O Molipo foi alvo de intensa vigilância pelas forças de segurança desde a época em que seus militantes treinavam em Cuba. O regresso ao Brasil representava verdadeira sentença de morte aos integrantes do grupo, como ocorreu com Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck Machado. Documento de 1972 localizado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo assunto é “Organização e atividades do “MOLIPO” – Movimento de Libertação Popular”, trata da origem, estrutura, ações realizadas e integrantes do Molipo. i Nele é possível confirmar o monitoramento da organização e de seus integrantes: (i) os que regressaram, vindos de Cuba e com curso de guerrilha: Aylton Adalberto Mortati; Antônio Benetazzo; Arno Preiss; Boanerges de Souza Massa; Flávio de Carvalho Molina; Francisco José de Oliveira; João Carlos Cavalcanti Reis; José Dirceu de Oliveira e Silva; José Roberto Arantes de Almeida; Lauriberto José Reis; Márcio Beck Machado; Maria Augusta Thomaz; Natanel de Moura Giraldi; Ruy Carlos Vieira Berbert (ii) os sem curso de guerrilha: Sérgio Capozzi; Jane Vanini Capozzi; Otávio Ângelo; Carlos Eduardo Pires Fleury; Jeová Assis Gomes (iii) e aqueles que ainda estavam em Cuba, prestes a retornar e todos com curso de guerrilhas: Ana de Cerqueira César Corbisier Mateus; Ana Maria Soares Palmeira; Gastone Lúcia de Carvalho Beltrão; Itobi Alves Correa Júnior; João Leonardo da Silva Rocha; José Zeferino da Silva; José Ferreira da Silva. O documento destaca também que: Além das baixas empreendidas pelo DOI, graças às prisões e a farta documentação apreendida, somando-se as investigações e buscas, conseguiu-se o completo levantamento do MOLIPO, bem com a identificação de todos os seus militantes, a execução de quatro ainda não “levantados”. Com as baixas sofridas, ficou em situação difícil, já que seu comando está totalmente desarticulado. Outro documento localizado pela CNV, de 1973, “Atividades subversivas – MOLIPO – localização de subversivos nos municípios goianos de Jataí e Rio Verde”, confirma a morte do casal pela Ditadura Militar, a despeito de apresentar a versão oficial de morte em tiroteio. ii O documento confirma também a participação de agentes de segurança de São Paulo na operação: No dia 16 mai 73, agentes de segurança de São Paulo e Brasília travaram tiroteio com os terroristas Márcio Beck Machado, codinome “Luiz” ou “Raimundo” e Maria Augusta Tomaz (sic), codinome “Márcia” ou “Neusa”, na fazenda Rio Doce, município de Rio Verde (GO), quando foram mortos os aludidos subversivos. Em depoimento à CNV, o caseiro da fazenda Rio Doce, Eurípedes João da Silva, obrigado por agentes fortemente armados a sepultar clandestinamente o casal, contou ter sido acordado com os gritos na madrugada de 17 de maio de 1973: “Neusa, Raimundo! Levanta pra morrer!”, meu pai acordou primeiro e disse “tem um doido aí”, ainda falei […] Teve muito tiro. Muito barulho. Até nós sentados lá no pau lá, tinha hora que dava uma rajada. Quando eles mataram a mulher, nós estávamos sentados no pau lá, ela deu um grito, que nós escutamos. Só que o homem já estava morto. O depoimento de Eurípedes e outros depoimentos diretos colhidos pela CNV – como o de Margarida Aglair Cabral, filha do dono da fazenda, Sebastião Cabral – revelam a falsidade da versão do tiroteio. Eurípedes João da Silva descreveu a cena: “O rapaz estava na cozinha e ela em cima da cama. Os tiros atingiram somente a parte de cima dos corpos. Havia muito sangue. O dela entrava no colchão e formou uma poça embaixo da cama”. Outros documentos corroboram os relatos e evidenciam a execução planejada dos militantes com a participação de agentes da Polícia Federal, da Força Aérea Brasileira (FAB), da Polícia Militar de Goiás, da Polícia Civil/GO, do DOI/CODI do II Exército, em São Paulo e do Centro de Informações do Exército (CIE). É nesse sentido, por exemplo, o documento produzido pela agência de Goiânia do Serviço Nacional de Informações (SNI),iii de 22 de agosto de 1980. A partir das investigações realizadas pelos jornalistas Antônio Carlos Fon e Guarabyra Netto, o documento revela a preocupação com a repercussão do caso e com o possível êxito das investigações, que levaria à localização dos restos mortais de Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck Machado. O informe confidencial do SNI é expresso ao afirmar a intenção de ocultação do caso pelas autoridades: a intenção do Comandante Geral da PM-GO coronel Aníbal de Carvalho Coutinho e do Secretário de Segurança Pública (GO), coronel Herbert de Bastos Curado, caso forem chamados a depor na justiça, é demonstrarem total desconhecimento com referência ao desbaratamento dos militantes do Molipo, Maria Augusta e Márcio Beck. O informe do SNI, difundido à agência central do órgão, vinculado à Presidência da República, indica, nominalmente, que: participaram da ação de sepultamento dos cadáveres ou dela tiveram conhecimento: – o capitão reformado da PM/GO Epaminondas do Nascimento, na época delegado de polícia de Jataí/GO; – o ex-coronel da PM/GO João Rodrigues Pinheiro, então delegado de polícia de Jataí/GO e depois lotado na Secretaria de Segurança Pública de Goiás (DPJ/SSP/GO); – o coronel da PM/GO Sebastião de Oliveira e Souza, na época comandante do 2 o Batalhão de Polícia Militar em Rio Verde/GO e depois diretor de finanças da Polícia Militar do Estado de Goiás; – o capitão médico do Exército Vicente Guerra (capitão Guerra), na época lotado no 2o Batalhão de Polícia Militar em Rio Verde/GO. Conforme depoimentos colhidos pela CNV em Rio Verde (GO), após a execução, o caseiro Eurípedes e os colegas Wanderick Emídio da Silva, João Rosa e o proprietário da fazenda, Sebastião Cabral, foram coagidos a sepultar clandestinamente o casal em um pasto da fazenda, em local afastado da estrada. Em depoimentos prestados ainda na década de 1980, Sebastião Cabral esclareceu que a ordem para sepultar o casal partiu do então delegado de polícia de Rio Verde, Epaminondas Pereira do Nascimento. O capitão reformado da Polícia Militar de Goiás (PM/GO), Epaminondas Pereira do Nascimento, foi ouvido pela CNV em Alvorada do Norte (GO), em 23 de setembro de 2013. Confrontado com o informe do SNI que atesta a sua presença e participação nos crimesiv limitou-se a dizer: “estive lá e vi os cadáveres”. Em 19 de dezembro de 2013 o Ministério Público Federal (MPF) em Goiás denunciou Epaminondas Pereira do Nascimento pelo crime de ocultação dos cadáveres de Maria Augusta Thomaz e Marcio Beck Machado. A CNV ouviu também o médico cardiologista Vicente Guerra que, entre 1970 e 1996, integrou o corpo médico da PM/GO. Ele informou que foi à fazenda Rio Doce para atestar a morte do casal cerca de seis horas depois das execuções. Vicente Guerra revelou que havia militares à paisana, possivelmente do Exército, responsáveis pelo trabalho pericial, que exigiram rapidez na elaboração do laudo. Guerra confirmou a causa mortis de Maria Augusta Thomaz como decorrente de hemorragia aguda causada por lesões perfuro-contusas de arma de fogo. O médico relatou também que a casa de Maria Augusta Thomaz e de Márcio Beck Machado foi cercada e que as forças de repressão utilizaram armamento pesado, incluindo um obus que destruiu uma das paredes do imóvel. O paradeiro do casal do Molipo, como indicado, já havia sido investigado no início dos anos 1980. O ex-deputado estadual de Goiás, Celso da Cunha Bastos, o jornalista do Diário da Manhã Antônio Carlos Fon, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e setores da sociedade civil empreenderam esforços para localizar os corpos dos militantes. Visitaram a fazenda Rio Doce e conversaram com Sebastião Cabral a fim de que ele pudesse apontar o local exato do sepultamento clandestino. Entretanto, o proprietário da fazenda, que desde a execução do casal sofreu vigilância e ameaças por parte dos órgãos de segurança, comunicou às delegacias de polícia de Rio Verde (GO), Jataí (GO) e à Secretária de Segurança Pública em Goiânia sobre a visita da equipe mobilizada nas buscas. Após a comunicação de Sebastião Cabral, agentes do governo compareceram à fazenda e exigiram que o proprietário e sua esposa revelassem o local da cova clandestina. Às pressas, e com a ajuda de médico-legista não identificado, subtraíram as ossadas em uma “operação limpeza”. A remoção dos despojos mortais foi objeto de investigação policial, requerida por intermédio do advogado Luiz Eduardo Greenhalg. O inquérito policial n o 754/80, instaurado pela Polícia Civil de Goiás, documentou que durante a “operação limpeza”, que fica comprovada nos autos da investigação, os agentes encarregados da remoção deixaram para trás pedaços de dentes, falanges e botões de roupas. Os fragmentos estão registrados fotograficamente no inquérito policial, que atesta que: “três supostos agentes policiais violaram as covas, levando os restos mortais dos jovens para lugar incerto e não sabido”. Após o arquivamento do inquérito, que não resultou na denúncia criminal de nenhum dos envolvidos, o material coletado