As grandes manifestações do final dos anos 1960 foram protagonizadas, sobretudo, pela classe média, por estudantes, artistas e intelectuais. Nelson Rodrigues, tão genial em seus escritos, quanto conservador em seus valores, ironizava a Passeata dos Cem Mil:
“Os Cem Mil eram filhos da alta burguesia. E, com efeito, não havia, entre os manifestantes, um preto, um favelado, um torcedor do Flamengo e sequer um desdentado. Os Cem Mil tinham uma saúde dentária de artista de cinema. Um turista, que por aqui passasse e os visse, havia de perguntar: – Mas a alta burguesia quer tomar o poder que já tem?” (Óbvio Ululante, Companhia das Letras).
As favelas e os bairros populares pareciam passar ao largo daqueles protestos e da luta armada que se montava. Mesmo entre as esquerdas, como balanço do cenário pós-AI-5 e da derrota dos grupos guerrilheiros, parecia-se chegar à mesma questão: onde estava o povo? Para muitos, mesmo para alguns intelectuais de esquerda, o povo era alienado pela ignorância e pela ação dos meios de comunicação e, de tão massacrado em seu cotidiano, aceitava qualquer governo que lhe desse algumas migalhas. Presas as lideranças que tentavam falar em seu nome, desfeitas as organizações, o povo, tão sonhado e imaginado como herói coletivo da revolução, parecia desaparecer do cenário político.
Mas, sob a paz de cemitério imposta pela repressão e pela censura, o solo popular se movia. A intensa urbanização, resultado da industrialização em marcha acelerada desde os anos 1950, criava um fluxo migratório interno sem precedentes. Milhões de pessoas saíam das áreas rurais, onde só conheciam miséria e falta de direitos básicos, e chegavam nas cidades, formando bairros e favelas em pouco tempo. Como não tinham emprego qualificado, nem condições de comprar ou alugar imóveis nos bairros mais bem estruturados, instalavam-se longe do centro, onde faltava tudo: escolas, transporte, hospitais, asfalto, esgotos.
Assim mesmo, não deve surpreender a possibilidade de que muitos desses migrantes achassem que sua vida nas periferias e favelas da cidade fosse melhor do que a que tinham no campo. O hospital era distante e lotado, mas ao menos existia. A escola, idem. Normalmente, era o primeiro equipamento público que chegava nas periferias, junto com a merenda escolar que, muitas vezes, significava a única refeição das crianças. O transporte era precário, mas dava-se um jeito.
Aos poucos, os moradores começaram a perceber que os problemas de um eram problemas de toda a vizinhança e que se todos, de alguma forma, reclamassem para a prefeitura e para as autoridades, era melhor do que ficar reclamando sozinho em casa. Mas como se reunir? Onde se reunir? Como achar tempo em um cotidiano tão atarefado pelas batalhas da sobrevivência? Como se reunir num período de repressão em que qualquer manifestação era considerada “subversiva”?