Embora a ditadura tenha buscado controlar e instrumentalizar o futebol, o esporte também foi espaço de resistência e luta política. Como mencionado anteriormente, alguns jogadores foram alvo direto da repressão e se tornaram símbolos dessa resistência: Afonsinho, Nando e Reinaldo são alguns exemplos. Nem mesmo Pelé, o maior jogador da história do futebol brasileiro, esteve imune à vigilância do regime. Sua posição foi ambígua: embora se apresentasse como uma figura apolítica, evitando manifestações políticas explícitas, sua imagem foi amplamente explorada pela ditadura, especialmente após o tricampeonato de 1970 – como em 1972, quando declarou que “no Brasil não havia ditadura”. Dois anos depois, recusou o convite para disputar a Copa do Mundo de 1974, alegando, entre outros motivos, preocupação com a situação política do país. A recusa provocou reações negativas e Pelé passou a sofrer ataques racistas, especialmente por parte da imprensa.
Mas a resistência ao regime também vinha das arquibancadas, desmistificando a máxima de que o futebol é o ópio do povo e rompendo com a lógica militar que usava o esporte como ferramenta de alienação. Em 1977, surgiu uma das primeiras torcidas organizadas assumidamente homossexuais do Brasil: a Coligay, ligada ao Grêmio de Porto Alegre. Criada por Valmor Santos, torcedor gremista e proprietário da boate Coliseu – um dos poucos espaços LGBTQIA+ de sociabilidade na cidade –, a Coligay foi formada por jovens gays que decidiram ocupar as arquibancadas e torcer pelo tricolor gaúcho sem renunciar à sua identidade. Com plumas, adereços e um estilo irreverente de torcer, a Coligay desafiava tanto a repressão do regime quanto as normas heterossexuais que estruturavam o futebol. Mais do que uma expressão de resistência política, a Coligay se tornou também um espaço de afirmação e sociabilidade para a população LGBTQIA+. Dois anos depois, outro agrupamento de torcedores gays também foi formado em torno do Flamengo, do Rio de Janeiro, porém a Flagay teve muito mais dificuldade de acessar as arquibancadas.
Em São Paulo, em 1969, pouco após o AI-5, surgiu a Gaviões da Fiel, que se tornaria a principal torcida organizada do Corinthians. Seu nascimento está diretamente ligado ao contexto da ditadura militar: na época, o clube era presidido por Wadih Helu, deputado da ARENA, partido de sustentação do regime. A Gaviões foi criada como uma forma de protesto contra o autoritarismo dentro do clube, cobrando mais transparência e participação da torcida nas decisões. Em plena repressão, quando contestar autoridades era considerado subversivo, a Gaviões da Fiel nasceu como forma de contestação política a partir da paixão dos seus torcedores pelo Corinthians.
Nos anos finais da ditadura militar, o Corinthians protagonizou uma experiência política inédita no futebol: a Democracia Corinthiana. Liderada por jogadores como Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, a iniciativa buscava democratizar o clube internamente, dando voz a atletas e funcionários nas decisões do dia a dia do clube. Tratava-se de uma proposta de autogestão que ia na contramão do autoritarismo vigente no país.Entre 1982 e 1984, decisões importantes do clube – como escalações, contratações e até questões salariais – eram tomadas coletivamente em assembleias com jogadores e funcionários. Porém, a experiência da Democracia Corinthiana não se limitou apenas ao clube. Era comum os jogadores, principalmente Sócrates, usarem a visibilidade do clube para questionar o regime e defender a abertura política. A iniciativa corinthiana ajudou a estimular o debate democrático no país e a fortalecer a mobilização da juventude e dos setores populares contra o regime. A Democracia Corinthiana mostrou que o futebol poderia ser uma importante arma de luta e resistência. Mesmo enfrentando resistências internas e externas, deixou um legado importante na história do esporte e da política brasileira.

Sócrates, o ‘Doutor’, era mais do que craque em campo. Atuava com firmeza política: prometeu abrir mão de sua carreira na Europa caso a emenda Dante de Oliveira passasse e o Brasil voltasse a escolher seu presidente.
A Democracia Corinthiana alcançou seu auge em 1984, quando Sócrates se engajou publicamente na campanha pelas Diretas Já. Ao lado de artistas, intelectuais e líderes políticos, o jogador participou de comícios e usou sua imagem para defender o voto direto para a presidência. Sua atuação consolidou o futebol como um espaço legítimo de mobilização e mostrou que, mesmo sob repressão, era possível transformar o esporte em um espaço de luta por democracia.
Ao longo de duas décadas, o futebol foi instrumentalizado pela ditadura militar – ora sendo usado como ferramenta de alienação, ora sendo manipulado como instrumento de propaganda do regime. Ainda assim, o esporte também foi atravessado por vozes dissonantes, por experiências de resistência e por gestos de enfrentamento. Dos campos às arquibancadas, o futebol também foi resistência ao regime militar. Mais do que um mero reflexo da sociedade, o futebol foi um campo de disputa simbólica, política e cultural.