Fundação do MNU em São Paulo em 1978
Fundação do MNU em São Paulo em 1978

Luta cultural e política

A luta dos negros brasileiros durante a ditadura pode ser pensada em dois campos que, por sua vez, se conectavam: o cultural e o político.

No campo cultural, a valorização da população negra dentro da cultura brasileira começou a desenvolver um espaço próprio. As velhas teorias da mestiçagem e a ideologia da “democracia racial” começaram a ser duramente criticadas por intelectuais, artistas e agitadores culturais. No mundo acadêmico, sociólogos como Florestan Fernandes desenvolveram críticas sofisticadas e aprofundadas à ideia de “democracia racial”, demonstrando como os negros foram integrados à sociedade industrial e urbana, com a manutenção da uma situação de dupla exclusão, social e racial.

No samba, por exemplo, incrementou-se um processo de valorização das raízes negras e africanas, ainda que o gênero fosse símbolo de brasilidade. No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, na explosão da “black music”, artistas como Tim Maia e Toni Tornado colocaram em pauta explicitamente a questão da luta contra a discriminação.

Capa do disco Coisas do meu pessoal da cantora e compositora Leci Brandão
Capa do disco “Coisas do Meu Pessoal” da cantora e compositora Leci Brandão, ícone do samba e da luta do movimento negro.

No ano de 1974, na cidade de Salvador, o bloco Ilê Aiyê surgiu com a proposta de celebrar o carnaval sem esquecer o protesto contra o racismo, cantando “É o mundo negro que viemos mostrar a você”. Nas periferias, começou a surgir uma nova consciência entre jovens e adolescentes cujo foco era a valorização da “identidade racial” e a percepção do preconceito explícito ou disfarçado que marcava a sociedade brasileira. Apesar disso, o “racismo cordial” à brasileira ainda era frequente, e a população negra era a mais marginalizada.

No campo político, a novidade dos anos 1970 foi o ressurgimento de um movimento negro altamente politizado e influenciado por ideologias marxistas. Embora os partidos de esquerda sempre tivessem priorizado e luta de classes e não a questão racial, que julgavam derivada da primeira, muitos partidos e grupos marxistas – como o PCB e o PCdoB – já tinham colocado a “questão racial” em seus programas, manifestos, resoluções.

Artistas brasileiros influenciados pelo comunismo também já haviam criado várias obras nas quais essa questão aparecia, entre filmes, músicas e livros. Mas foi em 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), incentivado inicialmente por militantes trotskistas da Convergência Socialista, que a questão racial e o discurso marxista foram mais intimamente conectados, a partir de um ativismo no qual os militantes negros de formação universitária eram os principais protagonistas.

O MNU foi fundado num ato público que reuniu 2 mil pessoas, no dia 7 de julho daquele ano, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato era uma resposta à discriminação sofrida por quatro jovens atletas negros num clube esportivo de São Paulo, além de outros eventos de violência policial contra os negros.

Vale lembrar que a ditadura militar brasileira retomou a ideologia da “democracia racial” como um de seus eixos de integração nacional autoritária. Para a ditadura e seus ideólogos, a racialização das desigualdades no Brasil e as pautas do movimento negro eram antipatrióticas, imitação superficial e descontextualizada do movimento negro estadunidense. Afirmava-se que aqui não existia racismo. Portanto, o surgimento de uma “consciência negra”, expressa num grupo de origem marxista, que não media as palavras para denunciar o racismo explícito e oculto da sociedade brasileira, era um duplo desafio para a ditadura antirracialista e anticomunista.

Uma das propostas mais ousadas do MNU se deu no bojo do movimento pela Anistia, em 1978. Alguns textos do movimento sugeriam que todos os “presos comuns” negros fossem considerados “presos políticos” e, portanto, anistiados. Obviamente, tratava-se de uma forma exacerbada de provocar a reflexão sobre os motivos da “escolha criminosa” de pretos e pardos, dada a falta de oportunidades reais depois de quatro séculos de escravidão. Pouco tempo depois da fundação do MNU, foram organizados “Centros de Luta” em outras capitais (Salvador, Vitória e Porto Alegre).

Em dezembro de 1979, realizou-se o 1º Congresso Nacional do MNU, no Rio de Janeiro, estruturando o movimento nacionalmente e propondo apoio a candidatos em futuras eleições parlamentares. O Programa de Ação do MNU era composto por 16 itens, entre eles, a realização de uma reforma agrária radical, a proteção dos acampamentos dos sem-terra, o direito de sindicalização dos trabalhadores e uma reforma geral do ensino.

Militantes do MNU foram as ruas de São Paulo no dia 20 de novembro de 1979
Militantes do MNU foram as ruas de São Paulo no dia 20 de novembro de 1979. Na fotografia a militante Fátima Ferreira leva seu filho nos braços

No 2º Congresso do MNU, realizado em Belo Horizonte em 1980, a denúncia contra a violência policial e o desemprego foi priorizada nas discussões e linhas de ação. Um dos paradoxos da “abertura” e da “redemocratização” é que a letalidade das polícias militares estaduais aumentou, atingindo sobretudo jovens de periferia, negros e pobres.

Além disso, o MNU encampou as lutas específicas das mulheres negras, duplamente discriminadas, por serem negras e mulheres, numa sociedade racista e machista. A idealização das “raízes africanas”, vistas em seu conjunto sem se preocupar com as etnias ou nacionalidades do continente, o Pan-Africanismo e a necessidade de se conectar com outros movimentos negros ao redor do mundo davam o tom da luta do MNU.

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