“Homens de negócios”, imprensa e mulheres

“Homens de negócios”, imprensa e mulheres

Em novembro de 1964, a revista Seleções da Reader’s Digest publicou uma reportagem intitulada A nação que se salvou a si mesma, que contava a “história inspiradora de como um povo se rebelou e impediu os comunistas de tomarem conta de seu país”. Buscava, assim, enfatizar o protagonismo da sociedade civil no que chamavam de “Revolução de 1964”. Para tanto, destacava a participação de três atores sociais em particular: os “homens de negócios e profissionais liberais”, a imprensa e as mulheres.

De fato, tratava-se de grupos organizados e instituições da sociedade civil que exerceram papel fundamental tanto no golpe quanto ao longo do regime. Especificamente sobre o empresariado, a reportagem citava com especial atenção o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), mas também o Conselho Superior das Classes Produtoras (Conclap), o Grupo de Ação Política (GAP), além dos centros industriais e das associações comerciais.

Todas essas associações foram, de fato, importantes na sustentação do golpe. O IPES, em particular, promoveu intensa campanha de desestabilização do governo Jango por meio do financiamento de grupos de oposição, palestras, da publicação de livros e panfletos, da produção de filmes etc. Fundado em 1961, o grupo era composto majoritariamente por empresários, mas agregava também profissionais liberais, militares e intelectuais que participaram ativamente da preparação do golpe de 1964 e seguiram atuando – embora com menor intensidade – até 1972.

A participação de empresários durante a ditadura foi bastante plural. É possível dizer que setores expressivos do empresariado atuaram como protagonistas civis na legitimação política e ideológica, bem como na sustentação do regime. Investiram recursos financeiros, influenciaram políticas públicas e integraram importantes estruturas estatais. Mais recentemente, historiadores têm chamado atenção para a estreita colaboração de empresários com a repressão. Também o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) aponta nesse sentido, relacionando, por exemplo, o financiamento de empresários à Operação Bandeirante (Oban). O caso mais famoso é o do empresário Henning Albert Boilesen, dinamarquês naturalizado brasileiro, presidente do grupo Ultragaz e importante elemento de ligação entre a Oban e o empresariado paulista.

Algo similar se passa com a imprensa. Descritos pela reportagem da Seleções como mantendo uma “por conta própria cerrada fuzilaria editorial” contra o governo João Goulart, estudos mostram que os principais grupos de mídia não apenas apoiaram o golpe de 1964, mas também deram sustentação ideológica e política ao regime durante anos, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Jornais como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, O Estado de Minas e Zero Hora, dentre outros, endossaram o golpe e celebraram a deposição de João Goulart. O mesmo se pode dizer do Grupo Bloch e dos Diários Associados, então o maior conglomerado de mídia do país, de propriedade do jornalista Assis Chateaubriand. O Grupo Folha, em particular, apoiou ativamente a Oban, cedendo caminhonetes para a captura de opositores da ditadura, mas também do ponto de vista editorial, sobretudo por meio do jornal Folha da Tarde.

O apoio, no entanto, não foi monolítico nem constante, e a historiografia recente tem se esforçado para demonstrar a complexidade das relações entre imprensa e ditadura, distinguindo entre veículos, períodos históricos e interesses empresariais e políticos.

Mas a ênfase da reportagem da revista Seleções recaía mesmo sobre as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Em função da grandiosidade, do sucesso e da extensão das manifestações (o país marchou até setembro de 1964, em grandes cidades, mas também no interior), as marchas passaram à história como as mais significativas expressões de apoio ao golpe e à recém-instaurada ditadura. Nelas estiveram presentes as mais diversas entidades da sociedade civil. O protagonismo, no entanto, foi atribuído às mulheres, organizadoras do evento.

Mulheres marcham com uma faixa com os dizeres “O Brasil não será uma nova Cuba” durante a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, uma das grandes mobilizações que precederam o golpe de 1964. Autoria desconhecida.
Mulheres marcham com uma faixa com os dizeres “O Brasil não será uma nova Cuba” durante a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, uma das grandes mobilizações que precederam o golpe de 1964. Autoria desconhecida.

No início da década de 1960, por todo o país, surgiam entidades cívicas femininas. As mulheres reunidas em tais associações apresentavam-se publicamente como mães, esposas e donas de casa, investindo-se de forte retórica conservadora e anticomunista com o objetivo, segundo as próprias organizações femininas, de mobilizar a opinião pública, alertar para os perigos que as famílias brasileiras estavam correndo e, ao mesmo tempo, “revigorar princípios e ideais sempre defendidos no Brasil cristão e democrático”.

Assim, o primeiro grupo a se articular foi a União Cívica Feminina de São Paulo (UCF/SP), em fevereiro de 1962 e, quatro meses mais tarde, na Guanabara, formou-se a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE). Depois, nos primeiros meses de 1964, surgiram a Liga da Mulher Democrática (LIMDE), em Belo Horizonte, e a Cruzada Democrática Feminina (CDF), no Recife; e, nas vésperas do golpe, em 30 de março, foi fundada, em Porto Alegre, a Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG).

De modo geral, a liderança desses grupos era composta por um pequeno grupo muito bem delimitado socialmente: eram mulheres católicas, brancas, pertencentes às elites e classes médias de suas cidades. Todavia, não se pode desconsiderar o poder de abrangência do discurso formulado pelas associações femininas. Colocando-se como mães e falando em nome da mulher brasileira, seus clamores mobilizavam sentimentos e apelavam a tradições que não se restringiam às elites brasileiras, transcendendo também o espaço exclusivo do catolicismo e atraindo mulheres de outras religiões.

Às mulheres organizadas em associações femininas foi, inúmeras vezes, atribuído o protagonismo do golpe: “A Revolução foi tua mãe que fez”, dizia um panfleto que contava a história da primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo. Suas ações, no entanto, não ficaram reduzidas ao momento do golpe ou à organização das marchas. Ao contrário, muitos dos grupos femininos continuaram atuando ao longo da ditadura e desempenharam papel importante na legitimação do regime, sobretudo nos primeiros anos.

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