A Pimentinha era danada. Tão danada que virou Pimentinha, apelido conferido por Vinicius de Moraes. Elis Regina só era Regina porque, em 1945, os cartórios de Porto Alegre se recusavam a batizar com nomes que poderiam servir tanto para homem quanto para mulher, exigindo um complemento menos andrógino. Ela ardeu nos palcos, nos discos e na intimidade até se consumir em chamas, incendiária, aos 36 anos, vítima de overdose.
Foram 17 anos de reinado. Desde a noite em que essa espevitada gaúcha radicada no Rio subiu ao palco do Teatro Astória por ocasião do 1º Festival de Música Popular Brasileira, ainda na TV Excelsior, para ser aclamada enquanto cantava “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes (“Olha o arrastão entrando no mar sem fim / É meu irmão, me traz Iemanjá pra mim”). Era abril de 1965, e “Arrastão” venceu o grande prêmio.
Dias depois, Elis já lotava os 2 mil lugares do Teatro Paramount, em São Paulo, dividindo com Jair Rodrigues o comando do show Dois na Bossa, exibido pela mesma Excelsior a partir de maio. Logo o programa seria transferido para a TV Record, com o título de O Fino da Bossa, e a emissora contrataria Elis por uma fábula: 6 milhões de cruzeiros mensais, o equivalente a R$ 100 mil em 2014.
Nos anos que se seguiram, muitos foram os compositores lançados ou incensados por Elis, uma incansável caçadora de talentos. Ivan Lins (“Madalena”, “Cartomante”, “Aos Nossos filhos”), João Bosco (“Bala com Bala”, “O Mestre Sala dos Mares”, “Dois pra Lá, Dois pra Cá”), Gilberto Gil (“Ensaio Geral”, “Roda”, “Lunik 9”), Milton Nascimento (“Canção do Sal”, “Morro Velho”, “Cais”, “Nada Será Como Antes”), Belchior (“Como Nossos Pais”), Fagner (“Mucuripe”), Gonzaguinha (“Redescobrir”), Renato Teixeira (“Romaria”), entre outros.
Deve-se à interpretação de Elis o sucesso de algumas das mais notórias canções de afronta à ditadura. Ironicamente, essa mesma Elis foi massacrada pela imprensa de esquerda em 1972, após cantar o “Hino Nacional” num show nas Olimpíadas do Exército. O cartunista Henfil tratou de enterrá-la imediatamente no cemitério do Cabôco Mamadô, personagem seu que mandava para a cova apenas pessoas vivas, acusadas de colaborar com o regime. Na tira dedicada ao funeral de Elis, a cantora surgia ao lado de outros defuntos condenados pelo tribunal do cartunista: Wilson Simonal, Roberto Carlos, Pelé.
A redenção não tardaria, no entanto, e o próprio Henfil viria a ser homenageado por ela, mesmo que indiretamente, na gravação de “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, hino da anistia e um dos maiores hits da Pimentinha.