José Serra discursa no 31º Congresso da UNE, realizado em 1979
José Serra discursa no 31º Congresso da UNE, realizado em 1979

Reconstrução do movimento e redemocratização (1976-1985)

Reconstrução do movimento e redemocratização (1976-1985)

O movimento estudantil conseguiu aos poucos se recuperar das tentativas de silenciamento, com um árduo trabalho de reconstrução de suas organizações. Mobilizou novamente os estudantes, voltou às ruas, e expôs suas reivindicações pelo ensino público e gratuito e pelas liberdades democráticas.

Em meados dos anos 1970, no bojo da reestruturação do movimento, organizações e partidos clandestinos passaram a ter representantes nas chamadas tendências estudantis. Organizações trotskistas saíram à frente e fundaram a corrente “Liberdade e Luta”, conhecida entre os estudantes como Libelu. Em seguida, o PCdoB deu origem à “Caminhando” e organizações de luta armada, como a Ação Popular (AP), o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Ação Popular Marxista Leninista (APML), deram origem à “Refazendo”.

A Refazendo se constituiu, então, como principal força dentro da USP, vencendo as duas primeiras eleições para o DCE em 1976 e 1977. As “tendências” estudantis dos anos 1970 mantinham o projeto socialista, mas seus caminhos eram diversos, orientados por tradições teóricas diferenciadas. Para os trotskistas, a ação junto ao movimento operário era fundamental para transformar a luta econômica sindical numa consciência política mais nítida, na direção de um levante de massas. Organizações mais ligadas ao PCB, MR8 e PCdoB apostavam em alianças entre estudantes, operários e setores da burguesia nacional. A esquerda católica herdada da AP enfatizava a construção de uma autonomia das bases como forma de garantir o enraizamento do movimento na sociedade.

Em maio de 1976, os estudantes criaram o DCE Livre da USP Alexandre Vannucchi Leme, com 12 mil votos de adesão, ignorando a legislação da ditadura que proibia a articulação das entidades estudantis. E assim foi acontecendo em várias outras universidades brasileiras, onde surgiam tendências estudantis que se articulavam nacionalmente.

Era reconhecida naquele momento a importância da integração, da articulação e da união para o enfrentamento do regime militar e de todas as suas inúmeras violações de direitos humanos. Mesmo sob repressão, foram realizados o primeiro e o segundo Encontro Nacional dos Estudantes, neles eram debatidas questões de natureza política para a resistência à ditadura, assim como assuntos internos das universidades.

Desde o início de 1977, o movimento estudantil mostrou que vinha renovado e com mais força. Em 30 de março daquele ano, ocorreu a primeira passeata dessa nova etapa. Cerca de 3 mil estudantes caminharam do campus da USP até o Largo de Pinheiros, driblando o cerco policial, em ato de muita coragem.

Em maio de 1977 oito estudantes foram presos pelo Dops de São Paulo. Em protesto, uma greve de 24 horas envolveu 80 mil estudantes de diversas universidades, entre elas USP, PUC, Unicamp, Federal de São Carlos e Unesp. Recomeçava a articulação estudantil em São Paulo.

Na véspera do 1º de maio, os órgãos de segurança receberam uma denúncia anônima que levou à prisão de três estudantes que transportavam panfletos de convocação para as manifestações do Dia do Trabalho. Disso se desdobraram novas detenções de estudantes da USP, da PUC e da Federal de São Carlos. Essas prisões deflagraram manifestações pela cidade, que depois se espalharam pelo país, nos chamados “protestos de maio”.

No dia 3 do mesmo mês, 5 mil estudantes, professores, sindicalistas, artistas e padres fizeram um ato na PUC de São Paulo. Unidos ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e à Organização dos Advogados do Brasil (OAB), criaram o Comitê 1º de Maio pelo fim das prisões e pela anistia.

Dois dias depois, os estudantes organizaram uma passeata em São Paulo que seria a mais expressiva da época. Dela participaram cerca de 10 mil estudantes de diversas partes do Estado. No Viaduto do Chá, no centro da cidade, a passeata foi impedida de avançar por viaturas da polícia militar. Apesar do cerco, os estudantes distribuíram cerca de 30 mil panfletos que continham uma carta aberta à população, com os seguintes dizeres:

“Hoje, consente quem cala: basta às prisões; basta de violência. Não mais aceitamos mortes como as de Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Alexandre Vannucchi Leme. (…) Porque não mais aceitarmos as mordaças é que hoje exigimos a imediata libertação dos companheiros presos (…). É por isso que conclamamos todos, neste momento, a aderirem a esta manifestação pública sob as mesmas e únicas bandeiras: fim às torturas, prisões e perseguições políticas (…). Anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados; pelas liberdades democráticas”.

Nesse período havia um planejamento cuidadoso para que os estudantes pudessem ir às passeatas e enfrentar a repressão. Eles se organizavam em grupos pequenos, disfarçados, para aos poucos irem se aproximando dos locais dos protestos sem serem percebidos. Foram muitas as passeatas-relâmpago. Combinava-se um lugar na cidade e assim que era dado o comando todos se dirigiam para lá. Assim acontecia uma manifestação que era imediatamente dispersada pela cavalaria da PM. Em seguida, em outro lugar, ocorria outra passeata-relâmpago.

Alguns estudantes ficavam de plantão para dar retaguarda aos manifestantes. Eles levavam um número telefônico escondido e, caso vissem algum colega sendo preso, ligavam para o esquema de segurança que imediatamente iria acionar a OAB e parlamentares. Não se podia correr o risco de alguém ser preso sem testemunhas e vir a desaparecer.

