Atuação Profissional
advogado, capitão da Força Pública do Estado de São Paulo (atual Polícia Militar), fotógrafo, jornalista e professorOrganização
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)Filiação
Luíza Santos Mattos e José Antônio de MattosData e Local de Nascimento
27/4/1926, em Piratuba (SC)Data e Local de Morte
16/10/1973, Santiago, ChileWânio foi um dos mais de cem brasileiros que ficaram detidos no Estádio Nacional de Santiago – transformado, nas semanas seguintes ao golpe de Estado, no mais notório centro de detenção da capital chilena que, segundo a Cruz Vermelha Internacional, chegou a abrigar cerca 7 mil prisioneiros no fim de setembro e foi palco de torturas e execuções. Sua filha Roberta Romaniolo relatou, em entrevista ao jornal “A Notícia” de Joinville (SC) em 2003, que toda a família foi presa junta e depois separada – a filha chegou a ser arbitrariamente separada da mãe, até ser levada de volta à cela e depois entregue a uma vizinha. Mãe e filha foram posteriormente transferidas, com a ajuda dos organismos internacionais, a um refúgio sob bandeira suiça e de lá partiram para o exílio na França. Wânio não teve a mesma sorte. O Estado brasileiro não ofereceu qualquer assistência a seus nacionais levados ao Estádio Nacional ou outros centros de detenção. Ao contrário: a pesquisa documental realizada pela CNV comprovou que em vários casos a atuação do Ministério das Relações Exteriores impediu ou dificultou soluções que teriam permitido uma libertação mais rápida daqueles brasileiros. i Mais do que isso: documentos e depoimentos de diversas fontes, brasileiras e chilenas, corroboram que uma equipe de agentes brasileiros esteve no Estádio Nacional para interrogar os detidos brasileiros e ensinar técnicas de tortura aos militares chilenos. ii No processo judicial (pelo homicídio de Wânio) em curso no Chile, consta depoimento do major Sérgio Manuel Fernández Carranza, à época capitão, encarregado da Seção de Estrangeiros do campo de detenção do Estádio Nacional, que afirma textualmente que: […] „os detidos do Brasil, Argentina e Uruguai eram interrogados por interrogadores enviados pelas ditaduras de seus países‟ e que certa vez foi-lhe transmitido „convite do corpo de interrogadores brasileiros para presenciar um interrogatório‟, o que ele teria recusado, e ainda que levaram-no para „conhecer as instalações dos interrogadores estrangeiros […], as quais estavam equipadas com „parrilla‟ [cama metálica para aplicação de descargas elétricas]e elementos para pendurar as pessoas e torturar‟. Os agentes brasileiros teriam chegado ao Estádio por volta do dia 16 de outubro. Infere-se, dessa informação e dos depoimentos dos presos que com ele conviveram em seus últimos momentos, que Wânio não chegou a ser submetido a sessões de tortura por esses agentes. Simplesmente, as autoridades do Estádio Nacional deixaram-no morrer, privando-o dos cuidados médicos que se impunham em sua situação. O médico brasileiro Otto Brockes, que estava preso com Wânio no Estádio Nacional, prestou depoimentos à CNV e à Subcomissão de Memória, Justiça e Verdade do Senado Federal em que relatou o que aconteceu: (Wânio) evoluiu numa situação difícil. Nós passamos muito tempo sem comer. Pedia casca de laranja e tudo que pudesse comer para fazer volume, porque o intestino não funcionava. O Wânio começou com constipação intestinal. […] Aquilo foi evoluindo. De repente, o Wânio começou a sentir sintomas de dor. Examinei e fiz um diagnóstico de abdômen agudo, que tinha que ser operado e examinado por outros meios. Otto escreveu um relatório e tentou entregá-lo aos médicos do Estádio, mas ele e Wânio foram mandados de volta à cela. Continuou insistindo, inclusive com a ajuda do reitor da faculdade de medicina, que também se encontrava preso, até que