O mais longevo dos festivais custou a engrenar. Lançado em 1966 por iniciativa da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara, governado por Negrão de Lima, o Festival Internacional da Canção Popular (FIC), transmitido pela TV Rio, no primeiro ano, e pela TV Globo a partir do ano seguinte, totalizou sete edições, até 1972. Mas foi apenas em 1968 que ele provocou o barulho esperado.
O evento foi idealizado por Augusto Marzagão, um ex-seminarista e ex-repórter policial convertido em assessor político. Marzagão comunicou ao governador eleito da Guanabara, Negrão de Lima, seu desejo de organizar um festival de música que fosse internacional, o que o diferenciaria das versões realizadas naquele mesmo ano pela TV Excelsior e pela TV Record. Um festival que contribuísse para promover o Rio de Janeiro no exterior. Foi autorizado a apresentar um orçamento e a fechar parceria com uma emissora de TV.
Walter Clark, diretor da Globo, não demonstrou interesse. Erlon Chaves, diretor musical da TV Rio, foi mais receptivo. Negócio fechado, o retorno ficaria bem acima das expectativas da emissora, que contabilizou nada menos que 45 pontos de audiência na primeira eliminatória e terminaria a noite da grande final nacional com 62% dos aparelhos sintonizados nela, marca que saltou para 72% na final internacional.
O sistema proposto por Marzagão consistia em duas etapas sobrepostas. A etapa nacional premiaria três canções após duas eliminatórias e uma final. A grande vencedora representaria o Brasil na segunda etapa, internacional, concorrendo com composições de diversos países. O cenário escolhido foi o Maracanãzinho, alvo de muitas críticas por parte de cantores, músicos, jurados e jornalistas, uma vez que não houve técnico capaz de salvar a péssima acústica do ginásio.
O repertório era outro ponto fraco. Tachado de “triste” e “lento demais” pela crítica especializada, não convenceu o público, treinado pelos festivais anteriores, tanto o da Excelsior e quanto o da Record, a esperar músicas mais envolventes e vibrantes. Das 28 canções selecionadas para serem defendidas nas duas eliminatórias consecutivas, 14 por noite, duas despontaram como as de maior qualidade segundo a crítica: “Saveiros“, de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi, e “Canto Triste”, que era triste até no título, composta por Edu Lobo e defendida por Elis Regina.
Classificadas para a final, “Saveiros” foi anunciada como campeã, enquanto “Canto Triste” não foi selecionada entre as três primeiras. O público protestou. Embora não seja possível apontar a canção favorita do público, foi sob vaias que a multidão acompanhou a apresentação de Nana após o anúncio. Deu-se ali, naquele dia, o início de uma tradição que marcaria a história dos festivais: vaiar as canções que não contavam com sua torcida.
A segunda edição continuou morna. Com apoio e coprodução da TV Globo, para a qual o diretor geral Walter Clark havia contratado Boni na função de diretor artístico, agora seriam dez as canções premiadas. O palco foi reformulado, graças a um investimento monumental da emissora, para tentar sanar os problemas de acústica, que jamais desapareceriam por completo.
Mais uma vez, os shows não entusiasmaram nem os convidados estrangeiros, nem os jurados, nem o público. Enquanto o Festival da Record pegava fogo em São Paulo, misturando letras engajadas com excentricidades estéticas, confirmando-se como palco máximo do inconformismo, da manifestação e da vanguarda da música brasileira, o repertório do festival do Rio continuava apartado do estilo dos festivais. Apesar de toda a grandiosidade do FIC, sua programação era baseada em canções bem comportadas, que não se comprometiam nem compravam briga, incapazes de levantar a plateia.
O mérito daquela edição foi o de apontar holofotes para o jovem Milton Nascimento, que classificou três composições, todas inscritas à sua revelia por Agostinho dos Santos. O compositor, encantado com a música daquele rapaz, que atuava como crooner em boates de São Paulo, fez de tudo para convencê-lo a se inscrever no FIC. Diante da negativa do compositor, tímido demais para encarar um festival, inventou uma desculpa para gravar as fitas e as encaminhou à organização. Resultado: Milton emplacou “Travessia” em segundo lugar e “Morro Velho” em sétimo na final da etapa nacional.
Embora a campeã tenha sido “Margarida”, de Gutemberg Guarabira, que mais tarde formaria um trio com Sá e Zé Rodrix, aquela edição entraria para a história da MPB como o festival de “Travessia”, a única grande novidade da temporada. O terceiro lugar ficou com “Carolina”, do infalível Chico Buarque, defendida por Cynara e Cybele.
A guinada do FIC viria em 1968, com a radicalização das torcidas e a consagração do evento. Pela primeira vez, o festival da TV Globo superou em tamanho, divulgação e legitimidade o festival da TV Record, emissora que começava a dar sinais de declínio, em grande parte gerado por erros de gestão e esgotamento de um modelo.
Dessa vez, haveria uma etapa paulista, realizada no Tuca, o Teatro da Universidade Católica (PUC), que precederia a fase nacional. Com a intenção de disputar o mercado paulista, dominado pela Record, e abrir espaço para as vibrantes canções tradicionalmente exibidas em São Paulo, definiu-se que oito finalistas sairiam dessa primeira etapa.
Na final paulista, a primeira surpresa: Caetano Veloso, hostilizado pela plateia ao subir ao palco com roupas e acessórios de plástico colorido para cantar “É Proibido Proibir“, acompanhado pelo grupo Os Mutantes, que tinha saído aplaudido do Festival da Record no ano anterior, rebateu as vaias com um discurso ferino e inspiradíssimo. Um happening inigualável, uma bronca pública contra uma claque de jovens intolerantes que, na teoria, defendiam a democracia e a liberdade de expressão. A atitude era compreensível no contexto da época. Os universitários cobravam de Gil e Caetano um posicionamento claro contra os militares, e se irritavam com a opção deles por assumir bandeiras consideradas menos relevantes, como a defesa das guitarras, dos cabelos compridos e da liberdade sexual.
