Acusadas de atentado ao pudor, travestis presas no Teatro Paramount durante o carnaval de 1967. Diário da Noite. São Paulo (SP). 07 de fevereiro de 1967. Acervo Arquivo Público de São Paulo

Repressão e Autoritarismo

As violências praticadas contra pessoas LGBTQIAP+ são apresentadas no Relatório Final da CNV através das rondas policiais comandadas por Wilson Richetti no centro de São Paulo entre 1976-1982. Essas rondas promoviam prisões em massa (ou para averiguação) sob o pretexto de combater a violência. uitos deste operativos receberam nomes que revelam, na verdade, seu viés de higienização moral e social: Operação Boneca, Operação Limpeza, Pente-Fino e Arrastão. Esse padrão repressivo tem raízes no fim do século XIX, quando prisões para averiguação eram usadas para controlar comportamentos considerados desviantes, sobretudo entre trabalhadores informais e ex-escravizados, enquadrados como vadios, bêbados ou desordeiros. Ao longo do século XX, essas prisões se institucionalizaram como política de segurança pública e consolidaram a imagem da polícia como braço do Estado no projeto de promover o progresso social. As prisões em massa foram realizadas sem processo formal e envolviam, frequentemente, maus-tratos, abusos e corrupção, no entanto, foram amplamente praticadas entre 1940 e 1980. Assim, embora Richetti simbolize a repressão no período ditatorial, os documentos reunidos neste eixo revelam uma violência estrutural e contínua, envolvendo diferentes agentes estatais em operações realizadas em várias regiões de São Paulo e em outras capitais, e que sempre estiveram marcadas por recortes de gênero, raça e classe.

Policiamento, moralidade e ditadura

Instituída no Estado Novo em 1941, a Lei de Vadiagem segue em vigor na Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688), com até três meses de prisão. O Senado atualmente estuda retirar a vadiagem da lista de contravenções por ser entendida como uma lei de caráter arbitrário e seletivo, que permitiu que a polícia prendesse qualquer “suspeito” apenas por seu comportamento, aparência ou classe social. A Lei de Vadiagem afetou travestis e homossexuais, perseguidos por “atentado aos bons costumes”; negros e pobres, enquadrados por “desocupação” ou “ociosidade”; e os trabalhadores informais acusados de “vadiagem” por não estarem registrados. O projeto de lei que busca extinguir o delito de vadiagem (PL 1.212/2021) argumenta que, por não exigir comprovação de crime, a Vadiagem perpetua o racismo e a violência policial.

Coletas de Testemunho sobre prisões por vadiagem

Testemunho de Lili Vargas sobre as batidas policiais na República, em São Paulo, no final dos anos 1960. São Paulo. 11 de abril de 2024. Coleção “Memórias à margem”.Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Testemunho de Kelly Cunha sobre sua passagem pelo prédio do Deops/SP, durante a Copa do Mundo de 1970. São Paulo. 07 de agosto de 2023. Coleção “Memórias à margem”. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Testemunho de Eduardo Luiz Barbosa quando foi preso por vadiagem, aos 16 anos de idade, em 1977, no Largo do Arouche, centro de São Paulo. São Paulo. 07 de novembro de 2023. Coleção “Memórias à margem”. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Testemunho de Marcinha do Corintho sobre a repressão às travestis em São Paulo, no início dos anos 1980. São Paulo. 21 de julho de 2022. Coleção “Memórias à margem”. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo

A repressão à população LGBTQIAP+ durante a ditadura é parte de uma estrutura ampla de controle e exclusão social que atingiu também as periferias urbanas, as religiões de matriz africana e até mesmo servidores públicos acusados de “homossexualismo”. Sob o pretexto de “manutenção da ordem”, “combate ao crime” e ao “mal espiritismo” foram promovidas, por meio de operações policiais, políticas de limpeza social, racismo institucional e religioso e criminalização da pobreza. A censura, ampliada durante a ditadura, também atuou contra temas associados a gênero e sexualidade e permitiu que Estado não apenas reprimisse corpos dissidentes como tentasse também controlar as narrativas produzidas sobre esses corpos. Neste ponto das narrativas, importante ainda destacar o papel da grande imprensa em manter a associação de homossexuais e travestis ao debate médico, psiquiátrico ou criminal.

Periferias e religião

Expurgos no funcionalismo e no seviço militar

Sindicância contra Capitão de Cavalaria acusado de homossexualidade. Ministério da Guerra. Brasília (DF). 15 de fevereiro de 1967. Acervo Arquivo Nacional

Censura

Suspensão da peça "Entre pernas e curvas" pela Censura gera ameaça de greve por parte dos artistas dos teatros de revista no Rio de Janeiro. Última Hora. Rio de Janeiro. 10 de agosto de 1961. Acervo Arquivo Público de São Paulo
Suspensão da peça "Entre pernas e curvas" pela Censura gera ameaça de greve por parte dos artistas dos teatros de revista no Rio de Janeiro. Última Hora. Rio de Janeiro. 10 de agosto de 1961. Acervo Arquivo Público de São Paulo

Em 06 de abril de 1982, a boate Pink Panther, em Santos (SP), recebeu a autorização da Censura Federal para a realização de shows de strip-tease, eróticos e musicais, após a técnica da Censura, Maria Celeste Campanholo, assistir um ensaio geral. Na segunda página do documento, vemos o nome de Gretta Starr, travesti, e uma das estrelas da casa, destacado de vermelho.