conseguiram levar novamente Wânio ao serviço médico: […] mas, com isso, já haviam se passado quatro dias. Era uma cirurgia de urgência, e passaram mais aqueles dias. Aí, eles resolveram atender. Parece que isso foi numa segunda-feira – não tenho certeza da data. Na quarta ou quinta-feira, chegou a notícia de que eles foram operar, mas estava tudo gangrenado, e o Wânio morreu. Foi um crime praticado por médicos, por militares. […] Ele foi vítima da falta de assistência. Um crime hediondo, uma coisa sem explicação. Na mesma audiência do Senado, também Vitório Sorotiuk, Ubiramar Peixoto de Oliveira e Dirceu Luiz Messias, que estiveram com Wânio naquela etapa, testemunharam sobre o sofrimento por que passou. A CNV teve acesso aos autos judiciais do processo criminal atualmente em curso no Chile para investigação do homicídio de Wânio de Mattos. Os documentos e depoimentos nele contidos corroboram o relato de Otto Brockes e seus companheiros. No relatório da visita realizada ao Estádio Nacional em 13 de outubro de 1973 pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, consta que Wânio apresentava sintomas de obstrução intestinal crescente com constipação e vômitos, tendo que esperar dez dias para ser admitido na enfermaria, apesar dos reiterados pedidos de seus companheiros. O delegado médico da Cruz Vermelha aconselhou sua transferência imediata ao Hospital Militar, o que foi primeiro negado pelo médico de plantão, e depois determinado pelo comandante do campo, Coronel Espinoza. Wânio, no entanto, não chegou a ser transferido. Relatório de visita posterior do CICR ao Estádio registra que faleceu três dias depois, ao ser operado no hospital de campanha do próprio estádio. O Relatório da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação do Chile (Informe Rettig) registra, a respeito do caso: No dia 16 de outubro de 1973, morre José Wannio de Mattos Santos [sic], brasileiro, 47 anos. Fontes altamente confiáveis declararam a esta Comissão que já estava detido e doente em 13 de outubro de 1973, no Estádio Nacional. […] Solicitado ao delegado médico no Estádio Nacional seu traslado ao Hospital Militar, este foi negado. Como consequência disso, falece no dia 16 de outubro de 1973, no Hospital de Campanha do Estádio Nacional, em razão de uma „peritonite aguda‟. É convicção desta Comissão que José Wanio de Mattos faleceu por se haver negado o auxílio médico oportuno e eficaz requerido, por parte de agentes do Estado, constituindo uma grave violação a seu direito à integridade física e à sua vida. Segundo a certidão de óbito, Wânio morreu à 1h15 do dia 16 de outubro, sendo a causa da morte peritonite aguda. O laudo de autópsia é assinado pelo Dr. Alfredo Vargas Baeza, diretor do Instituto Médico-Legal de Santiago, o mesmo que atestou a morte de dezenas de pessoas após o golpe de Estado, inclusive a do brasileiro Nelson de Souza Kohl. Entre os documentos coligidos no Chile, encontra-se uma Resolução do Diretor da V Zona de Saúde de Santiago, datada de 28 de novembro de 1973, concedendo autorização ao Sr. Samuel Nalegash, secretário-geral do Comitê Nacional de Ajuda aos Refugiados, para cremação do corpo de Wânio de Mattos e retirada e traslado internacional de suas cinzas. Consta ainda procuração passada por S. Nalegash à assistente social Eliana Arias, para esses fins. Segundo esses documentos, no dia 30 daquele mês, Eliana Arias teria comparecido ao Cemitério Geral, quitado os valores de sepultura, exumação e cremação de Wânio de Mattos e retirado suas cinzas, para remetê-las ao endereço da mãe de Wânio no Brasil. Não há informações adicionais sobre o que foi feito com as cinzas, possivelmente entregues à mãe de Wânio. Eliana Arias foi procurada para depôr no processo judicial, mas já faleceu. Foi ouvido, no processo judicial, o médico que