Dona ZIlda

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Na luta por justiça pelo filho, Dona Zilda se mantém de pé

Fundadora do Mães de Osasco e Barueri, Dona Zilda conta sobre sua trajetória e a luta por justiça a partir do assassinato do filho em uma cachina.

Por Beatriz de Oliveira
Do Nós, mulheres da periferia para o Memórias da Ditadura

Era uma quinta-feira, 13 de agosto de 2015. Fernando Luiz de Paula, mais conhecido como Abuse, estava desempregado e tinha acabado de passar por uma tuberculose grave. Ao se recuperar, começou a fazer alguns reparos na casa em que vivia com a mãe, Zilda Maria de Paula. Nesse dia, usou a cor amarela para pintar uma das paredes da sala e, ao terminar, limpou o cômodo. Quando dona Zilda chegou do trabalho até estranhou, o filho costumava deixar a bagunça para ela.

Com 34 anos, o jovem cumprimentou a mãe e disse que levantaria cedo no dia seguinte para concluir a tarefa. Em seguida, perguntou se ela tinha gostado. Respondendo que sim, pegou um quadro com um desenho do rosto do menino quando criança e pendurou na parede ao lado. Então, Fernando tomou banho e foi em direção ao bar do Juvenal, próximo da casa localizada no bairro Jardim Munhoz Júnior, em Osasco, região metropolitana da cidade de São Paulo.

No caminho da porta, antes de chegar à rua, a cadela de estimação o seguiu, mas ele preferiu não levá-la. Logo após sua saída, a mãe começou a assistir televisão. De repente, o aparelho parou de funcionar. Como o filho tinha saído a pouco tempo, pensou em chamá-lo e pedir que consertasse, mas, ao se levantar, as imagens voltaram a aparecer.

Quando a noite chegou, próximo das 20h, escutou um som parecido com fogos de artifício. Minutos depois, um menino da vizinhança apareceu e disse que ela deveria pegar o documento de Abuse o mais rápido possível. Foi quando soube que os possíveis fogos eram tiro e que seu filho havia sido atingido.“Morreu?”, questionou. Mas o garoto retornou com o silêncio. Sua resposta só veio minutos depois: ao chegar no bar, encontrou Fernando enrolado em um saco plástico.

Chacina: uma palavra do Brasil

Naquela noite de 2015, três policiais militares e um guarda civil municipal assassinaram 18 pessoas e deixaram outras 3 feridas em um intervalo de apenas três horas. O motivo seria a retaliação e vingança pela morte de um policial militar e de um guarda civil metropolitano após um assalto ocorrido alguns dias antes.

A forma de atuação remonta cenas já vistas em outros acontecimentos tão violentos quanto: homens encapuzados desceram de um carro, se direcionaram a uma região de bares e dispararam vários tiros. Em alguns casos, perguntaram se a vítima tinha ou não passagem pela polícia antes de atirar.

O filho de Dona Zilda foi uma das vítimas do massacre que ficou conhecido como Chacina de Osasco e Barueri, considerada a maior da cidade de São Paulo. Matanças como essa, entretanto, não são casos isolados. Anualmente, os noticiários contam histórias semelhantes nas periferias de diferentes estados brasileiros.

Em 2016, a jornalista e advogada norte-americana, Shannon Sims, escreveu um artigo para o The Washington Post afirmando que “chacina” era uma das piores palavras que ela teria conhecido no Brasil, já que a origem do significado tem relação com a matança de animais e, aqui, se refere a morte de pessoas com o envolvimento de forças policiais.

No estudo Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, publicado pela Fundação Perseu Abramo, em 2019, os pesquisadores analisam a origem do fenômeno e trazem fundamentações teóricas para o uso do termo. Um dos trechos afirma que: “apesar de comum, chacina não é um conceito jurídico. A morte de diversas pessoas em uma ação planejada aparece no inquérito policial ou no processo judicial como “homicídios múltiplos”. Nesse sentido, a palavra chacina é o que os antropólogos denominam como uma categoria nativa (ou êmica), ou seja, ela opera no mundo prático e seu significado tem um valor histórico para determinadas sociedades ou grupos sociais (Guimarães, 2003)”.