Consuelo Lamarque quando detida pela polícia no Rio de Janeiro acusada de ser a guerrilheira da ALN conhecida como "Loura dos Assaltos". Última Hora. Rio de Janeiro. 15 de julho de 1969. Acervo Arquivo Público de São Paulo
Consuelo Lamarque quando detida pela polícia no Rio de Janeiro acusada de ser a guerrilheira da ALN conhecida como "Loura dos Assaltos". Última Hora. Rio de Janeiro. 15 de julho de 1969. Acervo Arquivo Público de São Paulo

Caso de Ilha Grande - Consuelo Lamarque

É com longa historicidade que o Estado brasileiro articula políticas de controle e exclusão contra sua população de “indesejáveis”: negros, pobres, prostitutas, travestis e homossexuais. No final do Império e início da República foram criados até mesmo manicômios, colônias correcionais e asilos para remover esses grupos dos espaços públicos em prol da promoção da ordem e do progresso social e moral. Ao longo das décadas de 1940 e 1960, essa lógica de confinamento se estendeu das prostitutas aos homossexuais e travestis, contando com projetos que defendiam o internamento destas pessoas em campos agrícolas ou presídios. Um destes exemplos é o caso, em 1969, do Presídio de Ilha Grande, que décadas anteriores já havia recebido Madame Satã. Neste ano, o famoso cárcere, também utilizado para presos políticos, passou a ser avaliado por autoridades como destino de todas as travestis detidas pela polícia no estado do Rio de Janeiro.

Testemunho da ativista Marisa Fernandes sobre ameaças de serem “mandadas para Ilha Grande” após prisões na PUC-SP em 1977. São Paulo (SP). 24/08/2017. Acervo Memorial da Resistência de São Paulo.

Experiências de Exílio

O contexto político, financeiro, social e moral do Brasil no contexto da ditadura empurrou muitas pessoas LGBTQIAP+ para a vida em exílio, seja físico ou simbólico. A vigilância, a repressão e o cerceamento da existência pública fizeram com que, para muitos, deixar o país fosse a única saída possível. No entanto, essa realidade coexiste com outra: cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, apesar da repressão, foram também cidades de diversidade na cena noturna, nas redes de sociabilidade e nos espaços culturais e, por isso, foram para muitos, uma cidade de possibilidades. Travestis e homossexuais de diversas partes do Brasil e da América Latina aportaram nessas cidades em busca de redes, trabalho e alguma possibilidade de existência pública num contexto em que viver era habitar o fio da navalha entre o desejo de existir e o medo constante de desaparecer.

Em 1972, o jornalista Celso Curi partiu para o exílio em Munique, Alemanha. Assista ao trecho do testemunho em que ele aponta a compara as possibilidades as vivências homossexuais na Alemanha e no Brasil. Coleção “Memórias à margem”. Testemunho de Celso Curi. 30 de janeiro de 2024. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Carta de Caio Fernando de Abreu para seus pais sobre suas primeiras experiências na Europa. Londres, 04 de setembro de 1973. Acervo Caio Fernando Abreu/DELFOS/PUCRS

Sobre
Saiba mais sobre o projeto, realizadores e seus objetivos.
Apoio ao Educador
Aplique o conteúdo sobre a ditadura no Brasil na sala de aula para ampliar o estudo da História do Brasil e a formação da cidadania com o suporte de sequências didáticas e a promoção do protagonismo dos alunos. Consulte sequências didáticas que poderão auxiliar os educadores a trabalharem o tema da ditadura militar brasileira em sala de aula.
Projetos
Visite a galeria de projetos especiais realizados pelo Instituto Vladimir Herzog na promoção da Memória, Verdade e Justiça no Brasil, e na difusão de histórias inspiradoras de luta.
Acervo
Explore uma diversidade de conteúdos relacionados ao período da ditadura militar brasileira que ocorreu entre 1964 e 1985.
Memória Verdade e Justiça
Os direitos da Justiça de Transição promovem o reconhecimento e lidam com o legado de atrocidades de um passado violento e de um presente e futuro que precisam ser diferentes, para que se possa dizer: “nunca mais!”. Conheça algumas medidas tomadas pelo Estado e sociedade brasileiros para lidar com o que restou da ditadura de 1964.
Cultura e Sociedade
Apesar do conservadorismo e da violência do regime, a produção cultural brasileira durante a ditadura militar se notabilizou pelo engajamento político e desejo de mudança. Conheça um pouco mais sobre as influências do período em diversos setores da sociedade.
Repressão e Resistência

O Estado brasileiro utilizou uma série de mecanismos para amedrontar a população, sobretudo aqueles que não estivessem de acordo com as medidas ditatoriais. Conheça os reflexos do aparato repressivo e os focos de resistência na sociedade.