Luiz Eduardo da Rocha Merlino foi preso no dia 15 de julho de 1971 na casa de sua mãe, em Santos, por homens que se apresentaram a ele como agentes da OBAN. Tanto Luiz Eduardo quanto sua companheira, Ângela Maria Mendes de Almeida, que se encontrava na França na época, militavam no POC, organização que no período era monitorada pela OBAN, conforme atesta relatório do II Exército, de 5 de julho de 1971. Luiz Eduardo morreu no dia 19 de julho de 1971. Apesar da certidão de óbito, expedida por autoridade competente, registrar a data da morte no dia 19 de julho de 1971, a família de Merlino somente foi informada sobre sua morte na noite do dia seguinte. Conforme versão apresentada na ocasião pelos órgãos de repressão, reproduzida em informe do Serviço Nacional de Informações (SNI) de 1º de agosto de 1979, a morte teria sido causada por atropelamento em tentativa de fuga, enquanto o militante era transportado para o Rio Grande do Sul, onde deveria reconhecer companheiros de organização. Segundo essa versão oficial, Merlino teria morrido após ter escapado da guarda que o conduzia e se atirado embaixo de um veículo, na BR-116, na altura de Jacupiranga (SP). O documento através do qual foi feita a requisição de laudo necroscópico do corpo de Merlino, ao narrar o histórico do caso, declara que “(…) no dia e hora supra mencionados [19/07/71 – 19h30min – BR-116 Jacupiranga] ao fugir da escolta que o levava para Porto Alegre, RS, na estrada BR-116 foi atropelado e em consequência dos ferimentos faleceu”. O exame necroscópico do corpo de Merlino, assinado pelos médicos-legistas Isaac Abramovitc e Abeylard de Queiroz Orsini, apontou como causa mortis anemia aguda traumática (por ruptura da artéria ilíaca direita). Quanto ao preenchimento do item do laudo que questionava se a morte havia sido provocada por tortura ou outro meio insidioso ou cruel, os peritos responderam negativamente. A certidão de óbito foi assinada pelo legista Isaac Abramovitc, tendo como declarante o delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Alcides Cintra Bueno Filho. Esse documento indica como causa da morte “anemia aguda traumática”. Há muitas evidências da falsidade da versão de atropelamento em tentativa de fuga. Diversos presos políticos testemunharam que Merlino foi conduzido para a sede do DOI-CODI/SP e submetido a sessão de tortura que durou em torno de 24 horas seguidas. Em depoimento à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo (CEV-SP) na audiência pública de 13 de dezembro de 2013 sobre o caso de Merlino, Leane Ferreira de Almeida, presa no mesmo dia que Merlino, e também torturada no pau de arara, afirmou que “[…] os torturadores do dia eram o Ustra com certeza, e esse outro o […] [Maurício Lourival] Gaeta”. Eleonora Menicucci de Oliveira, torturada junto com Merlino, confirmou “[…] a presença do [Carlos Alberto Brilhante] Ustra na sala de tortura, do J.C. [Dirceu Gravina] e do Ubirajara [Aparecido Laertes Calandra], que ora torturavam Nicolau [Luiz Eduardo Merlino] no pau de arara, ora a mim na cadeira do dragão”. Em testemunho posterior, Eleonora complementou: O Nicolau tinha uma ferida enorme, quadrada, retangular, na perna, sangrava muito. Muito! E mesmo assim, ele continuava tomando muito choque, muito chute, muita tortura. E eu, na cadeira do dragão. […] depois, muito tempo depois, já na Escola Paulista de Medicina, isso vinha à minha cabeça, e meus colegas, médicos, diziam, “Como é que estava a ferida?”, eu dizia “Preta. Sangrando, mas já estava… Já estava gangrenando.” Ieda Akselrud de Seixas, que também estava presa quando da tortura de Merlino, relatou: […] eu lembro que o Merlino foi torturado a noite inteira, não houve, se dava alguma folga foi, de certo, para eles descansarem, eu não sei. No outro dia de manhã, o [Maurício Lourival] Gaeta […] apareceu na porta da cela e perguntou o que nós estávamos fazendo ali. […] “O que vocês estão fazendo aí, porra?” Nós estamos aqui porque nos trouxeram, aí tiraram o Merlino da sala, ele estava no colo, e eu lembro de que me chamou a atenção porque o