pelos peritos da Polícia Civil foi recolhido ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ/GO). Com vistas à possível identificação dos restos mortais, a CNV requereu ao Tribunal, por meio do ofício no 651/2013-CNV, os fragmentos de ossos, dentes e demais materiais encontrados. Os ofícios no 25 e 49/13, do Depósito Judiciário do TJ/GO, entretanto, informaram sobre a impossibilidade de localização do material, extraviado do depósito do Tribunal de Justiça. Diante da negativa do Tribunal, a CNV diligenciou novamente à fazenda Rio Doce para tentativa de localização de fragmentos eventualmente remanescentes no local da “operação limpeza”. A partir de um croquis do local, constante no inquérito policial n o 754/80, e das indicações feitas pelo caseiro Eurípedes João da Silva, a diligência de campo foi acompanhada por peritos da Polícia Federal e da Polícia Civil do Distrito Federal, que empregaram radar de solo (Ground Penetrating Radar – GPR) para tentar localizar os possíveis restos mortais ou mesmo o local exato da exumação. A diligência, contudo, não permitiu fazer a localização e a identificação esperadas. Em depoimento prestado em 7 de fevereiro de 2014 à CNV, o ex-sargento do Exército Marival Chaves confirmou a participação no caso de seu antigo chefe na Seção de Análise e Informações do DOI-CODI do II Exército, o capitão de Infantaria André Leite Pereira Filho. Ele teria comandado tanto a execução de Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck Machado, em maio de 1973, quanto a “operação limpeza”, em julho de 1980: Comissão Nacional da Verdade – Um dos casos aqui que eu me lembro de você ter citado antes, que o comandante teria sido o então capitão André Leite Pereira Filho, que é a morte da Maria Augusta Thomaz e do Márcio Beck Machado, na Fazenda Rio Doce, lá em Rio Verde (GO). Marival Chaves – Sim. O que eu falo? Eu cito o André Leite Pereira Filho aqui [em Brasília] no CIE. Você quer ver quem participou dessa, desenterrou os cadáveres, exumou os cadáveres, sei lá? Não é exumação, porque exumação é mais técnica, mas [quem] desenterrou os cadáveres e enterrou em outro local? Comissão Nacional da Verdade – A operação limpeza. Marival Chaves – Limpeza. Laecato [sargento do Exército Rubens Gomes Carneiro, do CIE] é um dos [que participou]. Ele me contou que o André [que comandou]. Inclusive é o seguinte, tem um detalhe, que o André se acovardou, sei lá, o sujeito na certa não tem muito estômago para manipular ou ver [cadáveres], ou sei lá. Tem pessoas que tem dificuldade até de ver sangue, não é assim? Então ele ficou assim todo retraído lá quando… Comissão Nacional da Verdade – Na operação limpeza? Marival Chaves – Na operação limpeza, quando tiveram que desenterrar os dois corpos que estavam ali e enterrar em outro lugar. Comissão Nacional da Verdade – Esse outro lugar, ele chegou a sugerir? Muito longe e tal? Marival Chaves – Não, não sugeriu e mesmo que sugerisse, detalhes eles não contavam nunca, né? Comissão Nacional da Verdade – Porque a operação em 1973 foi comanda por ele, né? Marival Chaves – Era o oficial da mais alta patente no local. Não há dúvida que foi ele quem chefiou isso aí. A CNV constatou que nas folhas de alterações do capitão André Leite Pereira Filho consta o deslocamento, em 14 de maio de 1973, do aeroporto de Cumbica, em São Paulo, para Brasília. A data de deslocamento coincide com a data de execução do casal, morto pouco depois, em 17 de maio. As investigações já feitas sobre o caso e os elementos obtidos pela CNV permitem afirmar que Maria Augusta Thomaz foi executada em ação planejada, tendo sido intencionalmente sepultada de modo a permanecer desaparecida. A intenção de ocultação de seu cadáver levou, inclusive, à realização de uma operação limpeza e à mobilização de órgãos da repressão para que informações sobre o caso não fossem reveladas, mesmo muitos anos depois de seu desaparecimento. Maria Augusta Thomaz permanece desaparecida até hoje.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Maria Augusta Thomaz foi executada sumariamente, desapareceu e teve seu cadáver ocultado em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos perpetradas pela Ditadura Militar, instaurada no Brasil a partir de abril de 1964. Recomenda-se a retificação da certidão de óbito de Maria Augusta Thomaz, assim como a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso para a localização e identificação de seus restos mortais e identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.