“Eu organizo o movimento”, diz um verso de “Tropicália”, a canção-manifesto de Caetano Veloso, que deu nome a um dos movimentos mais férteis e efervescentes dos anos 1960. O autor não mentiu. Caetano foi de fato quem mais contribuiu para fixar as bases do tropicalismo, em 1967, firmando-se como seu maior mentor, compositor e divulgador.
Foi também no contexto dos festivais que se plantou a semente da Tropicália, exatamente quando as canções de protesto começavam a dar sinais de sectarismo e caretice, repetindo fórmulas musicais e poéticas. Embora o movimento tenha sido enunciado em 1968, com o lançamento do álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, sua origem remonta ao Festival da Record do ano anterior, quando Caetano e Gilberto Gil apresentaram duas canções identificadas com as propostas éticas e estéticas do grupo: “Alegria, Alegria”, de Caetano, e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil.
Nelas, surgiam alguns elementos formadores do tropicalismo, como a preferência por letras descritivas e cinematográficas, o uso de guitarras elétricas em conjunção com instrumentos afro-brasileiros (coisa que os nacionalistas consideravam acintosa), e versos que citavam produtos industriais e ícones da cultura de massa, como em “eu tomo uma coca-cola”.
Sua consagração veio no ano seguinte, o interminável ano de 1968, quando as notícias que desembarcavam de Paris sugeriam novas formas de engajamento, uma nova atitude diante da revolução. A pauta da liberdade política somava-se agora a outras pautas, essencialmente comportamentais, nas quais o conceito de liberdade extrapolava os contornos dos direitos civis para alcançar os direitos individuais. Liberdade sexual, liberdade de escolhas, liberdade para usar drogas ou meter uma guitarra distorcida no meio de um samba, tudo isso começou a virar do avesso a estética gasta que predominava nas canções de protesto.
Além de Gil e Caetano, o movimento teve entre seus principais articuladores os também compositores Tom Zé, Capinan e Torquato Neto, as cantoras Gal Costa e Nara Leão, o grupo de rock Os Mutantes e os maestros Júlio Medaglia e Rogério Duprat. Os dois últimos foram de fundamental importância para o sucesso da empreitada, uma vez que os arranjos concebidos para as principais gravações, desde “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, ajudaram a compor o DNA da nova sonoridade. Até Nara Leão, ex-musa da bossa nova e do Show Opinião, se aproximou dos tropicalistas, cantando no álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968.
Esse disco transbordava de novidades. Os músicos, em sua maioria baianos, faziam exatamente o que não podia ser feito. Ao menos segundo os cânones da música de protesto, tão em voga naquele período de patrulha generalizada. Para melhor explicitar o objetivo de incorporar tudo o que era considerado alienígena ou de mau gosto, homenageavam a música cafona de Vicente Celestino, de quem Caetano regravou “Coração Materno”. Reverenciavam o iê-iê-iê alienado de Roberto Carlos, citado em “Baby”. Contaminavam o batuque de “Bat Macumba” com rifes de guitarra distorcida. Abusavam de estrangeirismos (“I love you”, em “Baby”, “made in Brazil”, em “Geleia Geral”) e recomendavam a todos que aprendessem inglês. Falavam de margarina, louvavam o Senhor do Bonfim. E ainda ousavam criticar o regime em rápidas incursões pelo universo bélico, como na presença do policial que tudo observa em “Lindonéia” ou no disfarçado tripé brasil-fusil-canhão, soletrado à moda baiana em “Miserere Nobis“: “be-re-a-bra,ze-i-le-zil/ fe-u-fu,ze-i-le-zil/ ce-a-ca, nê-agá-ao-til-nhão/ ora pro nobis/ ora pro nobis”.
“Afinal, ele é nosso avô”, chegou a declarar Tom Zé para justificar por que achava que Chico Buarque, oito anos mais novo do que ele, deveria ser respeitado. Isso porque Chico preferia compor sambas e marchinhas, estilos musicais fundados na tradição, enquanto os tropicalistas difundiam o projeto de modernizar a música brasileira, a partir da apropriação de elementos externos, instrumentos elétricos e temas representativos da sociedade de consumo. “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, escreveu Chico Buarque, num artigo de jornal, para rebater a patrulha de Tom Zé, ainda em 1968.
Como numa fábula, o feitiço se disseminara rapidamente pela música brasileira entre 1967 e 1968, ano em que Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes lançaram discos altamente influenciados pelas teses do movimento (o LP de Gal sairia no comecinho do ano seguinte). A influência do tropicalismo chegou às artes e à moda, contribuindo para disseminar no país os cabelos compridos, os adereços hippies, os princípios do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade e o conceito recente de contracultura. Todo esse pessoal, no final de 1968, reuniu-se no palco do programa Divino Maravilhoso, criado pela TV Tupi na esteira da onda tropicalista.
Mas o movimento praticamente desapareceu em 1969. A prisão de Caetano e Gil às vésperas do Natal de 1968, dez dias depois do AI-5, e seu exílio em Londres por dois anos contribuíram para sufocar o grito libertário daquela turma, embora suas influências se estendam a toda a obra posterior desses artistas.
Sem deixar de dialogar com os dilemas do Brasil e da identidade nacional, os tropicalistas abriram a música nacional, tanto filosófica quanto geograficamente, deixando-se envolver em lufadas de rock. O movimento legitimou as raízes do que viria a ser o rock brasileiro, inaugurado ainda nos anos 1960 com Os Mutantes, e consolidado a partir da década seguinte, primeiro com Raul Seixas e Secos & Molhados, desde 1973, e, em seguida, com bandas atuantes no período da abertura e das Diretas, como a Blitz e o Ultraje a Rigor.