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Miguel Arraes no dia de sua prisão, 1º de abril de 1964
Miguel Arraes no dia de sua prisão, 1º de abril de 1964, após não renunciar e persistir no Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco

Disfarce legalista e métodos ilegais

Disfarce legalista e métodos ilegais
A manchete da Folha de São Paulo destaca a dita normalidade
A manchete da Folha de São Paulo destaca a dita normalidade

Um dos princípios da repressão judicial a “crimes políticos” foi a submissão dos civis acusados de subversão à Justiça Militar.  A Lei de Segurança Nacional de 1967 do Ato Institucional Nº2 (AI-2), de outubro de 1965, definia esse princípio.

Com a promulgação da nova Lei de Segurança Nacional, em 1967, e com o Ato Institucional Nº5 (AI-5), em 1968, o aparato legal de repressão ganhou novos tentáculos. A nova lei criou mais de 30 crimes contra a segurança nacional, entre eles, propaganda contra a ordem, organização de grupos de contestação, ações armadas ou não contra o Estado, agressão verbal à autoridades, auxílio a “potências estrangeiras”, ultraje aos símbolos nacionais, aliciamento para paralisações de funcionários públicos, etc.

O AI-5 reforçou os poderes pessoais do presidente da República, que poderia cassar mandatos, direitos políticos e decretar “estado de sítio” (quando se suspende as garantias constitucionais mínimas dos cidadãos) sem consulta ao Congresso. Além disso, o habeas corpus ficava suspenso para crimes políticos e o preso poderia ficar incomunicável por dez dias.

A repressão ilegal autorizada: o Estado fora da lei

Além desses métodos legais de repressão, que atingiram milhares de cidadãos e impactaram sobretudo o sistema político partidário, militantes de causas sociais e sindicais, intelectuais e jornalistas, o regime se utilizou de métodos de repressão ilegais, mesmo à luz da legislação e dos princípios constitucionais que ele mesmo criou. Nem a Constituição de 1967, ou sua emenda ainda mais autoritária de 1969, autorizavam a tortura ou a prisão de indivíduos mediante sequestro ou invasão de casas. Mas não foi isso que se observou na prática.

É importante notar que esses métodos constituíam um sistema, de acordo com os princípios da contrainsurgência teorizado pelos militares franceses. Isso quer dizer que, se o Estado estava ameaçado por uma insurgência, deveria ter métodos especiais e eficazes mesmo que não estivessem previstos em lei.

No contexto da América Latina dos anos 1960 e 1970, esse sistema foi reorganizado no Brasil, e exportado para outros regimes autoritários do continente latino-americano. Vale lembrar que a tortura era praticada havia muito tempo no Brasil, seja contra os escravizados fugitivos ou rebeldes desde o período colonial, seja contra prisioneiros comuns do Estado contemporâneo. A própria tortura sistemática já era utilizada pelo regime militar desde o golpe de 1964, com incidência maior no Nordeste brasileiro, onde os movimentos populares e as lideranças de esquerda eram particularmente atuantes junto aos movimentos de camponeses. A repercussão foi tão grande que, por volta de 1966, o governo chegou a enviar Ernesto Geisel, até então Chefe do Gabinete Militar, para Recife, com a missão de investigar as denúncias de tortura. O resultado não surpreende: Geisel encerrou sua missão concluindo que ninguém foi torturado. Esse sistema estava baseado na integração de métodos de informação militar e investigação policial paralegal. Mas, além disso, a partir de 1970, principalmente até 1975, criou-se a figura do desaparecido político, produzida pela prática de ocultação de cadáveres dos presos políticos mortos em condições de cativeiro, seja em centros ilegais clandestinos, seja em dependências oficiais das forças de segurança.

Em 1974, Fernando Santa Cruz havia saído de casa para aproveitar o carnaval
Em 1974, Fernando Santa Cruz havia saído de casa para aproveitar o carnaval. O jovem pernambucano nunca mais foi visto. Na imagem ele segura seu filho, Felipe.

A maior novidade da repressão política dos anos 1970 foi a integração desses métodos dentro de um sistema repressivo que coordenava, sob comando militar, vários núcleos de segurança. Assim, em linhas gerais, podemos definir um claro modus operandi da repressão e suas variáveis, aplicado seletivamente conforme o grau de envolvimento do prisioneiro com a luta armada ou com grupos “subversivos” em geral. No “modo completo” a repressão incluía os seguintes passos:

1) Sequestro por uma equipe de captura;
2) Interrogatório policial-militar conduzido por uma equipe especializada, via de regra, à base de torturas diversas;
3) Execução extrajudicial, que em muitos casos era produto da própria tortura, embora nem sempre os interrogadores tivessem a intenção de matar o prisioneiro;
4) Ocultação do cadáver, com apoio de diversos outros elementos e núcleos do sistema repressivo.

A invenção dos “desaparecidos políticos”

A partir do final de 1969 até 1971, parte da esquerda armada apelou para sequestros de embaixadores, que serviram como moeda de troca, visando a libertação de muitos presos políticos, que logo após conquistarem a liberdade, eram “banidos” do Brasil. Estes faziam denúncias para organismos internacionais de direitos humanos, com sedes na Europa e nos Estados Unidos, conseguindo que ficasse conhecida a face mais cruel da ditadura.