Na história recente de São Paulo, porém, casos violentos como este também carregam o surgimento da resistência e do enfrentamento popular. O ano de 2006 ficou marcado por um caso conhecido como Crimes de Maio. Após um conflito com o PCC (Primeiro Comando da Capital) causar a morte de dezenas de policiais, uma retaliação resultou em um massacre que deixou 509 mortos nas periferias do estado, regiões habitadas majoritariamente pela população negra.

Por conseguinte, nasceu uma das organizações mais fortes em defesa dos direitos humanos na atualidade: o Movimento Mães de Maio. Composto pelas mães das vítimas, unidas pelo luto e pela busca por justiça, um dos objetivos do grupo é denunciar a ausência da democracia e a continuidade da ditadura no Brasil, especialmente para jovens negros e dos bairros empobrecidos do Brasil.

A partir deste exemplo, Dona Zilda e as outras mães criaram o movimento Mães de Osasco e Barueri. Por incentivo da ONG Rio de Paz, passaram a se reunir em sua casa para planejar manifestações, homenagens e para acompanhar as novidades sobre o caso. Nos protestos que realizam, carregam uma faixa com a foto e nome de cada um dos assassinados, cartaz que, inclusive, fica guardado na casa dela.

A mulher de voz rouca e firme, vence seus dias entre saudade e luta. “É tanta coisa que eu não sei definir se é dor, raiva, ódio, revolta. É isso que mata a gente. Não é uma dor de cabeça, uma dor de dente. No começo era uma dor sufocante, que dói tudo. É noite e dia, são 24 horas com aquilo na sua cabeça. Até hoje é assim, só que minimizado. Mas ainda é uma dor que eu não sei te explicar, só quem passa sabe”, afirma Dona Zilda, hoje com 68 anos de idade.

“Era feliz e não sabia”

“Eu não nasci, eu surgi”, diz, se referindo ao fato de ser adotada e não conhecer os pais biológicos. Durante a infância, Dona Zilda morou no Sumaré, bairro nobre da cidade, na casa da patroa em que sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Ao mesmo tempo, também tinha a Brasilândia como morada, bairro na zona norte, onde a família alugou uma casa por um período.

Estudou até o segundo ano do Ensino Fundamental e o significado da palavra trabalho veio logo cedo: aos 8 anos de idade já era responsável por tomar conta de outras crianças. Logo cedo, iniciou sua trajetória como empregada doméstica, à exemplo da mãe.

Quando completou 12 anos, a patroa não aceitou mais que a menina morasse lá. Então, a rua se tornou seu lar por alguns anos. “Era época da Jovem Guarda, isso me marcou muito”. Ela e as companheiras de rua, dormiam em frente a Record, na Av. Paulista, emissora que na década de 60 promovia shows de talentos e recebia muitos artistas.

“A gente era cambista, as primeiras fileiras eram 5 cruzeiros, aí chegavam as filhinhas de papai e a gente vendia os ingressos. Com esse dinheiro íamos comprar café”. Outro ponto de parada em que costumavam dormir era o Cemitério da Consolação, na região central da cidade.

“Engraçado, morei na rua, mas não carregava roupa nem cobertor”, diz. Na época, algumas de suas companheiras de ruas trabalhavam como empregadas domésticas, então, permitiam que as amigas entrassem pela área de serviço dos apartamentos e guardassem seus pertences no quarto da empregada. Eram nesses momentos que conseguiam tomar banho e lavar suas roupas.

“Eu era feliz e não sabia. Não tinha dívida, não tinha aluguel, corria atrás dos artistas, ia para o aeroporto”, conta entusiasmada. Nessas aventuras, conheceu músicos como Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Teve espaço até para um incidente com Agnaldo Timóteo: ela correu para abraçá-lo e ele rejeitou, então suas colegas atacaram o cantor. Aos 16 anos, conseguiu um emprego como empregada doméstica e voltou a morar na Brasilândia.