teria praticado a intervenção cirúrgica em Wânio, Miguel Tapia de la Puente, cirurgião militar, à época major. Em seu depoimento, revelou que Wânio já havia morrido antes de iniciar-se a operação. Ainda assim, Tapia de la Fuente abriu seu abdome para verificar a etiologia da obstrução que causara a morte, concluindo que ela teria tido origem em um câncer do intestino. Seu superior, médico residente chefe do Hospital Militar, Patrício Silva Garín, afirmou por sua vez que o Hospital de Campanha do Estádio Nacional estava preparado apenas para cirurgias de menor gravidade e que um diagnóstico de peritonite aguda requereria internação imediata em hospital com instalações completas de cirurgia, e indicou como grave falta ética a abertura do abdome de paciente que já se encontrava morto. Os depoimentos médicos colhidos no processo deixam claro que a omissão de assistência em tempo hábil acarretou a morte de Wânio de Mattos. A Embaixada do Brasil recebeu da chancelaria chilena, no dia 24 de outubro de 1973, comunicação formal de que “o cidadão brasileiro Wânio Jose Matus Santos (sic) faleceu no dia 16 do mês em curso, no Hospital de Campanha do Campo de Detidos do „Estádio Militar‟, enquanto era submetido a intervenção cirúrugica”. A nota verbal RIAS n o 16292 veio acompanhada da certidão de óbito de Wânio, e a Embaixada dela acusou formalmente recebimento pela nota verbal n o 218 de 31 de outubro. No mesmo dia, o Conselheiro Claudio Luiz dos Santos Rocha, Encarregado da Embaixada na ausência do Embaixador Câmara Canto, transmite por telegrama a informação à Divisão de Segurança e Informação (DSI/MRE) em Brasília, e envia o original da certidão de óbito pela mala diplomática. No dia 17 de novembro, o Cônsul-Geral Adjunto, encarregado do Consulado-Geral do Brasil em Santiago, Luiz Loureiro Dias Costa, comunica por telegrama secreto à DSI que foi procurado pela Srta. Eliana Arias, do Comitê de Ajuda aos Refugiados, que lhe solicitou, após apresentar-lhe certidão de óbito, carteira de identidade e documento de viagem para estrangeiros de que era titular Wânio de Mattos, assinar petição para a cremação do corpo, ao que lhe respondeu que deveria consultar a Secretaria de Estado em Brasília, uma vez que a cremação deveria ser autorizada por pessoa da família. Por ofício secreto da mesma data, remete a Brasília cópias xerox dos documentos que lhe foram apresentados. Na cópia desse expediente, localizada no Arquivo do Ministério das Relações Exteriores, constam várias anotações manuscritas: na primeira, o Chefe da Seção de Informações da DSI registra que “o assunto foi registrado na DSI para as providências de informação de sua competência” e encaminha o expediente ao Departamento Consular e Jurídico para os fins solicitados pelo Consulado. Outra anotação, datada de 20 de março de 1974, registra que foi pedida 2a via da certidão de óbito para encaminhamento ao Ministério da Justiça; outra ainda, de 12 de novembro de 1974, indica que “a DSI informa não conhecer o endereço dos familiares” e que foi notificado o Consulado em Santiago. A informação sobre a morte de Wânio circulou também por outros meios: em 31 de dezembro de 1973, o Centro de Informações do Exterior (CIEX/MRE) encaminha ao SNI, CIE, Cenimar, CISA e às 2as seções dos Estados Maiores das três Forças fotocópias da nota da chancelaria chilena e da certidão de óbito. Por sua vez, a DSI/MRE remete ao SNI e aos Centros de Informação das três Forças e do Departamento de Polícia Federal, em 8 de janeiro de 1974, as cópias do atestado e documentos de Wânio recebidas do Consulado em Santiago, e no dia 5 de fevereiro volta a comunicar a todos os órgãos de informação as notícias e documentos relativos ao assunto recebidas tanto da Embaixada quanto do Consulado, inclusive quanto à gestão do Comitê de