As experiências negras não foram invisibilizadas apenas nos estudos sobre a ditadura militar: muitas das comissões da verdade instaladas no Brasil a partir de 2012 corroboram essa lacuna.
A transição política brasileira, iniciada sob controle do próprio regime, não foi acompanhada de uma justiça de transição integral. A Lei da Anistia de 1979, por exemplo, foi conquistada sob ampla mobilização popular, mas seu conteúdo foi frustrante para os familiares das vítimas, já que beneficiou também os agentes da repressão. Ainda assim, ela permitiu o retorno de exilados e a reorganização de forças democráticas, culminando na campanha das Diretas Já e na promulgação da Constituição de 1988.
A chamada “Constituição Cidadã” de 1988, embora representasse um marco democrático com o reconhecimento de direitos fundamentais e o repúdio ao racismo, não enfrentou os legados autoritários de forma estrutural. Parte disso se deve à ausência de uma justiça de transição robusta, já que a redemocratização brasileira não investigou nem puniu os crimes da ditadura. O Brasil chegou à década de 2010 sem ter encarado de frente as violências de seu passado recente. É nesse cenário que, somente em 2011, sob a presidência de Dilma Rousseff – ex-presa política torturada – foi criada a Comissão Nacional da Verdade.
A CNV teve a atribuição de apurar os crimes ocorridos entre 1946 e 1988, com especial enfoque para o período da ditadura militar. Com sete conselheiros indicados pela Presidência da República e mais de duzentos colaboradores, a comissão estruturou-se em 13 Grupos de Trabalho. O relatório final da CNV, entregue em 2014, dividiu-se em três volumes: o primeiro, com uma análise geral da ditadura e suas violações; o segundo, com temas específicos (como indígenas, trabalhadores e homossexuais); e o terceiro, com os nomes e perfis das 434 vítimas reconhecidas como mortas ou desaparecidas. A comissão propôs recomendações para a não repetição de um governo autoritário, o reconhecimento das vítimas e a responsabilização dos perpetradores.
Apesar do escopo amplo, as experiências negras foram invisibilizadas no relatório final. Termos como “racismo”, “movimento negro” e “população negra” são raros ou inexistentes nos três volumes. A única citação ao Movimento Negro Unificado aparece de forma equivocada e superficial. O relatório não menciona outras entidades do movimento negro nem reconhece a produção intelectual de figuras fundamentais naquele contexto, como Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento. Do ponto de vista coletivo e individual, a população negra foi apagada da memória oficial da ditadura.
Contrapondo-se à omissão da CNV, as comissões estaduais, como a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” (CEV Rubens Paiva) e a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio), conseguiram atuar com maior liberdade e concentrar-se nas vítimas. A CEV Rubens Paiva, instituída pela Assembleia Legislativa de São Paulo, realizou 941 audiências públicas, criou a plataforma #VerdadeAberta e se posicionou contra os limites da Lei da Anistia. Seus relatórios contemplaram temas como o Esquadrão da Morte e a repressão ao movimento negro, relatando como a violência racial operou como política de Estado, tanto durante quanto depois da ditadura. O relatório da CEV Rubens Paiva dedicou capítulos inteiros à perseguição à população negra, analisando a continuidade da repressão aos negros no pós-ditadura e suas raízes no racismo estrutural brasileiro.
De maneira similar, a CEV-Rio, instituída em 2012 no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado, destacou-se por uma abordagem mais comprometida com a escuta e o protagonismo das vítimas da ditadura militar que fogem do perfil mais frequente nos relatos oficiais. Diferentemente da CNV, a CEV-Rio deu atenção às experiências de pessoas negras e pobres, ao investigar como a repressão política também se manifestou nas favelas, periferias e contra corpos racializados, rompendo com a visão restrita de que apenas militantes da esquerda organizados foram perseguidos. A comissão levou em consideração a violência cotidiana perpetrada pelas forças de segurança do Estado, entendendo a repressão como um fenômeno amplo, que atingia a população negra sob justificativas de “combate ao crime”, numa lógica racista e seletiva. Os relatórios da CEV-Rio apontaram que práticas repressivas experimentadas no período ditatorial permanecem presentes nas abordagens policiais atuais, principalmente nas áreas mais pobres e racializadas do estado.
Com isso, esses expedientes estaduais demonstraram que a ditadura não se restringiu ao campo político-partidário, mas impactou profundamente os territórios negros e as estruturas sociais que os cercam. Essas comissões não só contribuíram para a ampliação do escopo analítico da repressão, como também reivindicaram que as experiências negras fossem reconhecidas como parte constitutiva da memória política brasileira, estabelecendo um marco importante para a justiça de transição no país.
Apesar de sua enorme importância, a CNV demonstrou limitações ao lidar com as experiências negras na ditadura, enquanto o trabalho das comissões estaduais surgiu como um contraponto essencial. Há a urgência de incluir as histórias negras nos processos de memória, verdade e justiça, já que não é possível haver uma verdadeira justiça de transição enquanto parte expressiva da população brasileira seguir invisibilizada nas narrativas oficiais sobre os períodos marcados por repressão e violação dos direitos humanos.