Como dito anteriormente, foi em meio aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade que a dimensão de classe da ditadura foi retomada nos debates sobre o passado autoritário. A partir de uma demanda de nove centrais sindicais brasileiras, a CNV estabeleceu, em 15 de abril de 2013, o Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e Trabalhadoras e ao Movimento Sindical, coordenado pela advogada e membro da Comissão, Rosa Cardoso. O grupo, que ficaria conhecido como GT 13, foi responsável por investigar as violações aos direitos humanos perpetradas contra a classe trabalhadora. Consequentemente, foi também no interior desse GT que ganhou força a discussão sobre a participação das empresas e dos empresários na ditadura.
O segundo volume do relatório final da Comissão Nacional da Verdade trouxe dois capítulos sobre as temáticas tratadas pelo GT 13: “Violações de direitos humanos dos trabalhadores” e “Civis que colaboraram com a ditadura”. Vale lembrar que este segundo volume do relatório foi aquele dedicado aos chamados “textos temáticos”, os quais não eram assinados pelo conjunto dos comissionados, mas sim por membros específicos da CNV – no caso, ambos foram assinados por Rosa Cardoso. Ou seja, embora tenham sido tratadas, as temáticas foram incorporadas apenas lateralmente pela Comissão, na medida em que não fizeram parte do núcleo duro do relatório, expresso em seu volume I.
Como os títulos dos textos sugerem, eles abordam temáticas profundamente relacionadas entre si, mas tratadas de forma específica. No primeiro deles, a Comissão destaca aspectos como a constituição de um novo regime fabril durante a ditadura, marcado por uma “aliança empresarial-policial-militar” que colocou a estrutura repressiva do regime no interior dos espaços de trabalho, militarizando-os e abrindo caminho para uma série de violações aos direitos humanos contra os trabalhadores, dentre as quais se destacam as prisões arbitrárias e coletivas, a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados.
Já o segundo texto trata especificamente da colaboração de empresas com o regime, inclusive no financiamento dos órgãos de repressão. O caso mais emblemático tratado no relatório, nesse sentido, é a criação da “caixinha” da Operação Bandeirante (Oban). Como a CNV demonstra, houve uma ampla articulação de setores do empresariado de São Paulo para levantar fundos com o objetivo de financiar esse novo organismo repressivo criado em 1969, que seria o precursor dos Departamentos de Operações de Informações dos Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODIs).
Vale notar que a articulação das centrais sindicais em torno do GT 13 produziu ainda outros documentos complementares que não foram incorporados ao relatório da Comissão Nacional da Verdade. Para o que nos interessa neste texto, vale destacar a existência de um documento intitulado “Recomendações do Grupo de Trabalho ‘Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e Trabalhadoras e ao Movimento Sindical’ para a Comissão Nacional da Verdade”. O texto traz um conjunto de 43 recomendações, divididas entre os seguintes eixos:
- Dos crimes contra a humanidade;
- Da legislação autoritária, antidemocrática e antissindical;
- Da segurança pública, da organização policial e das Forças Armadas;
- Garantia e priorização de recursos para política de arquivo e de memória;
- Dos direitos sociais, trabalhistas e sindicais.
Dentre as recomendações listadas, algumas são semelhantes às recomendações gerais listadas no relatório (como o afastamento da Lei de Anistia e a revogação da Lei de Segurança Nacional). Outras, contudo, dizem respeito especificamente à dimensão de classe da ditadura, tais como:
5. Investigar, denunciar e punir empresários, bem como empresas privadas e estatais, que participaram material, financeira e ideologicamente para a estruturação e consolidação do golpe e do regime militar;
7. Criar instrumentos que viabilizem ações coletivas de grupos de trabalhadores que sofreram prejuízos em decorrência da repressão política da ditadura civil-militar, sem a exigência de comprovação individual da perseguição sofrida;
18. Criar um Grupo de Trabalho Interministerial, com prazo determinado de trabalho, para identificação de legislação antidemocrática, antitrabalhista, antissindical e antissocial, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, para que sejam suprimidas;
30. Impedir que agências de informações públicas e privadas, bem como órgãos das Forças Armadas, da Polícia Federal, da Polícia Militar e das empresas de vigilância privada, exercitam qualquer tipo de monitoramento e acompanhamento das ações do movimento sindical de trabalhadores e dos movimentos sociais;
33. Elaborar política pública de resgate da memória de luta dos/ as trabalhadores/as que garanta a reparação histórica, somando-se à reparação econômica, sob responsabilidade do Estado e das empresas envolvidas com a repressão;
41. Ratificar a Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da demissão imotivada, e regulamentar a Convenção 151, que versa sobre a organização sindical e negociação coletiva no setor público;
43. Combater todas as formas de precarização do trabalho, criando e fortalecendo a agenda do Trabalho Decente, além de promover uma maior fiscalização nesse âmbito.
A despeito da apresentação formal e oficial deste documento à Comissão Nacional da Verdade e, inclusive, diretamente à então presidenta Dilma Rousseff, as recomendações do GT 13 não constam do relatório final da CNV, nem mesmo nos dois textos específicos sobre a perseguição aos trabalhadores e a cumplicidade empresarial. De todo modo, as investigações realizadas no âmbito do Grupo de Trabalho teriam importantes desdobramentos nos anos seguintes.