Um dos princípios da repressão judicial a “crimes políticos” foi a submissão dos civis acusados de subversão à Justiça Militar. A Lei de Segurança Nacional de 1967 do Ato Institucional Nº2 (AI-2), de outubro de 1965, definia esse princípio.
Com a promulgação da nova Lei de Segurança Nacional, em 1967, e com o Ato Institucional Nº5 (AI-5), em 1968, o aparato legal de repressão ganhou novos tentáculos. A nova lei criou mais de 30 crimes contra a segurança nacional, entre eles, propaganda contra a ordem, organização de grupos de contestação, ações armadas ou não contra o Estado, agressão verbal à autoridades, auxílio a “potências estrangeiras”, ultraje aos símbolos nacionais, aliciamento para paralisações de funcionários públicos, etc.
O AI-5 reforçou os poderes pessoais do presidente da República, que poderia cassar mandatos, direitos políticos e decretar “estado de sítio” (quando se suspende as garantias constitucionais mínimas dos cidadãos) sem consulta ao Congresso. Além disso, o habeas corpus ficava suspenso para crimes políticos e o preso poderia ficar incomunicável por dez dias.
A repressão ilegal autorizada: o Estado fora da lei
Além desses métodos legais de repressão, que atingiram milhares de cidadãos e impactaram sobretudo o sistema político partidário, militantes de causas sociais e sindicais, intelectuais e jornalistas, o regime se utilizou de métodos de repressão ilegais, mesmo à luz da legislação e dos princípios constitucionais que ele mesmo criou. Nem a Constituição de 1967, ou sua emenda ainda mais autoritária de 1969, autorizavam a tortura ou a prisão de indivíduos mediante sequestro ou invasão de casas. Mas não foi isso que se observou na prática.
É importante notar que esses métodos constituíam um sistema, de acordo com os princípios da contrainsurgência teorizado pelos militares franceses. Isso quer dizer que, se o Estado estava ameaçado por uma insurgência, deveria ter métodos especiais e eficazes mesmo que não estivessem previstos em lei.
No contexto da América Latina dos anos 1960 e 1970, esse sistema foi reorganizado no Brasil, e exportado para outros regimes autoritários do continente latino-americano. Vale lembrar que a tortura era praticada havia muito tempo no Brasil, seja contra os escravizados fugitivos ou rebeldes desde o período colonial, seja contra prisioneiros comuns do Estado contemporâneo. A própria tortura sistemática já era utilizada pelo regime militar desde o golpe de 1964, com incidência maior no Nordeste brasileiro, onde os movimentos populares e as lideranças de esquerda eram particularmente atuantes junto aos movimentos de camponeses. A repercussão foi tão grande que, por volta de 1966, o governo chegou a enviar Ernesto Geisel, até então Chefe do Gabinete Militar, para Recife, com a missão de investigar as denúncias de tortura. O resultado não surpreende: Geisel encerrou sua missão concluindo que ninguém foi torturado. Esse sistema estava baseado na integração de métodos de informação militar e investigação policial paralegal. Mas, além disso, a partir de 1970, principalmente até 1975, criou-se a figura do desaparecido político, produzida pela prática de ocultação de cadáveres dos presos políticos mortos em condições de cativeiro, seja em centros ilegais clandestinos, seja em dependências oficiais das forças de segurança.
A maior novidade da repressão política dos anos 1970 foi a integração desses métodos dentro de um sistema repressivo que coordenava, sob comando militar, vários núcleos de segurança. Assim, em linhas gerais, podemos definir um claro modus operandi da repressão e suas variáveis, aplicado seletivamente conforme o grau de envolvimento do prisioneiro com a luta armada ou com grupos “subversivos” em geral. No “modo completo” a repressão incluía os seguintes passos:
1) Sequestro por uma equipe de captura;
2) Interrogatório policial-militar conduzido por uma equipe especializada, via de regra, à base de torturas diversas;
3) Execução extrajudicial, que em muitos casos era produto da própria tortura, embora nem sempre os interrogadores tivessem a intenção de matar o prisioneiro;
4) Ocultação do cadáver, com apoio de diversos outros elementos e núcleos do sistema repressivo.
A invenção dos “desaparecidos políticos”
A partir do final de 1969 até 1971, parte da esquerda armada apelou para sequestros de embaixadores, que serviram como moeda de troca, visando a libertação de muitos presos políticos, que logo após conquistarem a liberdade, eram “banidos” do Brasil. Estes faziam denúncias para organismos internacionais de direitos humanos, com sedes na Europa e nos Estados Unidos, conseguindo que ficasse conhecida a face mais cruel da ditadura.
Em resposta a isso, cresceu a opção pelo sequestro, morte e desaparecimento clandestino de presos políticos, evitando que a ditadura tivesse que prestar contas à sociedade, aos familiares e aos organismos internacionais sobre seus presos. Afinal, o “desaparecido” não estava oficialmente preso, nem oficialmente morto. O Estado fingia que o assunto não era com ele, colocando a culpa pelos desaparecimentos nas próprias organizações de esquerda.
A ocultação de cadáveres não era um processo simples e improvisado. Recentes depoimentos à Comissão Nacional da Verdade e a outras comissões locais vêm desnudando essa técnica. Ela incluía:
1) A retirada clandestina dos corpos no caso de o prisioneiro ter morrido em dependências oficiais;
2) A quebra da arcada dentária e a decepação das falanges (dedos), para dificultar eventual identificação posterior (sobretudo em casos onde os corpos eram enterrados em valas comuns destinadas a indigentes);
3) O esquartejamento, a incineração ou a imersão em ácido para fazer o corpo, literalmente, desaparecer ou, como opção, o arremesso dos corpos em rios e mares, com peso atado, para que eles não voltassem à tona ou aparecessem nas margens e praias.
Conforme o depoimento insuspeito do coronel Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade:
“Naquela época não existia DNA, concorda comigo? Então, quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais, só. Quebravam os dentes e cortavam os dedos. As mãos, não. E aí, se desfazia do corpo”.
Além disso, depois do desaparecimento em si, havia todo um sistema de contrainformação para despistar os familiares que buscavam informações, tentando desviar possíveis investigações privadas, já que o Estado nada fazia para elucidar tais casos. Para o sistema repressivo, essa solução tinha a vantagem de desobrigar o governo e as autoridades como um todo de qualquer informação oficial sobre o militante desaparecido. Oficialmente, nem preso, nem morto.
O fato é que os temas da tortura e dos desaparecimentos tornaram-se uma verdade cada vez mais inconveniente para as consciências liberais ou religiosas, mesmo para as mais conservadoras.