Capa do jornal alternativo Inimigo do Rei, ano 3, nº 9. Salvador (BA), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Porto Alegre (RS). 06 de fevereiro de 1980. CEDEM.

Imaginário Social

Para compreender as experiências de pessoas dissidentes de gênero e sexualidade no período proposto, é importante considerar diferentes dimensões da vida social. Entre elas, o pensamento médico, os valores morais, a conduta policial, as relações de consumo, assim como as práticas de subversão articuladas por esses segmentos, entre outros fatores. Uma perspectiva multifacetada evidencia a heterogeneidade dos grupos sociais, deixando entrever os dissessensos entre eles, mas também no interior de cada um.

Com essa abordagem ampla, o eixo apresenta livros médicos, notas policiais, matérias de entretenimento e testemunhos. Juntos, esses materiais esboçam um retrato da sociedade brasileira e seus diferentes atores, ora em posturas progressistas, ora conservadoras.

Se, por um lado, as dissidências de gênero e sexualidade surgem com frequência em cadernos policiais e discursos científicos — associados por alguns à criminalidade ou à disfunção —, por outro, elas também constroem códigos próprios de identificação e formas de sociabilidade. Essas práticas constituem estratégias de sobrevivência e resistência frente à ordem vigente. Dito de outra forma, são gestos de ruptura com o imaginário de uma sociedade heteronormativa.

Moralidade e patologização

Capa do livro "Homossexualidade feminina - estudo psicodinâmico do lesbianismo", de Frank S. Caprio. São Paulo: Ibrasa, 1960. Acervo Arquivo Lésbico Brasileiro.
Capa do livro "Homossexualidade feminina - estudo psicodinâmico do lesbianismo", de Frank S. Caprio. São Paulo: Ibrasa, 1960. Acervo Arquivo Lésbico Brasileiro.

Publicado originalmente em inglês, em 1954, esse livro do psiquiatra Frank Caprio chegou ao Brasil em 1960. Nessa obra, ele propõe uma classificação do que chama de tipos de homossexualidade feminina: “safismo através de luxúria”, “safismo profissional”, “safismo por necessidade” e “safismo por temor”. Embora os termos possam parecer estranhos na atualidade, eles são expressões de uma perspectiva médica que buscava em fatores psíquicos, hormonais, sociais e familiares a explicação para sexualidades dissidentes.

Rose Abreu é lésbica e foi a criadora da Revista G, a primeira publicação LGBTQIA+ de Campinas (SP). Assista ao trecho do seu testemunho público, registrado pelo projeto “A Construção de um acervo de testemunhos públicos memória LGBT+”, em Campinas (SP), em 26 de novembro de 2024, no qual ela conta sobre os tratamentos médicos aos quais foi submetida na adolescência para reverter sua homossexualidade. Instituto Vladimir Herzog. “Rose Abreu – A Construção de um acervo de testemunhos públicos memória LGBT+”. 14 de abril de 2025.

Publicado em 1953, o livro “Homossexualismo Masculino” é um diário ficcionalizado, escrito a partir de um estudo médico-legal apresentado na Faculdade de Direito da Universidade do Brasi, em 1947. Assista ao trecho do testemunho de Edy Star (1938-2025) em que ele relata as suas percepções após a leitura do livro. Coleção Memórias à margem. Testemunho de Edy Star. São Paulo. 24 de janeiro de 2024. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Relato de Florianel Portela de Almeida (1947-1999), eleita Miss Bahia, em 1966, sobre sua internação compulsória em um hospital psiquiátrico. "Psiquiatra trata lésbica como marginal". O Repórter. n 14, ano II. Rio de Janeiro (RJ). Fevereiro 1979. Acervo Bajubá.
Relato de Florianel Portela de Almeida (1947-1999), eleita Miss Bahia, em 1966, sobre sua internação compulsória em um hospital psiquiátrico. "Psiquiatra trata lésbica como marginal". O Repórter. n 14, ano II. Rio de Janeiro (RJ). Fevereiro 1979. Acervo Bajubá.
Marta Suplicy. Conversando sobre sexo. Rio de Janeiro: Vozes, 1987
Marta Suplicy. Conversando sobre sexo. Rio de Janeiro: Vozes, 1987