Eram tempos de ânimos exaltados, e a polarização só faria aumentar. Embora classificado, Caetano decidiu não participar da final nacional no Rio de Janeiro, duas semanas depois. Ali, as vaias se voltaram contra a canção “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. Apenas Tom estava presente ao estádio e saiu massacrado. À medida que os apresentadores anunciavam as dez premiadas, o público ia tirando suas conclusões. A multidão já suspeitava, pela repercussão que tiveram, que os dois primeiros lugares ficariam entre “Sabiá” e “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores”, de Geraldo Vandré, também conhecida como “Caminhando”. Bastou que a canção de Vandré fosse confirmada na vice-liderança para que a multidão viesse abaixo, inconformada.
A canção de Vandré tinha se tornado um hino não apenas do movimento estudantil, mas também daqueles que se encaminharam para a resistência armada, uma constante às vésperas do AI-5. “Há soldados armados, amados ou não/ Quase todos perdidos de armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam antiga lição/ De morrer pela pátria e viver sem razão”, diz a letra. Em contrapartida, “Sabiá” era uma romântica canção do exílio, feita à maneira das modinhas de Villa Lobos, com muito mais densidade harmônica do que a canção de Vandré, com apenas dois acordes. Isso era o que menos interessava à juventude presente ao ginásio. Para a maioria, o momento político exigia coragem e posicionamento. E Vandré, muito mais do que Chico e Tom, era o porta-voz daquela proposta estética e política.
À vontade no papel de vítima, Vandré pediu à plateia que relevasse a decisão do júri, lembrando que as vaias, se justas, deveriam ser direcionadas aos jurados, e não aos compositores da outra canção. Enfim, cantou. Quando foi a vez de Cynara e Cybele subirem ao palco, acompanhadas por um Tom Jobim atônito, em sua primeira e última participação num festival, Vandré permaneceu no palco, numa tentativa de aplacar os ânimos. Não houve trégua. Cynara e Cybele choravam enquanto repetiam a canção, sem se fazerem ouvir.
Na semana seguinte, na final internacional, a recepção já foi bem mais educada. Campeã também dessa fase, algo inédito até aquela edição, “Sabiá” pôde ser apresentada sem mais contratempos. Chico e Tom puderem receber o prêmio numa boa. Duas semanas após o término do festival, veio a ordem inevitável: “Caminhando” foi proibida pelo governo federal de ser executada em rádios e locais públicos.Outras edições se seguiram, culminando no 7º FIC, de 1972, com direção de Solano Ribeiro, o pai do formato, contratado pela Globo para substituir Marzagão. Duas grandes novidades vinham do mundo do rock: Raul Seixas, ainda desconhecido, classificou o rock-baião “Let me Sing, Let me Sing”, enquanto Sérgio Sampaio, outro estreante,apresentou aquele que viria a ser o maior sucesso de sua carreira: “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”. Maria Alcina foi a grande revelação em interpretação, defendendo “Fio Maravilha”, de Jorge Ben. Os intelectuais chegaram a fazer até manifesto a favor de “Cabeça”, música experimental de Walter Franco. Alceu Valença, Fagner, Belchior, Ednardo, Baden Powell e até um jovem compositor de 16 anos chamado Oswaldo Montenegro estavam entre os selecionados.
Dessa vez, a disputa nos bastidores foi ainda mais intensa do que diante das câmeras. De todos os tumultos, o episódio mais grave foi quando os militares entraram em contato com Walter Clark e pediram a cabeça de Nara Leão, presidenta do júri. Dias antes, ela havia criticado a ditadura numa entrevista ao Jornal do Brasil. O diretor-geral da Globo chamou Solano e deu ordens para que a demitisse. Solano ameaçou se demitir também, ciente do absurdo que seria cortá-la àquela altura, após a realização das eliminatórias.
Finalmente, optou-se por destituir o júri inteiro, numa tentativa de encontrar uma justificativa capaz de aplacar um eventual rebuliço na opinião pública. Um novo júri seria formado para a final, que confirmaria as duas vencedoras, alçadas automaticamente à final internacional: “Diálogo”, composição de Baden Powell e Paulo César Pinheiro defendida por Baden, Cláudia Regina e Tobias, e “Fio Maravilha”.
O 7º FIC terminou com baixa audiência, um público modesto (a média de 5 mil pessoas por noite estava muito aquém da esperada), críticas disparadas por toda a imprensa e um prejuízo estimado em 400 mil dólares. Em maio do ano seguinte, a Globo anunciou que o FIC não seria mais realizado, alegando falta de interesse dos patrocinadores.
Naquele momento, a música brasileira e também a televisão já viviam outro momento. Os programas musicais já não exerciam o mesmo fascínio de meados da década anterior, já não puxavam a audiência dos canais nem cumpriam com o mesmo rigor o papel de revelar as novidades do mercado fonográfico, transferido gradativamente aos programas de auditório. Ao mesmo tempo, já em 1969, os acontecimentos pós-AI-5 tinham resultado numa diáspora dos mais importantes músicos de festival: Chico, Gil, Caetano e Vandré foram exilados, enquanto Elis afirmava publicamente que não renovaria contrato com a Record se alguma cláusula a obrigasse a cantar em festivais.
A era dos festivais chegava ao fim, todos os eventos desse tipo lançados posteriormente já não tinham o mesmo impacto. Os grandes festivais ficaram na memória, ao mesmo tempo que são símbolos de utopia política, também são lugares de nostalgia cultural.