A repressão à base de tortura superou qualquer limite jurídico ou humanitário, violando os direitos humanos, ferindo inclusive a ética militar, que prega o tratamento digno dos prisioneiros de guerra, conforme a Convenção de Genebra. Nem se pode afirmar que o Brasil estivesse, efetivamente, em guerra civil, mas no imaginário de parte dos militares e militantes de esquerda era isso o que acontecia: uma guerra interna motivada por ideias como a defesa da “sociedade cristã ocidental” ou a “derrubada do regime e construção do socialismo”, dependendo do ponto de vista.
Para driblar o precário controle dos comandantes ou para evitar eventuais problemas em utilizar instalações oficiais para cometer atos ilegais, como a tortura, ou mesmo agir sem envolver diretamente o comando formal, muitas equipes de tortura tinham centros clandestinos, como a chamada “Casa da Morte” em Petrópolis, Rio de Janeiro.
O fato de ter autonomia operativa não significava propriamente um descontrole do sistema repressivo; até hoje as Forças Armadas não enfrentaram essa questão, preferindo explicar, oficialmente, os casos de tortura como “excessos” individuais e esporádicos, ou simplesmente silenciar sobre o período.
Mas, com base em fatos expostos mais adiante, é possível argumentar que, em nenhum momento do regime a repressão esteve completamente sem o controle da cúpula militar. A criação do sistema DOI-Codi, em grande parte, permitiu esse controle por se submeter aos comandos militares de cada Exército.
A tortura como princípio de ação repressiva
A tortura é um sistema dotado de métodos para provocar dor, extrair informações e humilhar a pessoa presa. Em alguns casos, era uma técnica para se provocar a morte lenta de presos já condenados por algum motivo, e executada pelas equipes de repressão. Esse foi o caso, por exemplo, de Eduardo Leite, o “Bacuri”, torturado por mais de 40 dias, período em que teve os olhos arrancados e as pernas lentamente consumidas pela gangrena provocada pelas infecções das fraturas e feridas.
É importante sublinhar que a tortura não é mera violência aleatória e momentânea, feita por um agente policial em estado de tensão diante de uma situação de confronto. Trata-se de uma técnica sistemática de uso da violência extrema, atroz e propositalmente pensada para ferir o corpo e a psique do preso.
Sendo um sistema, a tortura não é um ato isolado do torturador, uma decisão de porão, um excesso. Foi aprendida em cursos para militares e policiais selecionados, com a utilização de presos em aulas práticas. As principais técnicas utilizadas no Brasil foram desenvolvidas pelos nazistas, pelos franceses e pelos norte-americanos. Mas a criatividade nacional também contribuiu para essa história triste, com a criação, por exemplo, do pau-de-arara para imobilizar e espancar os presos.
A tortura está baseada na combinação de três elementos principais: humilhação, dor extrema e ruptura da sanidade mental dos presos. Com menor ou maior grau de violência física, era uma decisão dos comandos das equipes de interrogatório. Em muitos casos, a humilhação já abalava a força mental do preso. Vale lembrar que a primeira lição das aulas de tortura era deixar o prisioneiro nu durante as sessões, para melhor humilhá-lo e feri-lo em sua dignidade humana.
Como não há registros de torturadoras do sexo feminino, as equipes que interrogavam mulheres eram compostas por homens, multiplicando o potencial de humilhação, por conta da exposição do corpo da mulher e da ameaça de ataques sexuais às prisioneiras durante as sessões.
Outro elemento fundamental da técnica era a organização das sessões de tortura de maneira sistemática, mas, ao mesmo tempo, imprevisível. As sessões podiam ser planejadas para durar horas ou dias seguidos, conforme a resistência mental e física do preso, também podiam ser interrompidas, com a certeza de que o preso voltaria para uma próxima sessão, em dias e horários indefinidos. Havia a possibilidade do preso ser acordado com chutes de madrugada e seguir para uma nova sessão de tortura, quando nem havia se recuperado da anterior. Conforme testemunhos, essa era uma das piores sensações dos prisioneiros: a espera pela próxima sessão, que, conforme a promessa dos torturadores, seria pior que a anterior.
As equipes de interrogatório também utilizavam de estratégias psicológicas, alternando um interrogador brutal, com um tipo polido, paternalista, que prometia ajudar e proteger o preso de novas violências. O objetivo era provocar a chamada Síndrome de Estocolmo, quando o sequestrado cativo fica dependente psicologicamente de seu captor/agressor. Mas a regra geral era provocar humilhação e dor extrema, visando extrair informações o mais rapidamente possível, pois a repressão sabia que em 24 horas todos os pontos de encontro e contatos da organização guerrilheira poderiam ser alterados.
Caso o preso sobrevivesse ao martírio dos interrogatórios de natureza policial/militar, era então entregue à Justiça para ser processado e julgado. Sendo condenado, cumpria pena em presídios, muitos deles específicos para presos políticos. Na fase “jurídica” da repressão, os interrogatórios, via de regra, seguiam padrões civilizados conforme regras jurídicas. Já nos presídios, poderiam até ocorrer maus tratos, mas, em geral, depois da condenação, as violências físicas diretas cessavam, e o preso cumpria a pena formalizada pela Justiça.