No início da década de 1980, outras perspectivas sobre gênero e sexualidade se tornam mais comuns, refletindo os efeitos dos movimentos de liberação sexual no Brasil e no exterior. Embora perspectivas medicalizantes ainda existissem – e tenham ganhado novo fôlego com o advento da epidemia de HIV/Aids – elas passaram a ser cada vez mais tensionadas. Exemplo disso é o livro “Conversando sobre Sexo”, de Marta Suplicy, no qual é discutida a ideia de homossexualidade como orientação sexual, popularizando ainda mais os debates que ela conduzia no programa “TV Mulher”, na Rede Globo, entre 1980 e 1986.

Criminalidade

Entre as décadas de 1960 e 1980, os meios de comunicação no Brasil, frequentemente ligados a grupos conservadores, exerceram papel crucial na construção de um imaginário social repleto de preconceitos e estereótipos. Pessoas dissidentes de gênero e sexualidade eram presença constante nas páginas policiais, sendo associados a crimes como roubo, tráfico de drogas e aliciamento de menores. Colunistas e repórteres alimentavam o pânico moral, alertando para o “perigo” de conviver com esses grupos, enquanto editoriais e cartas à redação pediam repressão à sua presença nos espaços públicos, principalmente durante o dia. Diante da hostilidade midiática, surgiram ainda nos anos 1960 iniciativas de comunicação própria criadas por esses grupos, como os jornais Snob e Le Femme. Na década seguinte, com o fortalecimento dos movimentos sociais, o grupo Somos (SP) teve entre suas primeiras ações públicas a articulação de uma resposta coletiva aos discursos discriminatórios do jornal Notícias Populares (SP) e a publicação de um jornal gay, O Lampião da Esquina (RJ), distribuído em bancas de todo o país.

Relato de Leila Míccolis, escritora e ativista bissexual,sobre uma lésbica que passou de vítima a ré, após denunciar um ato de violência sexual à Polícia de São Paulo. Recuperado de “Prazer, gênero de primeira necessidade. In: DANIEL, Herbet; MÍCCOLIS, Leila. Jacarés & Lobisomens, 1983, p. 89-90

Liberação sexual e consumo

Entre 1976 e 1978, o jornalista Celso Curi assinou a “Coluna do Meio”, no jornal Última Hora, com notícias sobre a vida noturna homossexual na cidade de São Paulo (SP). Por causa da coluna. ele foi processado pelo Ministério Público, por violação à moral e aos bons costumes. Assista ao trecho do testemunho em que ele reflete sobre a relação entre frequentar a noite e resistir à ditadura. Coleção “Memórias à margem”. Testemunho de Celso Curi. 30 de janeiro de 2024. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Aloma Divina iniciou sua carreira artística em 1967, no teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro (RJ). Em 1974, mudou-se para São Paulo (SP), tornando-se uma das estrelas da boate Medieval. Assista ao trecho do testemunho em que ela conta como fez para tornar-se uma das artistas contratadas pela casa. Coleção “Memórias à margem”. Testemunho de Aloma Divina. 14 de junho de 2024. .Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Mapa do projeto "Cidade entendida", com pontos de sociabilidade para gays, lésbicas e bissexuais no período de 1978 a 1987, em São Paulo (SP), elaborado por João Gabriel Barbosa, em 2023.
Mapa do projeto "Cidade entendida", com pontos de sociabilidade para gays, lésbicas e bissexuais no período de 1978 a 1987, em São Paulo (SP), elaborado por João Gabriel Barbosa, em 2023.