Aconteceram protestos no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, em solidariedade aos estudantes de São Paulo. Armando Falcão, ministro da Justiça na época, proibiu as passeatas. Entre maio e agosto foram organizados três dias nacionais de luta, sempre reprimidos brutalmente, mas ao mesmo tempo se estendendo a outros estados.

Em agosto, o professor Goffredo da Silva Teles leu, no Largo São Francisco, a Carta aos Brasileiros. Com o apoio de cem juristas, ele defendeu a volta ao Estado de Direito. Em seguida, 7 mil estudantes fizeram uma passeata pelo centro sem sofrer repressão. O isolamento político da ditadura se ampliou.

Em Brasília, o reitor suspendeu 16 alunos em resposta a uma passeata. Isso deflagrou uma greve geral na UnB. Pelas liberdades democráticas, diziam as faixas do movimento grevista. A PM invadiu o campus, ocorreram novas suspensões, prisões e um recesso escolar, mas os protestos se espalharam por outros Estados.

Em 1977, o 3º Encontro Nacional Estudantil, marcado para acontecer na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi proibido pelo ministro da Educação, Ney Braga, por ser considerado “inteiramente ilegal”. A universidade foi invadida pela PM e pelo Dops e 800 estudantes foram detidos.

Os organizadores resolveram, então, transferir o encontro para São Paulo em setembro daquele mesmo ano. O coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança, mandou cercar o campus da USP, mas as lideranças do movimento estudantil conseguiram enganar a repressão. Sessenta delegados, vindos de sete Estados, se reuniram clandestinamente numa sala do prédio novo da PUC e realizaram o encontro para consolidar a reorganização da entidade. Criaram uma Comissão Pró-UNE enquanto 1.500 outros estudantes despistavam a polícia reunindo-se em outro salão na USP.

Vitoriosos, os estudantes anunciaram uma comemoração naquela mesma noite no teatro da PUC, o Tuca. O coronel Erasmo Dias se vingou e, esbravejando, comandou a invasão da universidade, detendo 3 mil pessoas, entre estudantes, professores e funcionários. A PM lançou bombas, espancou militantes e agiu com truculência.

Houve feridos, incluindo cinco alunas gravemente queimadas por bombas. Ao final, 37 estudantes foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Foi um episódio dramático e violento, mas também bastante simbólico na luta pela democracia. A cada ato descabido de repressão aos movimentos sociais a ditadura se enfraquecia.

Em 1978 os estudantes realizaram mais dois Dias Nacionais de Luta, engajaram-se nas manifestações pela anistia e prepararam o retorno da UNE. O movimento estudantil voltou a mostrar sua força.

O 31º Congresso da UNE, que ocorreu em Salvador, em maio de 1979, contou com mais de 10 mil participantes dos vários Estados brasileiros. Muitos ônibus vindos de tantos locais levavam faixas com palavras de ordem: “Viva a UNE”, “A UNE somos nós, nossa força nossa voz”, “abaixo à ditadura”. Foi o congresso de reconstrução da entidade que convocou eleições para outubro. Cinco chapas participaram, a vencedora foi a  Mutirão e o presidente passou a ser Ruy César Costa e Silva, da Universidade Federal da Bahia.

O 31º Congresso aprovou o programa para os anos seguintes, entre as principais bandeiras estavam: lutar contra o ensino pago, por mais verbas para a educação, reivindicar a anistia, ampla, geral e plena, fomentar a filiação de entidades de base (diretórios e centros acadêmicos), lutar por uma Assembleia Constituinte, soberana e livremente eleita e defender a Amazônia – início da consciência da preservação ambiental.

A UNE buscou se reorganizar em todo o país, reativar as entidades estaduais, as UEEs, os centros acadêmicos. Nesse período, as atividades estudantis estiveram mescladas ao movimento político em geral, com o apoio a greves operárias e de outras categorias, como a dos professores, atuando junto a movimentos populares e comunitários. Eles ajudaram na reorganização partidária, contribuindo com a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e a campanha pelas Diretas Já (1984-85).

Embora tenham sido os estudantes a ponta de lança das lutas por liberdades democráticas e a faceta pública do protesto político contra o regime, o movimento sindical e os movimentos populares acabaram assumindo um protagonismo maior no final do regime.

Ao longo de toda sua luta os estudantes deixaram claro que sabiam que, para haver transformações profundas na sociedade brasileira, era importante a participação das outras classes em sua organização e sua própria participação na luta de diversos outros segmentos da sociedade. Os estudantes estavam presentes em manifestações nas periferias contra a carestia, atuaram ao lado de trabalhadores nas manifestações de primeiro de maio, caminharam ao lado dos movimentos de mulheres, foram solidários a diversos movimentos de resistência, e, já no fim da ditadura, marcaram presença nas lutas por anistia.

Congresso de Reconstrução da UNE

Depoimento de Thaís Sauaya, estudante que participou do Congresso de Reconstrução da UNE, em Salvador:

“Na ansiedade esfuziante, não diferíamos muito dos ônibus de excursão do ginásio, nem daqueles das torcidas de futebol. No entanto, tínhamos consciência de que aquele era um momento histórico: discutíamos com paixão o socialismo, a guerrilha, a ditadura, os rachas nas organizações clandestinas, os professores, as relações afetivas, o aborto, a falta de grana, o amor livre, morar sem os pais, as drogas, o cinema, Marx, Lênin, Engels, Trotsky, Stálin, Brecht, Chaplin, Glauber, Vittorio de Sica… enfim, o mundo”.

Thais Sauaya Pereira, da diretoria do Centro Acadêmico da Faculdade de Química da USP, em crônica publicada no site da Fundação Cásper Líbero relatando sua ida de ônibus para o Congresso de reconstrução da UNE em Salvador. Uma viagem de 50 horas.

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