A literatura era, historicamente e por excelência, a área de atuação do intelectual engajado, que se utilizava de várias formas de escrita (ensaios, crônicas, contos, romances), para transmitir ideias e intervir no debate sobre a sociedade e as liberdades públicas. Não foi diferente no Brasil do regime militar, apesar de outras áreas artísticas como o teatro, o cinema e a música popular, terem conseguido maior destaque junto ao grande público. Inclusive, as artes ditas “de espetáculo” (teatro, cinema e música) se tornaram mais “literárias”, incorporando de maneira criativa em suas obras mais sofisticadas a tradição da literatura culta da prosa e da poesia.
O romance pós-golpe expressou a crise e o dilema dos intelectuais dentro do contexto autoritário. Nesse sentido, se destacam dois romances canônicos: “Pessach, a travessia” (Carlos Heitor Cony, 1966) e “Quarup” (Antonio Callado, 1967). Em ambos, o intelectual é forçado a se despir de suas roupagens sociais e aderir à luta efetiva contra o regime.
O romance “Pessach – a travessia” transformaria em matéria ficcional o exercício de liberdade crítica das crônicas, temperado pelo clima de radicalização da luta contra o regime que já se anunciava, com o chamado às armas feito inicialmente pelos brizolistas. No livro, um intelectual existencialista e libertário, inicialmente crítico da luta armada, acaba por se engajar na guerrilha, como um ato de liberdade de pensamento, portanto, mantendo sua condição de intelectual e livre pensador. Depois de vários episódios quase rocambolescos, nos quais se destaca uma improvável habilidade do personagem-intelectual nas táticas de luta armada, sem falar na sua coragem diante do perigo, o intelectual se mantém íntegro, realizando sua passagem, escolhendo seu destino por opção e coerência de ideias.
Em outro romance de sucesso da época, “Quarup”, o intelectual representado pelo personagem do padre Nando se “deseduca” no contato com as classes populares, despojando-se das sutilezas e contorcionismos do pensamento especulativo para aderir à luta armada, guiado pelo herói camponês.
Sintomaticamente, os finais dos dois romances são bem distintos. O personagem intelectual-guerrilheiro de Cony faz a travessia para o interior de si mesmo, reiterando sua luta como opção individualista e libertária. Já o personagem central de Callado segue para o interior do Brasil, guiado por um camponês, dissolvendo sua individualidade na terra e no povo pelo qual lutaria. Ele faz isso menos como opção e mais como o resultado de um processo de transformações coletivas na qual ele se dilui como indivíduo autocentrado. Em ambos os romances, entretanto, residia a falha trágica que deveria ser redimida: a impossibilidade de permanecer na “torre de marfim”, equidistante das lutas políticas terrenas, lugar do intelectual tradicional.
A autoimagem do intelectual como reserva ética, política e moral da nação, já abalada em “Pessach” e “Quarup”, será duramente questionada pela própria literatura ao longo dos anos 1970, ajudando a redimensionar o seu papel no campo da resistência cultural. Os fatores para essa mudança foram vários: as demandas do mercado editorial, a crítica da contracultura jovem aos excessos de intelectualismo da esquerda, a crise das organizações de esquerda derrotadas na luta armada, as novas oportunidades profissionais aos setores intelectualizados nas universidades e na indústria da cultura.
Esses fatores, ao que parece, tiveram um efeito particularmente intenso na literatura, uma arte que sempre foi vista como a expressão mais sofisticada do intelectual, ao exigir maestria no domínio da língua vernácula e da escrita. Mas não podemos esquecer também a censura aos livros, materializada no Decreto 1.077, que até então era uma atividade menos sistemática do que àquela destinada ao teatro, ao cinema e às canções.