Em apenas quatro edições, de 1966 a 1969, os Festivais da Record transformaram a música brasileira e cristalizaram dois dos gêneros musicais mais relevantes do século XX: as canções de protesto e o tropicalismo. Também desempenharam um papel sem precedentes na modernização da música popular brasileira. Ajudaram no processo de superação de rusgas anacrônicas como a campanha contra o uso de guitarras elétricas, empreendida até 1968 por setores da sociedade, e contribuíram para a valorização dos diferentes aspectos constitutivos da canção, da letra à melodia, do arranjo à interpretação.
As duas primeiras edições foram especialmente revolucionárias. A primeira, em 1966, recebeu 2.635 inscrições e promoveu pelo menos dois monstros sagrados da MPB: o cantor Jair Rodrigues e o compositor Geraldo Vandré. “Disparada“, música de Vandré e Théo de Barros defendida por Jair, dividiu o primeiro prêmio com “A Banda“, marchinha de Chico Buarque interpretada por Nara Leão. Sua letra viril e emocionante, acoplada a uma harmonia com raízes sertanejas executada com perfeição pelo Quarteto Novo (num arranjo regional que incluía até o uso de uma queixada de burro), envolveu o público de tal maneira que até Chico Buarque, o adversário, passou a defendê-la.
No dia da grande final, a imprensa noticiava a polarização entre as duas favoritas. Segundo uma piada corrente na época, o Brasil se dividia entre duas espécies: os bandidos e os disparatados, em referência aos títulos das duas canções. E Chico, para desespero da produção, fez circular pelos bastidores o aviso de que não receberia o prêmio sozinho. “A Banda” tinha suas qualidades, mas “Disparada” era superior, ele dizia.
Muitos anos depois, Zuza Homem de Mello, técnico de som do Teatro Record em 1966, revelaria no livro “A Era dos Festivais” (2003) que de fato “A Banda” recebeu do júri uma pontuação maior do que “Disparada”, a vice, obrigando seus membros a jogar o resultado no lixo para anunciar o empate. Uma marmelada histórica, confirmada pelos envelopes com os votos dos jurados que, ao final da noite, lhe foram confiados por Paulinho Machado de Carvalho, o diretor da emissora, para que Zuza os guardasse em sua casa.
O 3º Festival da Record, por sua vez, é considerado o melhor de todos os festivais pela maioria dos críticos e pesquisadores. A canção vencedora foi “Ponteio“, uma feliz parceria de Edu Lobo e Capinan, cantada por Edu e Marília Medalha, com instrumentação do mesmo Quarteto Novo, consagrado com “Disparada” no ano anterior. No entanto, a maior novidade do festival de 1967 foi levar ao palco as primeiras fagulhas do que viria a se tornar o movimento tropicalista. “Alegria, Alegria“, de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque“, de Gilberto Gil, foram as duas canções mais surpreendentes daquela edição, e concentravam o que havia de mais revolucionário na proposta ética e estética defendida pela turma tropicalista. O movimento em si seria deflagrado oficialmente no ano seguinte, com a canção “Tropicália”, gravada no LP de Caetano, e principalmente com o álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, que reuniu, além dos dois compositores baianos, Nara Leão, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan, Gal Costa e Os Mutantes.
Tanto Caetano quanto Gil, no festival de 1967, subiram ao palco acompanhados por grupos de rock, devidamente armados com guitarras elétricas, prontos para serem vaiados pela patrulha antiamericanismos. O ousado arranjo feito por Rogério Duprat para “Domingo no Parque”, executado pelo grupo Os Mutantes, combinava instrumentos elétricos com ruídos que buscavam sintetizar os sons característicos de um parque de diversões. Já “Alegria, Alegria”, com arranjo de Júlio Medaglia, adquiria a forma de uma marcha-rancho modernizada pela visionária instrumentação de um grupo de rock formado por argentinos radicados em São Paulo, os Beat Boys, cabeludos e essencialmente influenciados pelos Beatles.
“Domingo no Parque” conquistou o segundo lugar, enquanto “Alegria, Alegria”, que começou sob vaias e terminou sob aplausos, faturou o quarto. O terceiro lugar ficou com “Roda Viva“, de Chico Buarque, num sofisticado arranjo feito e interpretado pelo MPB 4. “A gente quer ter voz ativa/ no nosso destino mandar”, dizia a mais politizada das canções premiadas naquele ano, sete meses após a ditadura criar a Lei de Segurança Nacional, que, entre outras disposições, proibia “insurreições” e “atividades subversivas”.
O festival de 1967 teve outros momentos marcantes, como a presença de um deslocado Roberto Carlos, ou o histórico chilique de Sérgio Ricardo, que quebrou o violão e o arremessou contra a plateia ao ser vaiado enquanto tentava cantar a fraca “Beto Bom de Bola”. O mais competitivo de todos os festivais teve ainda Elis Regina, ganhadora do prêmio de melhor intérprete, defendendo a bela “O Cantador“, de Dori Caymmi e Nelson Motta; Johnny Alf com sua “Eu e a Brisa”; e Sidney Miller, vencedor do prêmio de melhor letra, cantando com Nara Leão a lírica “A Estrada e o Violeiro”, entre outros sucessos menos pontuados. Pelo menos uma injustiça seria cometida pelo júri naquela edição: dispensada ainda na fase classificatória, “Máscara Negra”, de Zé Kéti, não chegou a ser apresentada numa eliminatória, mas se tornou o maior hit do carnaval do ano seguinte.
Em 1968, dividindo espaço com o Festival Internacional da Canção, da TV Globo, que vinha galgando importância até superar a audiência e a relevância do festival promovido pela emissora paulista, o Festival da Record voltou a emplacar canções tropicalistas no top 5. A campeã foi “São, São Paulo, Meu Amor”, assinada e defendida por Tom Zé, a despeito de a maioria dos críticos hoje a considerarem aquém da genialidade do inventivo compositor. “Divino, Maravilhoso”, de Gil e Caetano, ficou em terceiro lugar e alçou a intérprete Gal Costa ao estrelato, rendendo à turma da Tropicália um programa homônimo na emissora. Finalmente, a moda caipira-psicodélica “2001“, outra de Tom Zé, agora em parceria com Rita Lee, abocanhou o quarto lugar, defendida pelo grupo Os Mutantes. Edu Lobo e Chico Buarque voltaram a emplacar canções entre as preferidas do júri, e Sérgio Ricardo, desclassificado no ano anterior, figurou em quinto lugar.
A história dos Festivais da Record terminaria em 1969, com um prêmio de melhor letra para “Moleque”, do novato Gonzaguinha, e a vitória de “Sinal Fechado“, de Paulinho da Viola, defendida por ele mesmo. Diferente dos sambas que o tornaram conhecido, dessa vez Paulinho emplacou uma canção diferente, estranha e genial, com uma cadência truncada, cheia de breques e silêncios, que reforçavam o clima de aflição e abismo sugerido pela letra. “Sinal Fechado” ficaria especialmente famosa na interpretação de Chico Buarque, no disco homônimo de 1974.