulart ou sobre o golpe como processo estrutural determinado para além dos agentes e eventos.
Além disso, o livro sintetiza as principais polêmicas historiográficas sobre aquele evento e recupera o papel da sociedade civil no apoio ao golpe, elencando as dezenas de “marchas da família” Brasil afora.

Em 2014, no contexto do cinquentenário do golpe, Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, dois especialistas na história do Brasil pós-1930, analisaram com profundidade e detalhismo os eventos políticos em torno do governo Goulart, destrinchando a história política do golpe nos últimos três capítulos do livro. Os autores intercalam análises próprias, apoiadas em fontes primárias (amplamente reproduzidas ao longo do texto) e depoimentos de personagens envolvidos no processo. O processo golpista foi analisado a partir de uma perspectiva inovadora, explorando a aceleração do tempo e a indeterminação inerente ao processo, ainda que considerem não haver um projeto de ditadura embutido no processo golpista.

No marco dos 60 anos do golpe (2024) e dos avanços dos projetos autoritários na sociedade brasileira, o tema do golpe de Estado e os legados da ditadura ganhou ainda mais força na historiografia.
O livro de Heloisa Starling, professora da UFMG – A Máquina do Golpe – se debruça sobre os eventos que levaram ao golpe de Estado de 1964, evitando análises deterministas sobre a inevitabilidade da queda de João Goulart ou análises excessivamente valorativas, julgando erros e acertos dos atores políticos.
O livro articula os diversos momentos de ação política e social que, embora pulverizados, foram convergindo paulatinamente no acirramento da crise do governo Goulart e nas ações que levaram à sua queda, demonstrando que golpes de Estado combinam projetos de tomada de poder com eventos políticos imprevistos e disruptivos.
Dentre a profusão de livros temáticos, inovadores e que vêm atualizando as perspectivas sobre o regime militar, destacamos três obras.

Durante os mais de vinte anos de ditadura, a relação entre Estado e Sociedade foi dinâmica, indo de um grau maior ou menor de apoio passivo, distanciamento crítico e adesão ufanista. No geral, a historiografia social e política destacou a resistência, civil e armada, como um tópico central na história da ditadura. Seguindo a linha de análise sobre as bases sociais das ditaduras, que marcaram a escola historiográfica carioca da UFF, Janaina Cordeiro, também professora daquela instituição, publicou o livro “Ditadura em tempos de milagre” (2015), que analisa o ufanismo em torno da ditadura, para além de considerá-lo o reflexo social de uma mera máquina de propaganda artificial e impositiva, demonstrando as complexas relações entre a ditadura e valores sociais que a sustentaram em seu apogeu político e econômico e que, contraditoriamente, coincidiu com o seu período mais repressivo e violento.

Em uma abordagem original e ousada, as autoras Mariana Joffily (professora da UDESC) e Maud Chirio (professora da Universidade Gustave Eiffel) publicaram o livro “Torturadores” (2025), aprofundando a análise do perfil profissional dos agentes da repressão, para além da abordagem clássica, e um tanto problemática, que os vê como indivíduos meramente doentios e malditos dentro da própria instituição militar. Na obra, as autoras demonstram os métodos de recrutamento, seleção, treinamento, carreira profissional e vantagens adquiridas pelos agentes da repressão.
O livro ajuda a superar a ideia da tortura como “excesso”, praticada em “porões” clandestinos, por indivíduos sádicos e sem controle por parte da hierarquia, mergulhando na estrutura e no sistema repressivo.

Finalmente, o jovem historiador Lucas Pedretti, em “A transição inacabada: Violência de Estado e direitos humanos na redemocratização”, articula a história da violência conjuntural da ditadura à violência estrutural do Estado brasileiro pós-ditatorial contra a parcela mais vulnerável e marginalizada da população brasileira. Para além da relevância social e atualidade do tema, o livro, produzido a partir de uma tese de doutorado retoma a gênese da cultura dos Direitos Humanos como matriz das lutas democráticas e das disputas de memória em torno do regime, mas as contrasta com a assimilação da violência contra certos grupos e sujeitos sociais, partindo do mote de que, para as comunidades vulneráveis”, a “ditadura nunca acabou”. Esta reflexão permite articular os tempos históricos de maneira mais original, indo além das armadilhas das datas e dos limites da periodização da história política mais estrita.