Guerrilheiro da luta armada contra a ditadura militar, mais conhecido pelo codinome “Bacuri”, foi o militante que, depois de preso, foi torturado por mais tempo pelos agentes da repressão, passando 109 dias nas mãos de seus algozes, sendo submetido a todo tipo de torturas até ser executado. Bacuri chegou a receber, na cela, um jornal que noticiava sua fuga da prisão. Ele permaneceu preso e incomunicável até sua morte. A versão dos militares é de que ele foi morto num tiroteio após escapar da prisão.
Iniciou sua militância bem jovem, integrando, inicialmente, a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), em seguida a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), em 1968, e a Rede Democrática (Rede), em 1969. Posteriormente, passou a integrar a direção da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Um dos mais ativos guerrilheiros nas ações armadas urbanas do período, participou dos sequestros do cônsul do Japão, Nobuo Okuchi, em São Paulo, e do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, no Rio de Janeiro, ambos no primeiro semestre de 1970. Depois disso, Bacuri foi preso no Rio de Janeiro por oficiais do Cenimar, o Centro de Informações da Marinha, em 21 de agosto de 1970.
Entregue pelos militares à equipe do delegado Sérgio Fleury, entre setembro e dezembro de 1970, foi constantemente levado a centros de interrogatórios do DOI-Codi de São Paulo e do Rio de Janeiro, a prisões e casas isoladas e ao presídio da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, onde fez greve de fome e recusou atendimento médico, sendo brutalmente torturado e interrogado dezenas de vezes, sem nada dizer aos torturadores.
Sua mulher, Denise Crispim, viu-o pela última vez depois de ser retirada da cadeia do Dops , grávida de sete meses, e levada pelos homens de Fleury à delegacia do bairro de Vila Rica, em São Paulo. O marido estava algemado e com hematomas e queimaduras por toda a pele.
Considerado pela repressão como o mais perigoso dos guerrilheiros, foi assassinado em 8 de dezembro de 1970, no Forte dos Andradas, no Guarujá, em São Paulo, logo depois do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, no Rio de Janeiro. Eles o mataram para que não fosse libertado na troca de reféns, não apenas por sua importância, mas também pelo estado físico a que havia sido reduzido pelos torturadores. Bem antes disso, ele já não tinha mais o movimento das pernas por causa das torturas – para as quais era levado arrastado – a que vinha sendo submetido.
Seu corpo, encontrado no litoral de São Sebastião, São Paulo, foi entregue à família num caixão lacrado, na tentativa de esconder o que ele havia sofrido nas mãos dos torturadores. Porém, seus familiares o abriram e se depararam com um Bacuri desfigurado, com orelhas decepadas, inúmeras queimaduras, hematomas, dentes arrancados, olhos vazados, dois tiros no peito e dois na cabeça.
Em junho de 2011, foi lançado o livro “Eduardo Leite, o Bacuri”, da jornalista Vanessa Gonçalves, uma biografia de sua vida que se desdobra com mais detalhes em seus 109 dias na mão dos torturadores. Em 2013, a diretora e atriz portuguesa Maria de Medeiros lançou o documentário Repare bem, que resgata a trajetória da ex-companheira de Bacuri, Denise Crispim, e de sua filha Eduarda Ditta Crispim Leite.