Merlino, pelo que parece, era muito míope, não é? Então ele fazia assim para enxergar, aí o cara chegou e disse assim, “Ele não está fazendo xixi”, aí ele disse assim, “porra, mas esse cara é difícil, ele parece o Arrudão”, o Diógenes Arruda, o militante do PCzão “porque ele não fala, não tem jeito, ele não fala, o Arrudão, eu arrebentei meu relógio de tanto torturar ele e ele não falou, e esse cara está pensando que ele é quem? Ele não vai acabar bem, não.” Mas assim, a naturalidade, ele parado ali na porta, “pode deixar que eu já vou lá resolver isso porque hoje ele vai falar de qualquer jeito.” Ivan Ankselrud Seixas, que estava preso em uma cela ao lado da sala onde Merlino foi torturado, declarou na mesma audiência pública da CEV-SP que, depois de ouvir a noite inteira a tortura de Merlino, viu “[…] o Ustra comandando a retirada e a limpeza da cela de tortura, e ele dizia, „traz ele para cá, põe ele aqui, limpa lá o sangue, limpa lá essa porcaria, limpa isso, limpa aquilo‟. E os torturadores, que tinham muito medo também do Ustra, iam rapidamente limpando tudo”. Depois de ser retirado da sala de tortura, apesar de se queixar de fortes dores nas pernas – consequência da longa permanência no pau de arara –, Merlino foi abandonado sem qualquer atendimento médico em uma cela da carceragem conhecia à época como “celaforte” ou “X-zero”. De acordo com o depoimento prestado por Guido Rocha, ex-preso político que esteve preso junto a Merlino, “X-zero” era uma cela quase totalmente escura, sem janelas, de chão de cimento, em cujo chão havia um colchão sujo de sangue. Guido contou que estava na cela no momento em que os policiais levaram Merlino, após o terem submetido a longa sessão de tortura, e que Merlino chegou à cela carregado, muito machucado, mas que se mantinha calmo. Seu estado de saúde começou a piorar: as pernas ficaram dormentes e para utilizar a privada, Merlino tinha que ser carregado. Sem conseguir se levantar, foi ainda acareado deitado, com outro preso levado para a cela com essa finalidade. Guido Rocha e outros ex-presos políticos relataram que, diante da piora do estado de saúde de Merlino, os agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) o levaram para um pátio em frente à cela, onde um agente que se dizia enfermeiro começou a aplicar massagens em suas pernas. A massagem, aplicada pelo suposto enfermeiro – que era conhecido como “Boliviano” ou “Índio”–, foi testemunhada por diferentes presos políticos. O ex-capitão do Exército e hoje coronel reformado, Pedro Ivo Moezia de Lima, confirmou em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 9 de setembro de 2014 que esse enfermeiro de traços indígenas integrava a equipe do DOI-CODI à época. De acordo com a denúncia detalhada à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), efetuada pelos presos políticos do Presídio da Justiça Militar Federal de São Paulo, de 1975, o enfermeiro “Índio” era do Exército e do estado do Acre. O mesmo documento descreve que, quando da referida massagem, “suas nádegas [de Merlino] estavam em carne viva e suas pernas tinham feridas e extensos hematomas”. Uma das testemunhas, Paulo de Tarso Vannuchi, que era estudante de medicina, observou que a perna de Merlino tinha a cor da cianose, indicando risco de gangrena. Depois da massagem nas pernas, Merlino foi reconduzido à cela de Guido Rocha, onde os agentes da repressão fizeram um teste de reflexo em seu joelho, sem obter resposta alguma: […] Vieram, fizeram o teste de reflexo no joelho e não tinha resposta nenhuma. O enfermeiro ficou perturbado com isso e não sabia o que fazer. Eu falei: o estado dele é grave, acho que convém levar para o hospital. O enfermeiro ficou irritado comigo, disse que ele é que sabia, que já tinha recuperado outros presos políticos, que estavam em estado muito pior do que aquele, que aquilo não era nada para ele. Fechou a porta. […] Depois que fecharam a porta, Merlino começou a piorar muito, logo em seguida. À noite começou a se sentir mal, estava bem pior. Eu tinha conseguido uma pêra e dei a ele. Porque ele rejeitava