Navegue pela versão interativa em: https://www.google.com/maps/d/edit?mid=1fpmnre2s86SrvGDuHVf6v7y3fJIKXtA

Gretta Starr iniciou sua carreira como artista transformista em Santos (SP), em 1977, tornando-se uma das estrelas da casa noturna Pink Panther. Anos antes, havia iniciado a sua transição de gênero, identificando-se como travesti. Em 1979, ganhou o concurso Miss Universo Gay. A conquista gerou notoriedade, levando Gretta a apresentar-se pelo Brasil e no exterior, até mudar-se para o Japão, em 1985.

Censura não deixou Rogéria transar o corpo. O repórter, n. 51, 2 de setembro de 1981. Memórias da Ditadura/Instituto Vladimir Herzog
Censura não deixou Rogéria transar o corpo. O repórter, n. 51, 2 de setembro de 1981. Memórias da Ditadura/Instituto Vladimir Herzog

Invenções de si

"Da arte de ser boneca (IV). Para marciano ler". Snob. Ano IV, n. 7, 1966. Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.
"Da arte de ser boneca (IV). Para marciano ler". Snob. Ano IV, n. 7, 1966. Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp.

Na década de 1970, o escritor e poeta Glauco Mattoso participou de importantes movimentos culturais de resistência à ditadura militar, como parte do grupo de poetas marginais e colaborando com veículos da imprensa alternativa. Assista ao trecho do testemunho em que ele reflete sobre as primeiras percepções acerca da sua sexualidade. Museu da Diversidade Sexual. “Memórias da Diversidade Sexual – Glauco Mattoso”. 29 de agosto de 2018.

No início dos anos 1980, quando ainda era adolescente, a artista Marcinha do Corintho iniciou o seu processo de transição de gênero. Assista ao trecho do seu testemunho em que ela conta sobre uma de suas primeiras referências sobre transexualidade: as reportagens de travestis na revista Manchete. Coleção “Memórias à margem”. Testemunho de Marcinha do Corintho. 21 de junho de 2022. Acervo Bajubá e Memorial da Resistência de São Paulo.

Anderson Herzer (1962-1982) foi um escritor e poeta transexual que publicou, em 1982, o livro "A queda para o alto", sobre suas experiências como ex-interno da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM). Capa do livro "A queda para o alto!", de Anderson Herzer. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.
Anderson Herzer (1962-1982) foi um escritor e poeta transexual que publicou, em 1982, o livro "A queda para o alto", sobre suas experiências como ex-interno da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM). Capa do livro "A queda para o alto!", de Anderson Herzer. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.
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Apoio ao Educador
Aplique o conteúdo sobre a ditadura no Brasil na sala de aula para ampliar o estudo da História do Brasil e a formação da cidadania com o suporte de sequências didáticas e a promoção do protagonismo dos alunos. Consulte sequências didáticas que poderão auxiliar os educadores a trabalharem o tema da ditadura militar brasileira em sala de aula.
Projetos
Visite a galeria de projetos especiais realizados pelo Instituto Vladimir Herzog na promoção da Memória, Verdade e Justiça no Brasil, e na difusão de histórias inspiradoras de luta.
Acervo
Explore uma diversidade de conteúdos relacionados ao período da ditadura militar brasileira que ocorreu entre 1964 e 1985.
Memória Verdade e Justiça
Os direitos da Justiça de Transição promovem o reconhecimento e lidam com o legado de atrocidades de um passado violento e de um presente e futuro que precisam ser diferentes, para que se possa dizer: “nunca mais!”. Conheça algumas medidas tomadas pelo Estado e sociedade brasileiros para lidar com o que restou da ditadura de 1964.
Cultura e Sociedade
Apesar do conservadorismo e da violência do regime, a produção cultural brasileira durante a ditadura militar se notabilizou pelo engajamento político e desejo de mudança. Conheça um pouco mais sobre as influências do período em diversos setores da sociedade.
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O Estado brasileiro utilizou uma série de mecanismos para amedrontar a população, sobretudo aqueles que não estivessem de acordo com as medidas ditatoriais. Conheça os reflexos do aparato repressivo e os focos de resistência na sociedade.