No samba, um desamor

Fernando foi desejado, alguém que insistiu em receber e cuidar do mundo. Na sua juventude, antes mesmo de seu menino nascer, Dona Zilda gostava de se arrumar e sair para dançar. E foi em um dia de diversão na escola de samba Rosas de Ouro, em 1972, que conheceu o homem que viria a ser seu marido e pai de seu filho.

“Até aí eu vivi, mas depois soube quem ele era de verdade”, lembra. “Chegou uma hora que não podia me pintar nem conversar com ninguém. Machismo! Fui submissa e ele continuou a vidinha dele de solteiro, conversando com a mulhereda”.

Durante os 11 anos de relacionamento Dona Zilda passou por traições e violência doméstica. Mesmo tentando se separar algumas vezes, acabava voltando, principalmente pelo filho. Até que um dia, mesmo desempregada, conseguiu. “Ele pegou guarda-roupa, pegou panela de pressão, garrafa de bebida, coberta. Eu falei: ‘você pode levar tudo, a única coisa que quero de você é o meu filho’”, lembra. “Fiquei na rua da amargura”.

Quem lhe ofereceu refúgio foi a ex-sogra, a quem define como ‘uma mulher justa’. Voltou a trabalhar e Fernando passava o dia na casa de parentes e conhecidos. Desde então, decidiu que nunca mais colocaria homem nenhum dentro de casa. A partir daquele momento seria ela e o filho.

“Tava na hora do Fernando ter a casa dele”

Antes de Abuse vir ao mundo, Dona Zilda passou por cinco abortos espontâneos. “Para ter esse menino precisei ficar internada no HC [Hospital das Clínicas] até ele nascer”. Quando o filho nasceu, diz que ficou “boba”, cuidar dele era a prioridade de sua vida.

Aposentada há dois anos, trabalhou numa mesma casa com carteira assinada por 43 anos e chegou a morar na casa dos patrões por um tempo. “Criei meu filho lá, as crianças chamavam ele de irmão”. A trabalhadora considera o casal de filhos dos chefes como seus filhos também. Numa das paredes da sala, há uma foto deles pendurada.

“Coisas que eu não tive na infância, o Fernando teve”, diz a mãe. Ela conta que o filho assistia televisão sentado no sofá, enquanto ela, durante a infância, só podia assistir sentada no chão. Outra diferença era no momento da alimentação. “Eu fui comer na mesa com a minha patroa depois de 30 anos que eu estava lá. Tinha a minha mesinha na cozinha e a Lia [filha da patroa] vinha comer comigo, mas o Fernando ia comer na mesa”.

Os chefes chegaram a colocar Fernando em uma escola particular, “deu três meses, o Fernando teve que sair”, em razão de situações racistas que sofreu. Quando o menino completou 12 anos, Dona Zilda conseguiu comprar um terreno, em Osasco, onde construiu a casa que vive hoje. “Tava na hora do Fernando ter a casa dele”, comenta. “Surgiu a opção para comprar uma casa na favela”, então pediu ajuda aos patrões, que emprestaram o dinheiro.

Fã de basquete e dos Racionais Mc´s

Seu menino cresceu e chegou aos 1,90m de altura. Gostava de jogar basquete e colecionava figurinhas e pôsteres de jogadores norte-americanos. O fascínio do filho ainda é presente na casa em que mora até hoje. Logo na estante da sala, Dona Zilda guarda as medalhas que ganhou ao longo da vida. Inteligente e bom em matemática, ela não tinha muito do que reclamar, a não ser o fato de ser são paulino, o que desagradava a corinthiana.

Rapaz de muitos amigos, em um de seus cadernos um deles escreveu: “adorei ter te conhecido e ficarmos amigos, gosto muito de você”. Não é à toa que, no enterro do menino, vieram muitas pessoas que Dona Zilda nem conhecia, mas que lamentavam sua morte e destacavam o quanto era querido pela vizinhança.