tudo, não comia nada. Eu não me lembro dele ter comido nem uma vez… porque ele tentava comer e vomitava sangue. Aí ele começou a mudar, a ficar nervoso, falou que estava piorando… vomitou sangue outra vez. Eu tentei acalmá-lo. Ele pediu que eu o colocasse sentado. Merlino nunca ficou em pé desde o primeiro dia. Bem, eu tentei acalmá-lo, comecei a dizer a ele para respirar fundo, fazer a respiração de ioga, manter um pouco de calma. Mas ele ficou muito nervoso e falou: “chama o enfermeiro rápido que eu estou muito mal, a dormência está subindo, está nas duas pernas e nos braços também”. Aí eu bati na porta com força e gritei e vieram o enfermeiro e alguns torturadores, policiais, os mesmos que já haviam me torturado e torturado a ele também. Vieram e o levaram. Agora vou dar um detalhe que pode levar a alguma prova de alguma coisa. Na hora que eles saíram, de madrugada, eu estava muito arrebentado, e eu imediatamente deitei. Eu deitei e eles fizeram uma troca de sapatos. Levaram os meus sapatos e deixaram o dele; pode ser que entregaram à família dele sapatos que não eram dele. Leane Ferreira de Almeida afirmou à CEV-SP que, da cela onde estava presa, viu Merlino, ou seu corpo – não sabe dizer se estava vivo ou já morto – sendo colocado no porta-malas de um carro. Merlino provavelmente foi levado ao Hospital Geral do Exército entre os dias 18 e 19, onde faleceu. De acordo com o testemunho de Otacílio Guimarães Cecchini, que também estava preso no DOI-CODI no mesmo período, durante o seu interrogatório: entra um militar, com traje de civis, ele entra e diz que havia um telefonema, se dirigindo ao Ustra, que tinha um telefonema do hospital, não fala qual hospital, que os médicos estavam pedindo contato com a família do Merlino. Pedindo contato porque haveria a necessidade de uma amputação. Isso condiz com o que foi relatado por um torturador (“Oberdan” ou “Zé Bonitinho”) a Joel Rufino dos Santos, conforme relato deste à CEV-SP: […] a penúltima vez que eu soube do Merlino, foi um torturador, Oberdan, que aparece em todas as listas de torturadores. Oberdan, a uma certa altura, me dando porrada parou e puxou uma conversa sem vergonha, como eles às vezes faziam depois de bater, de aplicar choques, vinham com conversas. O Oberdan me disse assim, “seu amigo esteve aqui”. Que amigo? Aí ele me contou a versão da morte do Merlino. […] Ele me disse o seguinte, “olha, seu amigo esteve aqui e ele quis dar uma de durão, acabou com as pernas gangrenadas e foi levado para o Hospital do Exército”. Ele disse Hospital do Exército exatamente. “E de lá telefonaram dizendo que precisavam amputar as pernas dele para ele sobreviver. O Major Ustra fez aqui uma votação, eu votei”, diz ele, o torturador, “votei para amputarem as pernas e salvarem a vida dele, mas fui voto vencido”. Vê a conversa do cara. “E venceu a ideia de deixar ele morrer. Foi assim que seu amigo que esteve aqui morreu”. A família de Merlino, tão logo soube da sua morte, dirigiu-se ao Instituto Médico-Legal de São Paulo (IML/SP). O funcionário responsável informou que o corpo de Luiz Eduardo não se encontrava no local. Entretanto, o marido de Regina Merlino, irmã de Luiz Eduardo, Adalberto Dias de Almeida, que era delegado de polícia, conseguiu vencer a vigilância e, ingressando no IML, encontrou o corpo de Luiz Eduardo com sinais de tortura. Apesar da censura, o jornal A Tribuna, de Santos, publicou uma matéria a respeito do seu falecimento no dia 27 de agosto de 1971. Em um trecho da notícia foi citado o despacho enviado de Paris pela Agência Reuters, uma semana antes, comunicando que Merlino havia sido preso pelas autoridades de Segurança Nacional do Brasil. Na mesma data, O Estado de S. Paulo publicou uma nota convidando “(…) os jornalistas brasileiros e o povo em geral para a missa de trigésimo dia do seu falecimento, a realizar-se dia 28 de agosto, na Catedral da Sé, em São Paulo”. A missa contou com a presença de jornalistas e amigos da família. A companheira de Luiz Eduardo, Ângela Mendes de Almeida, condenada pela justiça militar, não pôde