Eduardo Collen Leite foi preso pelos agentes da equipe do delegado Sergio Fernando Paranhos Fleury, em 21 de agosto de 1970, na cidade do Rio de Janeiro, quando chegava em casa. Foi levado a um centro clandestino de tortura, em São Conrado, ligado ao Centro de Informações da Marinha (Cenimar), onde foi visto por Ottoni Fernandes Júnior, também preso na casa. Ottoni chegou a afirmar, em denúncia feita à Justiça Militar e também na 1ª audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, que os agentes da repressão já haviam declarado que Bacuri seria morto após as torturas. Na casa de São Conrado, ainda no início do período em que permaneceria sendo torturado, ele já apresentava dificuldades para se locomover sozinho. Posteriormente, Bacuri foi levado ao Cenimar/RJ e ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exército, no Rio de Janeiro, onde foi visto por Cecília Coimbra que declarou, em 2 de outubro de 1995, na Secretaria da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, ter visto Bacuri nas instalações do DOI-CODI/RJ e que dado seu “estado precário físico motor”, era impossível a versão da fuga. Nas duas primeiras semanas de sua prisão nas dependências do DOI-CODI ao pedir a um agente da repressão para que acendesse seu cigarro verificou por uma fresta da porta que aguardava que: Eduardo leite, codinome “Bacuri” estava sendo levado por agentes da repressão tendo marcas de torturas em sua face e braços e, com dificuldade de caminhar, sendo auxiliado por agentes da repressão […]i Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 28 de maio de 2013, a exmilitante da ALN Dulce Pandolfi também relatou o estado físico de Bacuri em uma de suas passagens pelo DOI-CODI/RJ: No térreo tinha a sala de tortura com as paredes pintadas de roxo e devidamente equipada. Tinha outras salas de interrogatório com material de escritório, essas às vezes usadas também para torturar, e algumas celas mínimas, chamadas de solitárias, imundas, onde não havia nem colchão. Aliás, vários aqui presentes passaram por essas celas e essa sala. Nos intervalos das sessões de tortura os presos eram jogados ali. No segundo andar do prédio havia algumas celas pequenas e duas bem maiores, essas com banheiro e diversas camas beliches. Foi numa dessas celas que passei a maior parte do tempo. […] Uma noite, que não sei precisar quando, desci para a sala roxa para ser acareada com o militante, também da ALN, Eduardo Leite [pausa em virtude de choro] conhecido como Bacuri. Lembro até hoje dos seus olhos, da sua respiração ofegante e do seu caminhar muito lento, quase arrastado, como se tivesse perdido o controle das pernas. Num tom sarcástico o torturador dizia para nós dois na presença de outros torturadores: “viram o que fizeram com o rapaz? Essa turma do Cenimar é totalmente incompetente. Deixaram o rapaz nesse estado, não arrancaram nada dele e ainda prejudicaram nosso trabalho”. No dia oito de dezembro daquele ano, mataram Bacuri.ii Bacuri foi torturado por 109 dias consecutivos e passou por diferentes instalações dos órgãos de repressão. Depois do DOI-CODI do I Exército, Eduardo foi transferido para o 41o Distrito Policial (DP) de São Paulo, cujo delegado titular era Fleury. Do 41o DP foi novamente transferido para o Cenimar/RJ, onde foi torturado até setembro, quando retornou para São Paulo. Dessa vez foi levado para o DOI-CODI do II Exército e removido em outubro para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP), onde ficou isolado na cela 4 do chamado fundão. Foi então quando os órgãos da repressão começaram os preparativos para camuflar a execução de Eduardo, que teria ocorrido em uma suposta fuga durante ação policial para prender Joaquim Câmara Ferreira. Eduardo teria sido levado para identificar Joaquim Câmara e, durante um tiroteio, teria escapado. Há, entretanto, diversos depoimentos de ex-presos políticos que atestam que, após a notícia de sua fuga, Bacuri, na verdade, continuava preso e sob tortura. No documento de denúncias dos presos do Presídio da Justiça Militar Federal, em São Paulo, entregue ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em 23 de outubro de 1975, registra-se que: […] no DEOPS seus torturadores planejavam matá-lo […] quando se divulgava sua „fuga‟, Eduardo sequer havia