A organização da tortura e seus métodos
As equipes da repressão eram normalmente divididas em três grupos. Um grupo capturava o preso; o segundo grupo o interrogava e o torturava; e o terceiro grupo sistematizava as informações obtidas. Portanto, havia uma certa divisão do trabalho no sistema repressivo. Havia também equipes de apoio: além dos policiais, outros profissionais colaboraram diretamente nas sessões e no cativeiro dos presos, como foi o caso de alguns médicos, psicólogos, escrivães de polícias e guardas de carceragem.
Técnicas de suplício físico
a) Choque elétrico: Forma mais comum e frequente de tortura durante as ditaduras militares da América Latina, os choques eram provocados por pequenas máquinas movidas a manivela. Quanto mais rápida a manivela era movimentada, maior era o choque. Eles eram aplicados no preso encostando-se o fio em lugares sensíveis, como nas gengivas, mamilos, ânus e órgãos genitais. Além da dor extrema provocada pelas queimaduras, os choques causavam convulsões, diarreias involuntárias e incontinências urinárias nas vítimas. Não raro, provocavam a parada cardíaca. Uma vez reanimado, com o auxílio de médicos, o preso poderia voltar a receber choques na mesma sessão de tortura.
b) Afogamento/sufocamento: Além de mergulhar a cabeça do prisioneiro num tanque de água, era comum inserir mangueiras na boca, com as narinas sendo bloqueadas. Utilizavam substâncias, como o amoníaco, para embeber o capuz do preso e provocar sufocamento.
c) Espancamento: Entre os tipos de espancamento mais utilizados estava o “telefone”: o preso era golpeado na orelha pelo torturador, com as duas mãos simultaneamente, podendo provocar rompimento dos tímpanos e surdez permanente. Também eram desferidos socos e pontapés em áreas sensíveis, como barriga, seios e costas. Quando não havia preocupação em preservar o rosto do preso, era comum o espancamento visando à desfiguração e a extração do globo ocular.
d) Empalamento: Há relatos de empalamento de presos, sevícia que envolve o uso de objetos cilíndricos ou pontiagudos (metais, madeiras, etc.) introduzidos pelo ânus. Além de ferimentos, esse tipo de tortura causava hemorragias internas graves, podendo levar à morte.
e) Simulação de fuzilamento: Tipo de tortura psicológica utilizada em presos que, por vezes, já tinham sido torturados fisicamente. A pessoa presa era vendada e conduzida a um local ermo, onde seus algozes simulavam um pelotão de fuzilamento.
f) Queimaduras: As queimaduras eram provocadas por pontas de cigarro, encostadas na pele e nas partes mais sensíveis do corpo, e também por ferros e maçaricos.
g) Isolamento em locais inóspitos: Além de ser uma técnica de imobilização, as celas minúsculas, chamadas de “geladeiras”, eram utilizadas para causar grande desconforto, pois suas dimensões impediam que o preso ficasse em pé ou com o corpo esticado. A temperatura local era alternada de um frio intenso para um calor insuportável. Sistemas de som acoplados à pequena cela emitiam música ou ruído em alto volume, para causar dor e desconforto ao preso. Há versões de celas com dimensão maior, na qual o preso ficava isolado, em locais com temperatura reduzida, com luzes acesas todo o tempo para não poder dormir, escutando ruídos em alto volume. Essa era uma técnica inglesa, chamada de “tortura sem sangue”, que provocava exaustão, confusão mental e desconforto extremo no preso. Em alguns casos, animais peçonhentos eram colocados dentro de salas escuras com os presos, como relatou a jornalista Míriam Leitão, presa e torturada enquanto grávida.
h) Drogadição: O chamado “soro da verdade” era utilizado em presos já espancados ou não, para criar confusão mental e extrair informações.
i) Estupro coletivo: Muito utilizado na tortura das mulheres presas pelo regime militar, conforme vários relatos de prisioneiras.
Os órgãos da repressão também possuíam sofisicadas técnicas de imobilização dos presos, o que incluía métodos como:
a) Pau-de-arara
b) Cadeira do dragão
c) Cama metálica
d) Suspensão
e) Geladeira
Informação e tratamento da informação
O interrogatório inicial buscava obter informações básicas para localizar membros e destruir as organizações de esquerda: pontos de encontro pré-combinados entre militantes, contatos pessoais do militante preso e seu papel na organização (dirigente, elo de ligação, responsável por algum setor ou apoio). Essas eram as primeiras informações requeridas aos presos durante as sessões de interrogatório.
Obtidas essas informações, iniciava-se a fase de cruzamento de dados. Os resultados dos vários interrogatórios eram sistematizados, visando compor o organograma dos grupos clandestinos; localizar e destruir esconderijos, gráficas clandestinas, depósitos de armas; localizar lideranças importantes e prever as próximas ações armadas.Além disso, não foi raro se utilizarem dos prisioneiros torturados para fins de contrainformação e contrapropaganda. Alguns presos eram soltos para colaborar na espionagem das organizações ou para fazer o papel de “terroristas arrependidos” em entrevistas à TV, nas quais denunciavam as próprias organizações a que tinham pertencido e condenavam a opção guerrilheira em si.