comparecer ao evento. De acordo com a irmã de Luiz Eduardo, Regina Merlino, havia entre os presentes muitos policiais armados e, inclusive, em mais uma demonstração de arrogância e desrespeito, os mesmos três homens que haviam efetuado a prisão de Merlino em sua casa foram dar os pêsames à família. O corpo de Luiz Eduardo da Rocha Merlino foi enterrado no cemitério de Paquetá, em Santos, São Paulo. Na década de 1990, o laudo de necropsia de Luiz Eduardo foi analisado, a pedido da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, pelo médico Antenor Chicarino. O médico verificou que a fotografia constante do laudo revelava manchas roxas no braço direito, no nariz e na testa, compatíveis com as causadas por instrumentos de tortura, as quais não foram apontadas no laudo. Observou ainda que as lesões compatíveis com marcas de pneus estão localizadas na sola dos pés, pernas, nádegas, cotovelos e braços de Merlino, e que as escoriações na sola dos pés não seriam explicáveis, tendo em vista que Merlino estava calçado com botas de couro. O médico Dolmevil, por sua vez, destacou, em complemento, inchaço no lábio inferior e uma mancha roxa horizontalizada paralela em toda a linha de implantação dos cabelos, na região frontal. Os documentos de declaração de preso de Merlino, datados de 17 a 19 de julho, atestam que ele foi interrogado pelas equipes preliminares A e B do DOI-CODI/SP. A equipe de perícia da CNV compareceu ao setor Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) no Arquivo Público de São Paulo e localizou um Termo de Declarações de Luiz Eduardo Rocha dos dias 17/18 de julho de 1971, com o nº 04841 impresso, constante da pasta 50-Z-0009 documentos 207000 e 20701, com uma rubrica na parte superior direita junto ao carimbo “II EXERCITO CODI” e uma rubrica próxima à margem esquerda (documentos do mesmo dia, com a mesma numeração dos apresentados para exame). As rubricas apostas junto ao carimbo do “II EXERCITO” foram identificadas como sendo do capitão Ênio Pimentel da Silveira, então chefe substituto da Seção de Investigação do DOI-CODI do II Exército. Em 8 de setembro de 2014, a CNV enviou ofício ao Hospital Militar da Área de São Paulo, requerendo cópia de prontuário médico e de outros registros eventualmente existentes acerca de Merlino, bem como solicitando que fossem informados os nomes dos médicos que fizeram plantão no período em que Merlino esteve internado. O pedido foi reiterado em 18 de novembro de 2014. De acordo com a resposta do diretor do hospital, coronel Arno Ribeiro Jardim Junior, recebida em 27 de novembro de 2014, “[…] não foram encontrados registros nosológicos do Sr Luiz Eduardo da Rocha Melino nesta Organização Militar de Saúde”.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Luiz Eduardo da Rocha Merlino morreu em decorrência de tortura praticada por agentes do Estado brasileiro, em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar instaurada no Brasil a partir de abril de 1964. Recomenda-se a retificação da certidão de óbito de Luiz Eduardo da Rocha Merlino para que conste como causa da morte “morto em razão de tortura sofrida nas dependências do DOI-CODI do II Exército/SP”, assim como a continuidade das investigações sobre as circunstâncias da morte e sobre todos os agentes envolvidos, inclusive para o esclarecimento da identidade de “Oberdan” (“Zé Bonitinho‟‟), de “Marechal” e de “Boliviano” ou “Índio”. Recomenda-se ainda a continuidade das investigações para o esclarecimento da composição integral da equipe que estava de plantão na noite de 15 para 16 de julho de 1971, no DOI-CODI do II Exército, quando Merlino foi torturado por cerca de 24 horas ininterruptas, bem como das equipes de 17 a 18 de julho e de 18 a 19 de julho, e a continuidade das diligências junto ao Hospital Militar (da Área de São Paulo, no Cambuci), de modo a se obter o esclarecimento das circunstâncias do atendimento prestado a Merlino entre os dias 16 e 19 de julho de 1971 e da identidade dos médicos de plantão. Recomenda-se, finalmente, a responsabilização de todos os agentes envolvidos.