Baile dos Enxutos na Boate Dizzy, Florianópolis, 1982. Acervo Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC).

Redes de Solidariedade e Ativismo

No capítulo “Ditadura e homossexualidades”, do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, a emergência do chamado Movimento Homossexual Brasileiro é vista como uma resposta às políticas autoritárias e repressivas da ditadura militar. Onde há repressão, também há resistência – esta é a conclusão. Evidentemente, a constituição de um movimento organizado foi uma forma eficaz e coletiva de enfrentar o moralismo, a patologização e a perseguição a que as pessoas dissidentes de gênero e sexualidade foram vítimas no período ditatorial. No entanto, vale se perguntar: quais outras estratégias foram desenvolvidas por esses sujeitos para defender suas existências?

Este eixo mostra que uma multiplicidade de repertórios de ação foi mobilizada entre as décadas de 1960 e 1980, desmontando noções geralmente repetidas sobre as possibilidades de agenciamento político e coletivo de sujeitos dissidentes. Publicações diversas (em formato, periodicidade, temáticas etc.), produzidas de maneira independente, existiram muito antes da abertura política, ensejando a criação da Associação Brasileira de Imprensa Gay (ABIG), cujas atividades foram encerradas após o golpe de Estado de 1964. Esses periódicos não só permitiram a circulação de informações, mas também estimularam os contatos entre ativistas no Brasil e no exterior.

Espaços de sociabilidade e redes de solidariedade foram igualmente fundamentais para a formulação de modalidades diversas de protesto social e para a construção de diálogos entre os movimentos sociais do período. Brechas foram criadas para existir, encontrar-se, divertir-se e apoiar-se mutuamente, ainda que as condições fossem pouco favoráveis e fosse perigoso – social e politicamente – criá-las.

Publicações e circulação de informações

Leila Míccolis entrevista Anuar Farah e Agildo Guimarães para o jornal Lampião da Esquina. Os ativistas conversam sobre os periódicos Snob e Le Femme, publicados na década de 1960. Jornal Lampião da Esquina, nº 28, setembro de 1980.

Wilson Mandela, remanescente do grupo Adé Dudu, fala sobre quando tomou conhecimento do jornal Lampião da Esquina. Entrevista realizada por Bruno Pinheiro, Elson Rabelo e Marcus Oliveira, da Rede de Historiadorxs Negrxs (2021).

“Diga aí, bicha”. Publicação realizada em março de 1981 pelo do Adé Dudu – Grupo de Negros Homossexuais, sediado em Salvador (BA), com reflexões sobre a experiência homossexual negra, a partir da coleta de depoimentos. Acervo Prof. Dr. Luiz Mott (CEDOC LGBTI+).

Anúncio sobre a assinatura do boletim ChanacomChana,publicado no jornal Mulherio em setembro de 1986. O periódico foi publicado entre 1981 e 1988 por iniciativa de um grupo de pesquisadoras feministas da Fundação Carlos Chagas (São Paulo). Mulherio, ano VI, nº 26, setembro de 1986. Repositório Fundação Carlos Chagas (FCC).
Anúncio sobre a assinatura do boletim ChanacomChana,publicado no jornal Mulherio em setembro de 1986. O periódico foi publicado entre 1981 e 1988 por iniciativa de um grupo de pesquisadoras feministas da Fundação Carlos Chagas (São Paulo). Mulherio, ano VI, nº 26, setembro de 1986. Repositório Fundação Carlos Chagas (FCC).

Encontros e sociabilidade

Em meio à repressão, sobretudo a partir do final da década de 1970, surgiram espaços de sociabilidade como boates, bares e festas que, mesmo alvos de vigilância e violência, funcionavam como territórios de liberdade, invenção estética e construção de afetos. Práticas afetivas, festivas e políticas foram fundamentais não apenas como formas de sobrevivência subjetiva e coletiva, mas também como meios de enfrentamento ativo às imposições sociais e estatais. Entre becos e salões, nas esquinas do anonimato ou sob os refletores dos palcos, corpos dissidentes encontraram maneiras de existir em meio ao autoritarismo, extraindo o máximo de potência dos encontros.

No final dos anos 1970, a fotógrafa Cristina Calixsto envolveu-se com as militâncias feminista e homossexual. Assista ao trecho do testemunho em que ela conta sobre o processo de formação do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), em 1980. Coleção “Memórias à margem”. Testemunho de Cristina Calixto. 08 de fevereiro de 2024. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

"Viva São Paulo. Um roteiro para mulheres". Jornal Lampião da Esquina, nº 13, ano II, junho de 1979. Acervo Prof. Dr. Luiz Mott (CEDOC LGBTI+).
"Viva São Paulo. Um roteiro para mulheres". Jornal Lampião da Esquina, nº 13, ano II, junho de 1979. Acervo Prof. Dr. Luiz Mott (CEDOC LGBTI+).

Teaser do documentário Café Futebol Feminino (em produção), sobre o clube de futebol feminino homônimo, que surgiu na cidade de São Paulo (SP),no começo dos anos 1980. Direção: Janice Ghiraldini e Francisco Santos. Produtora: Prompt Filmes.