Ajuda aos Refugiados. A notícia da morte de Wânio consta também em documento do Centro de Informações da Aeronáutica datado de 23 de novembro de 1973, que informa ao II Exército e ao DEOPS/SP que, segundo dados obtidos de fontes diversas (são mencionados, como referência, todos os órgãos de inteligência citados anteriormente), “teriam sido mortos no Chile, durante a Revolução de 11/9/73, ocorrida naquele país”, uma relação de brasileiros, entre os quais Wânio de Mattos. O governo brasileiro – Ministérios das Relações Exteriores e da Justiça, Forças Armadas e órgãos de inteligência – tinha, portanto, pleno conhecimento do que ocorrera a Wânio de Mattos. Ainda assim, os relatórios militares sobre os desaparecidos políticos encaminhados ao ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em 1993, indicam apenas, no caso da Marinha, que Wânio foi banido do país, enquanto o relatório da Aeronáutica registra que “teria sido morto no Estádio Nacional de Santiago, segundo a imprensa”, e o do Exército que “de acordo com o Jornal do Brasil em sua edição de 6 mar 71 (sic), teria sido morto no Chile”. Não há, por outro lado, registro de nenhuma comunicação oficial à família de Wânio, antes da inclusão do caso no Relatório Rettig, no Chile, em 1991. Em junho de 2011, foi instaurado perante a Corte de Apelações de Santiago, por iniciativa do Ministério Público chileno, ao qual se associaram posteriormente a “Agrupación de Familiares de Ejecutados Políticos” e o Ministério do Interior (Programa Continuación de la Ley no 19.123), o processo criminal Rol no 179-2011, distribuído ao 34o Juzgado del Crimen, para investigar e apurar responsabilidades no homicídio de Wânio José de Mattos. A CNV examinou os autos judiciais e atuou como facilitadora para que sejam tomados os depoimentos dos brasileiros que estiveram com Wânio no Estádio. No dia 4 de novembro de 2014, Vitório Sorotiuk, um dos últimos brasileiros que viu Wânio com vida, prestou testemunho no processo, em Santiago. Relatou as condições de detenção, os esforços para obterem atendimento médico para Wânio, como ele foi levado uma vez para atendimento e devolvido para a cela e como, juntamente com outras três pessoas, cada um segurando em uma ponta de um cobertor, conduziram-no torcendo-se em dores até umas das tendas do exército chileno instaladas no entorno no Estádio, e nunca mais o viram. Vitório Sorotiuk prestou também depoimento, no dia 7 de novembro de 2014, em outro processo no mesmo 34o Juzgado del Crimen (Rol 368-2012), em que se investiga a presença de policiais ou militares brasileiros nos interrogatórios de prisioneiros brasileiros no Estádio Nacional do Chile em outubro de 1973. A CNV também transmitiu cópia dos autos do processo judicial sobre Wânio ao Ministério Público Federal, para facilitar o acompanhamento, a interlocução e o assessoramento cabível aos responsáveis pelo processo no Chile.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Wânio José de Mattos desapareceu em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela Ditadura Militar, implantada no país a partir de abril de 1964. Recomenda-se Prestar a assistência cabível aos trabalhos de investigação levados a efeito no âmbito judicial no Chile para a determinação das circunstâncias da morte de Wânio de Mattos e a identificação e punição dos responsáveis. Considerar formas de reparação à filha de Wânio de Mattos pela continuada violação de direitos humanos a que sua mãe (já falecida) e ela foram submetidas pelo Estado brasileiro em razão de seu parentesco com Wânio de Mattos.
O Estado brasileiro utilizou uma série de mecanismos para amedrontar a população, sobretudo aqueles que não estivessem de acordo com as medidas ditatoriais. Conheça os reflexos do aparato repressivo e os focos de resistência na sociedade.