O sequestro do embaixador alemão em 1970
O sequestro do embaixador alemão em 1970 fez parte de uma sequência de ações dos grupos armados

Em resposta a isso, cresceu a opção pelo sequestro, morte e desaparecimento clandestino de presos políticos, evitando que a ditadura tivesse que prestar contas à sociedade, aos familiares e aos organismos internacionais sobre seus presos. Afinal, o “desaparecido” não estava oficialmente preso, nem oficialmente morto. O Estado fingia que o assunto não era com ele, colocando a culpa pelos desaparecimentos nas próprias organizações de esquerda.

A ocultação de cadáveres não era um processo simples e improvisado. Recentes depoimentos à Comissão Nacional da Verdade e a outras comissões locais vêm desnudando essa técnica. Ela incluía:

1) A retirada clandestina dos corpos no caso de o prisioneiro ter morrido em dependências oficiais;
2) A quebra da arcada dentária e a decepação das falanges (dedos), para dificultar eventual identificação posterior (sobretudo em casos onde os corpos eram enterrados em valas comuns destinadas a indigentes);
3) O esquartejamento, a incineração ou a imersão em ácido para fazer o corpo, literalmente, desaparecer ou, como opção, o arremesso dos corpos em rios e mares, com peso atado, para que eles não voltassem à tona ou aparecessem nas margens e praias.

Conforme o depoimento insuspeito do coronel Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade:

“Naquela época não existia DNA, concorda comigo? Então, quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais, só. Quebravam os dentes e cortavam os dedos. As mãos, não. E aí, se desfazia do corpo”.

Além disso, depois do desaparecimento em si, havia todo um sistema de contrainformação para despistar os familiares que buscavam informações, tentando desviar possíveis investigações privadas, já que o Estado nada fazia para elucidar tais casos. Para o sistema repressivo, essa solução tinha a vantagem de desobrigar o governo e as autoridades como um todo de qualquer informação oficial sobre o militante desaparecido. Oficialmente, nem preso, nem morto.

O fato é que os temas da tortura e dos desaparecimentos tornaram-se uma verdade cada vez mais inconveniente para as consciências liberais ou religiosas, mesmo para as mais conservadoras.

Lei de Segurança Nacional de 1967

1º Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei.

Art. 2º A segurança nacional é a garantia da consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos como externos.

Art. 3º A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva.

§ 1º A segurança interna, integrada na segurança nacional, diz respeito às ameaças ou pressões antagônicas, de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou produzam efeito no âmbito interno do país.

§ 2º A guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.

§ 3º A guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo controle progressivo da Nação.

Art. 4º Na aplicação deste decreto-lei o juiz, ou Tribunal, deverá inspirar-se nos conceitos básicos da segurança nacional definidos nos artigos anteriores.

Repressão paralegal

A tortura já existia havia muito tempo no Brasil, praticada inclusive pela polícia, política ou não. Os sequestros e espancamentos “punitivos” também eram comuns, praticadas por paramilitares ou militares, normalmente utilizados em situações de conflito político. Execuções extrajudiciais também passaram a ser frequentes, sobretudo no caso de criminosos comuns, depois da criação dos “Esquadrões da Morte”, no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Os esquadrões da morte eram bandos imorais e violentos, que vendiam proteção a criminosos mais ricos e participavam do lucro com o tráfico de drogas, principalmente. Além disso, esses esquadrões vingavam policiais mortos por bandidos.

Militantes desaparecidos

Em 1972, o governo teve que enfrentar a “crise dos desaparecidos”. Foi quando o desaparecimento de militantes começou a ser amplamente divulgado no exterior e passou a mobilizar de maneira mais sistemática as famílias envolvidas.

Antes das eleições legislativas de 1974, o MDB assumiu o tema dos desaparecidos, que explodiu para o debate público no começo do governo Geisel. Em julho de 1974, o MDB interpelou o governo sobre o tema, ameaçando convocar o ministro da Justiça, Armando Falcão para depor no Congresso.

O tema dos “desaparecidos” incomodava a opinião pública, mesmo aquela que era contrária ao marxismo e avessa à revolução. Os liberais viviam uma contradição, perceptível nas páginas da imprensa desde 1968: pediam rigor no combate ao “terrorismo de esquerda”, mas, quando o governo os atendia com todos os meios próprios de uma ditadura, assustavam-se com os efeitos diretos e indiretos da repressão, ou seja, a vigilância generalizada e a censura.

Dos 169 militantes desaparecidos no Brasil, 53 ocorrências foram no ano de 1974, boa parte após a posse de Geisel. Assim como não reconhecia a existência de torturas e execuções extrajudiciais, o governo continuou não reconhecendo qualquer responsabilidade na questão dos desaparecidos, culpando eles próprios e suas organizações. Com isso, o governo se livrava de dar qualquer satisfação à sociedade.

Em agosto de 1974, depois da posse do presidente Ernesto Geisel, Dom Paulo Evaristo Arns entregou a relação de 27 desaparecidos ao governo, 21 deles ocorridos a partir da posse do novo presidente que prometia distensão. O ministro da Justiça Armando Falcão foi à TV dar a versão do governo: dos 27 desaparecidos cobrados pela oposição, constavam 6 foragidos, 7 colocados em liberdade, 5 com destino ignorado, 1 morto na Bolívia, 1 banido, 2 ainda na clandestinidade e 1 refugiado na Tchecoslováquia. Não foi encontrada explicação, ainda que fantasiosa, para 4 nomes.

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