saído de sua cela. Seus torturadores chegaram a „olear‟ as portas enferrujadas das celas para que pudessem retirá-lo em silêncio.iii Nesse documento, que ficou conhecido como Bagulhão, foi registrado que Bacuri foi retirado de sua cela no dia 27 de outubro de 1970, diante de protestos dos prisioneiros. Segundo relatos, ele estava impossibilitado de andar em virtude dos ferimentos da tortura. A partir de então, Eduardo não foi mais visto por nenhum preso político, permanecendo sob custódia de seus torturadores até 8 de dezembro de 1970, quando foi divulgado que teria morrido em tiroteio na cidade de São Sebastião, no litoral paulista. Segundo o jornalista Elio Gaspari, no livro A Ditadura Escancarada, Bacuri teria sido assassinado no forte dos Andradas, na cidade de Guarujá (SP). De acordo com o autor, Eduardo estaria preso em um banheiro quando um major teria entrado, pedido ao soldado Rinaldo Campos de Carvalho, que vigiava o militante, que saísse, e executado Bacuri. Segundo relato do próprio soldado, ao sair do cômodo teria escutado um barulho forte, que poderia se assemelhar tanto ao de um tiro quanto ao som de uma cabeça batendo na parede. Em entrevista à revista Veja de 18 de novembro de 1992, o ex-agente Marival Chaves também afirmou que foi forjada a versão da morte de Eduardo Collen Leite em tiroteio, um “teatrinho” para esconder as gravíssimas e continuadas violências que sofreu. A execução de Bacuri teria ocorrido também a fim de evitar que ele fosse incluído na lista de prisioneiros a serem trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, sequestrado em ação conjunta da VPR e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) no dia anterior, 7 de dezembro. A troca de Bacuri poderia gerar constrangimento, já que, além de ter sido oficialmente declarado foragido, apresentava marcas evidentes de tortura. Em documento enviado em 22 de setembro de 1970 pelo chefe da 2ª Seção do II Exército, em São Paulo, coronel Erar de Campos Vasconcelos, ao chefe da Operação Bandeirantes (Oban), já se previa a possibilidade de ser realizado um sequestro visando a libertação de Eduardo Collen Leite. De acordo com o documento, a medida sugerida pelo coronel para evitar os danos ao regime diante de um possível resgate foi a de “tomadas as devidas providências, no sentido de evitar possíveis explorações sobre seu estado físico”.iv Essa declaração comprova não só que Eduardo Leite foi torturado, mas evidencia também o contexto em que se deu sua execução. Apesar dos relatos que comprovam as marcas visíveis de tortura em Bacuri, o laudo do exame necroscópico, solicitado pelo delegado José Aray Dias de Melo, atestou não haver indícios de tortura no corpo. O documento foi assinado pelos médicos-legistas Aloysio Fernandes e Décio Brandão Camargo. As torturas sofridas por Bacuri foram denunciadas também perante a 2ª auditoria da Justiça Militar de São Paulo, mas nunca foram levadas adiante pelo juiz Nelson Guimarães Machado da Silva. Questionado sobre a omissão em relação às torturas de Bacuri, o juiz Nelson Guimarães respondeu, em depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 31 de julho de 2014: […] havia uma guerra. Havia mentiras também. Tempo de guerra, mentira como terra, um velho provérbio, aliás, português. […] nem tudo que o interrogando diz em juízo, o juiz ou o Ministério Público não pode sair dizendo: “Ah, ele disso isso. Vamos apurar”. Não há apuração que chegue. E não eram as circunstâncias do momento. v Quando o corpo de Bacuri foi entregue à família, as denúncias de tortura e execução se confirmaram. Segundo o testemunho de sua esposa, Denise Crispim, Eduardo tinha hematomas, escoriações, marcas de queimadura, dentes arrancados, orelhas decepadas e os olhos vazados.
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Eduardo Collen Leite foi executado, depois de sofrer torturas nas dependências de órgãos oficiais e clandestinos da repressão, por agentes do Estado, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela Ditadura Militar, implantada no país a partir de abril de 1964. Recomenda-se a retificação da certidão de óbito de Eduardo Collen Leite, assim como a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso, para a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.