Resistência cotidiana

Desde os anos 1940, com o fim do Estado Novo e a ampliação do direito de voto para muitos trabalhadores, desde que alfabetizados, o melhor caminho para conquistar melhorias para o bairro era a chamada “barganha eleitoral”. Em outras palavras, essa expressão significa dizer a um candidato a deputado ou a vereador: “votamos em você, mas queremos uma escola, um posto de saúde no nosso bairro”. Às vezes dava certo, às vezes ficava só na promessa do candidato. Naquela época, as Sociedades Amigos de Bairro (SABs) faziam essa intermediação com os partidos e as autoridades; alimentavam essa relação pois, muitas vezes, tinham cabos eleitorais garantidos nos bairros.

Nos anos 1970, além da atuação das SABs, sobretudo nos bairros mais antigos e urbanizados, novas formas de organização começaram a surgir para discutir problemas do cotidiano dos trabalhadores nos bairros. A Igreja Católica, inspirada na “opção pelos pobres” do Concílio Vaticano II e do Encontro de Medellín (1968), enviou padres e agentes pastorais para as periferias. Essa ação resultou na formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), grupos não apenas de oração cristã, mas de discussões políticas e sociais. Afinal, como ter dignidade espiritual se não havia dignidade da pessoa humana, submetida à falta de direitos e à precariedade material extrema?

As CEBs se tornaram espaços de encontro. Foram criadas cerca de 200 mil delas em todo o Brasil ao longo dos anos 1970. Desse encontro, nasceram grupos de discussão, grupos culturais, grupos de pressão sobre as autoridades que, mesmo desconfiadas, não podiam lançar sobre elas a mesma repressão destinada aos “comunistas”. Afinal, a Igreja Católica sempre fora aliada da ordem social e saberia lidar com seus padres que se identificavam com a esquerda.

Mas não era apenas a Igreja que propiciava espaços de discussão e reflexão nos anos mais duros do regime militar. As organizações revolucionárias, sobretudo depois da derrota da luta armada, estimularam seus militantes a irem morar nos bairros, viver junto com os operários e “conscientizá-los”, como se dizia à época.

Operários que tinham seus sindicatos vigiados pelo governo, ou sob intervenção estatal, aproveitavam encontros em bares e campos de futebol de várzea para trocar ideias e pensar em novas formas de organização e ação para a conquista de melhores condições de trabalho e salários. Mulheres que não tinham onde deixar seus filhos para ir ao trabalho fundaram os “Clubes de Mães”. Problemas da vida comunitária e familiar ganhavam novos sentidos políticos e se conectavam aos grandes temas da resistência democrática.

Comunistas, socialistas, católicos de esquerda assumiram a tarefa de incentivar discussões, organizar grupos de leitura, estimular ações coletivas, que serviriam de base para novos movimentos sociais que tinham o bairro popular como epicentro. Padres sensíveis às questões sociais, líderes comunitários e mesmo políticos de carreira também se juntaram ao universo fervilhante dos bairros.

Nessas discussões e ações coletivas, a realidade se conectava à reflexão crítica, os problemas do cotidiano se interligavam ao contexto geral do país. A falta de dinheiro para o mercado era relacionada à alta dos preços, à inflação e ao “arrocho salarial” patrocinado pela política econômica do governo militar.

Com essas discussões, ficava cada vez mais claro que a violência policial, não apenas contra os “marginais”, mas contra trabalhadores que eram tomados como “suspeitos” por sua aparência ou cor da pele, estava relacionada à repressão geral patrocinada pelo regime.

O descaso das autoridades com demandas simples, como hospitais, escolas, transporte, era explicado pela “falta de direitos” e de democracia, em que a maioria não podia governar de fato. O cotidiano e o bairro começaram a ser vistos não mais como espaços de reprodução da alienação, como pensava a esquerda mais tradicional, mas como lugar de uma nova sociabilidade, de um novo sujeito político que parecia emergir naqueles tempos sombrios.

Muitos setores da esquerda organizada começaram a se perguntar: quem será o verdadeiro alienado, o povo, as bases populares, que nunca tiveram espaço real nas organizações dominadas por militantes de classe média, ou os intelectuais que aparentavam saber tudo? Parecia que as lideranças intelectuais nunca haviam percebido as lutas invisíveis e as pequenas ações cotidianas protagonizadas pelos trabalhadores, em busca de dignidade e de direitos, porque a palavra de ordem não era “revolução”.

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