Engajamento musical
Até meados dos anos 1960, o brasileiro orgulhava-se de produzir e consumir música de qualidade, inclusive para exportação. Especialmente após a consagração da bossa nova e o surgimento de seu principal oponente, a jovem guarda, nos primeiros anos da década. Alegrava-se ao ver o cancioneiro nacional competindo em pé de igualdade, na programação das rádios, com o repertório estrangeiro.
Além de orgulho e alegria, a música brasileira despertava sensações autênticas de patriotismo e pertencimento. Como se via na identificação de determinado repertório com seu público típico, frequentemente caracterizado como “turma” ou “tribo”: a juventude do banquinho e violão de um lado, a moçada do iê-iê-iê do outro.
A novidade, na metade daquela década, foi o aparecimento de uma nova forma de se posicionar diante da música. Ao habitual sentido de pertencimento proporcionado pelos diferentes ritmos, pelas diferentes “turmas”, somou-se um engajamento inédito. Era uma disposição generalizada de fãs e ouvintes em defender, com urros e vaias, suas canções preferidas, seus artistas prediletos, seus ídolos musicais.
Mais do que o momento político ou a violência policial que solapava o Brasil, o responsável por transformar a música popular em objeto de disputa e de calorosa torcida foi o modelo de espetáculos competitivos, criado em 1965 na TV Excelsior, que manteve a hegemonia da produção fonográfica brasileira até 1972: os festivais de música popular brasileira.
Os festivais se firmaram como os maiores celeiros de músicas de vanguarda do Brasil. Foi por meio deles que despontaram artistas como Elis Regina e Edu Lobo (1965), Geraldo Vandré e Jair Rodrigues (1966), Gilberto Gil, Caetano Veloso, MPB 4, Milton Nascimento, Sidney Miller e Os Mutantes (1967), Gal Costa e Beth Carvalho (1968), Ivan Lins e Gonzaguinha (1970), entre outros. Em especial, por meio do Festival da Música Popular Brasileira, criado para a TV Excelsior e, a partir do segundo ano, produzido e exibido pela TV Record, e também do Festival Internacional da Canção Popular, o FIC, transmitido na TV Rio e mais tarde na TV Globo. Entre 1965 e 1975, outros festivais se espalharam pelo Brasil, como a Bienal do Samba, de 1968, e uma dúzia de festivais universitários, ao longo dos anos 1970.
1º Festival Nacional de Música Popular Brasileira (TV Excelsior)
O produtor que idealizou os festivais da canção na TV brasileira, Solano Ribeiro, considerava que, todo ano, as rádios e gravadoras inundavam o mercado com os artistas e as músicas que tinham se destacado no Festival de Sanremo, na Itália, consideradas por ele uma “baboseira melosa”. Após o sucesso dos primeiros programas de TV voltados para a música, em especial Brasil 60, exibido na TV Excelsior e produzido pelo futuro autor de novelas Manoel Carlos, Solano Ribeiro achou que era o momento de criar um festival brasileiro.
Definiu o júri: os poetas concretistas Augusto de Campos e Décio Pignatari, o maestro Damiano Cozzella e o músico Amilton Godoy, do Zimbo Trio. Estabeleceu que a sede do festival seria o Guarujá, no litoral de São Paulo, onde o evento viraria assunto único durante semanas e poderia ser beneficiado pela aura de isolamento que já favorecia, na sua opinião, os festivais de Sanremo e de Cannes, na França. E conseguiu um patrocínio do braço têxtil da Rhodia, multinacional de origem francesa que, na época, investia pesado em desfiles de moda com as principais modelos do Brasil.
Por interferência da Rhodia, foi preciso alterar os planos. Como cada eliminatória seria precedida por um desfile de moda organizado pela marca, interessava à Rhodia levar o festival para outras praças, incluindo capitais. Assim, optou-se por um formato itinerante, com eliminatórias no Guarujá (a primeira, em atenção a Solano), em São Paulo (no auditório da TV Excelsior), e em Petrópolis (no Hotel Quitandinha). A final aconteceria na noite de 6 de abril de 1965, no auditório da TV Excelsior, no Rio de Janeiro.
Entre as 1.290 canções inscritas, seriam garimpadas pelo júri 36 para as três eliminatórias, 12 canções por noite. A grande final consagrou “Arrastão“, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, numa irrepreensível interpretação de Elis Regina. A cantora então era uma menina de 19 anos recém-chegada de Porto Alegre, que ainda foi premiada com o troféu Berimbau de Ouro de melhor intérprete.
“Arrastão” reunia os principais elementos que viriam a caracterizar as canções de festival e transformá-las quase num gênero musical específico. Como se comprovaria ao longo dos anos seguintes, a canção bem sucedida precisava ter uma letra que transmitisse alguma mensagem sociocultural ou política; uma mensagem capaz de seduzir os ouvintes e transformá-los em torcedores. Uma melodia capaz de ser assimilada e acompanhada em coro pela plateia, ou que pelo menos a empolgasse. Um arranjo contagiante e surpreendente, apoiado em “sacadas” de efeito como alterações no tempo, no andamento ou na instrumentação, que levantasse a plateia, a ponto de arrancar aplausos e gritos histéricos no meio de sua execução. E, finalmente, uma interpretação peculiar, teatral, que evidenciasse o carisma do intérprete e sua empatia com o público.
Tudo isso estava sintetizado em “Arrastão”. A realidade de uma comunidade de pescadores sob a ótica poética e engajada de Vinícius de Moraes. A influência de Caymmi no híbrido de samba e marcha-rancho com inspiração jazzística de Edu Lobo. O arranjo virtuoso que combinava o suspense da primeira parte (“Ê, tem jangada no mar/ ê, hoje tem arrastão…”), com o lirismo da segunda (“Minha Santa Bárbara/ me abençoais…”), para culminar na desdobrada vibrante do compasso na entrada da segunda execução do refrão (“Pra mim/ valha-me Deus, Nosso Senhor do Bonfim…”). E, finalmente, a presença cênica da Pimentinha, instruída pelo bailarino Lennie Dale a agitar os braços para trás. Já no dia seguinte ao show, essa atuação lhe rendeu na imprensa o apelido de “Hélice Regina”, numa referência ao movimento de hélice que seus braços pareciam fazer. O sucesso de Elis fez com que a TV Record a contratasse, para apresentar o programa O Fino da Bossa, tornando-a a artista mais bem paga da TV brasileira.
Naquele ano de 1966, enquanto a TV Excelsior fazia seu segundo e último festival, quase sem repercussão — e caminhava a passos rápidos para a falência, consumada em 1970 — a Record promoveu a consagração do formato e o levava a um nível inédito de profissionalismo e ressonância. Conhecidos simplesmente como “Festivais da Record”, eles marcariam época na TV, fazendo com que, ainda em 1966, a audiência do canal batesse a da Excelsior e a da Tupi, e ajudariam a instituir o gênero MPB, expressão não usada até então.