Preocupada, a mãe aconselhava o filho a não andar com quem vendia drogas e sempre respeitar os vizinhos. As recomendações não o livraram de abordagens policiais violentas. Certa vez, pediu que o filho comprasse cigarro pra ela. O menino havia perdido o RG e, por isso, carregava um protocolo do documento. Abuse demorou a voltar para casa e a mãe acabou dormindo. No dia seguinte, foi até o quarto dele, que relatou ter sido parado por policiais. Perguntaram se ele estava com drogas, bateram nele e rasgaram o protocolo. “Mãe nenhuma tem filho para polícia bater”, reforça.

Na vida adulta, ele chegou a servir o exército, trabalhou em lava-rápido, mercado e como pintor. Amante do rap nacional, Racionais Mc’s era uma das trilhas sonoras do seu dia a dia. De tanto comprar os discos para o filho, ela também passou a gostar das músicas do grupo. Depois de sua morte, acabou doando os álbuns e ficou com apenas dois.

Hoje, não consegue escutar as letras, principalmente as do disco Sobrevivendo no Inferno, de 1997, pois revive a dor da perda. Apesar disso, confessa ter vontade de conhecer o rapper Mano Brown. Um dos grupos mais tradicionais do rap no Brasil, os álbuns são conhecidos por retratar a condição de desigualdade, racismo e violência policial vivenciada nas periferias da cidade de São Paulo. A abertura da música ‘Capítulo 4, versículo 3’ é um exemplo dessa narrativa:

“… 60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”

“Ninguém está preparado para isso”

A conversa para esta entrevista aconteceu em maio de 2022, numa manhã fria e, em muitos aspectos, voltar para aquela manhã de quinta-feira, quando seu menino ainda estava lá, é uma forma de alívio. A parede amarela pintada por Fernando permanece do mesmo jeito, assim como seu quadro de criança permanece pendurado em uma delas. Tudo está no mesmo lugar, com exceção da cachorra que o acompanhou até o portão naquela noite, a cadela faleceu na semana anterior à entrevista.

Desde a violência que sofreu como mãe e como cidadã, a vida de Dona Zilda e das outras mães tomou outro rumo. Embora não se conhecessem antes da chacina, a união entre elas é um motivo para continuar. Dona Zilda sempre é procurada por outras integrantes quando precisam de ajuda e costuma mobilizar esforços em busca de doações de fraldas e alimentos para apoiar aquelas que precisam. “É isso que me deixa de pé. Fico tão preocupada com a dor do outro, que a minha dá uma amenizada. Se não fosse isso, acho hoje estaria até com depressão”.

No último julgamento relativo à chacina, em fevereiro de 2022, o policial militar Victor Cristilder Silva Santos e o guarda Sérgio Manhanhã, receberam a anulação de suas sentenças. Em março de 2018, o policial havia sido condenado a 119 anos de prisão, já o guarda foi julgado em setembro de 2017 e condenado a 100 anos de reclusão. Os outros dois envolvidos, Fabrício Emmanuel Eleutério e Thiago Barbosa Henklain, também passaram pelo tribunal, em 2017, e receberam sentenças de 255 anos e 247 anos, respectivamente.

Para Dona Zilda, a luta por justiça continua. “A sensação que eu tenho é que isso não acabou. Eu sou muito devota das almas que têm sede de justiça”, afirma convicta.

“A justiça certa é o que a gente quer. O mal já foi feito. Estamos fazendo isso para não acontecer de novo, mas, infelizmente, aparecem mais mães perdendo [os filhos]. Às vezes, tenho a impressão que estamos enxugando gelo. Não é por mim [que eu luto], é porque sou a voz de muitas mães, eu falo por elas”.

Todos os anos, no dia do seu aniversário, sua casa recebe jornalistas e outras pessoas que ajudaram a cobrar autoridades e a divulgar o caso. Cozinhar um bom prato de feijoada anualmente é seu jeito de agradecer. Perguntada se se considera uma ativista, ela diz: “falta muito, estou engatinhando, estou aprendendo. Mas a turma fala que eu sou líder e ativista. To caminhando e fazendo minha parte, porque, na verdade, ninguém está preparado para isso”.

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