Ermeval da Hora, remanescente do grupo Adé Dudu,relembra o principal local de encontro dos ativistas e seus amigos, um pequeno apartamento alugado no Pelourinho, em Salvador (BA). Entrevista realizada por Bruno Pinheiro, Elson Rabelo e Marcus Oliveira, da Rede de Historiadorxs Negrxs (2021).

Redes de solidariedade e ativismos

A construção de laços afetivos e políticos entre os sujeitos permitiu a troca de informações, o apoio mútuo e a organização de ações coletivas. Grupos e publicações independentes funcionaram como canais de comunicação, conectando ativistas de diferentes regiões do país e também no exterior. Essas redes ampliaram os espaços de debate político, fortalecendo reivindicações, como a de defesa do jornal Lampião da Esquina. A correspondência postal, por sua vez, criou um espaço de construção de amizades e parcerias duradouras.

Em agosto de 1978, foi aberto um inquérito policial contra os editores do Lampião da Esquina, baseado na Lei de Imprensa. Neste contexto, João Silvério Trevisan, um dos fundadores do periódico, entrou em contato com diversas organizações internacionais de defesa dos direitos homossexuais, em busca de apoio político ao jornal. Acervo Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.

Listagem de dezenas de organizaçõs internacionais de defesa dos direitos homossexuais em apoio ao jornal Lampião da Esquina (1979). Acervo Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.

Após a publicação de extensa reportagem sobre lesbianidade na edição nº 14, o Repórter recebeu diversas cartas de leitoras compartilhando suas impressões. O jornal abriu espaço para a criação de uma seção de correspondência específica para as pessoas dissidentes, algo inédito em uma publicação alternativa não segmentada. "Correio homossexual". O Repórter, ano II, nº 15. Rio de Janeiro (RJ). Março de 1979. Acervo Bajubá.
Após a publicação de extensa reportagem sobre lesbianidade na edição nº 14, o Repórter recebeu diversas cartas de leitoras compartilhando suas impressões. O jornal abriu espaço para a criação de uma seção de correspondência específica para as pessoas dissidentes, algo inédito em uma publicação alternativa não segmentada. "Correio homossexual". O Repórter, ano II, nº 15. Rio de Janeiro (RJ). Março de 1979. Acervo Bajubá.
Com a intenção de viajar ao Brasil, o argentino Jack Pilli enviou uma carta ao Somos-SP, cujo contato fora fornecido por um ativista alemão. Acervo Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.
Com a intenção de viajar ao Brasil, o argentino Jack Pilli enviou uma carta ao Somos-SP, cujo contato fora fornecido por um ativista alemão. Acervo Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.

Protestos

A noção de protesto político foi ampliada neste eixo para abarcar diversas formas de insurgência presentes no cotidiano das pessoas dissidentes de gênero e sexualidade. Manifestações públicas, publicações na imprensa e cartas abertas são algumas mostras da inventividade de sujeitos e grupos ao traçar estratégias de contestação das normas vigentes, disputando o debate público.

“Além de preto, bicha”. Jornal O inimigo do rei, ano III, nº 4, fevereiro de 1979. Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP/Unesp). Em reportagem inédita para a época, o jornalista e ativista Hamilton de Jesus Vieira analisa as diversas formas de discriminação sofrida pelos gays negros no Brasil.

O inimigo do rei foi um jornal anarquista com pautas voltadas aos interesses das minorias sociais. Publicado entre os anos de 1977 e 1988, com circulação na Bahia.

Carta aberta dos grupos homossexuais e grupos feministas de repúdio às ameaças terroristas. Acervo Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.
Carta aberta dos grupos homossexuais e grupos feministas de repúdio às ameaças terroristas. Acervo Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.
"Lésbicas x Ferro's". Mulherio, ano III, nº 15, setembro de 1983. Repositório Fundação Carlos Chagas (FCC). O Levante do Ferro's Bar foi uma manifestação realizada em São Paulo (SP), em 19 de agosto de 1983, protagonizada pelas ativistas do Grupo de Ação Lésbico Feminista (GALF), em protesto contra a sua expulsão do local e a proibição da venda do boletim ChanacomChana. Nota publicada pelo jornal feminista Mulherio.
"Lésbicas x Ferro's". Mulherio, ano III, nº 15, setembro de 1983. Repositório Fundação Carlos Chagas (FCC). O Levante do Ferro's Bar foi uma manifestação realizada em São Paulo (SP), em 19 de agosto de 1983, protagonizada pelas ativistas do Grupo de Ação Lésbico Feminista (GALF), em protesto contra a sua expulsão do local e a proibição da venda do boletim ChanacomChana. Nota publicada pelo jornal feminista Mulherio.

Wilson Mandela reflete sobre a perspectiva do Adé Dudu a respeito da luta articulada contra a homofobia e o racismo. Entrevista realizada por Bruno Pinheiro, Elson Rabelo e Marcus Oliveira, da Rede de Historiadorxs Negrxs (2021).

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