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Audiência no Rio de Janeiro sobre o caso do Riocentro
Audiência no Rio de Janeiro sobre o caso do Riocentro

A Comissão Nacional da Verdade no Brasil

O Brasil demorou muito para se dedicar aos esclarecimentos dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar. Muitos não viam com bons olhos o que, frequentemente, era caracterizado como “revanchismo”. Mesmo assim, os movimentos de resistência não ficaram imobilizados. No final da ditadura, houve a experiência pioneira de coleta e análise de documentos, processos e relatos de torturas e violações, que foi o Brasil: Nunca Mais – realizado pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo, sob a coordenação de Dom Paulo Evaristo Arns, do Rabino Henry Sobel e do Pastor presbiteriano Jaime Wright.

Iniciada clandestinamente, em 1979, essa iniciativa foi concluída com a publicação de um relatório, em 15 de julho de 1985, quando o regime civil já havia sido restaurado no país. O relatório traz a análise de mais de 900 mil páginas de processos judiciais movidos contra presos políticos e, com ele, tentava-se evitar que, após a abertura política, processos e arquivos fossem destruídos. Ele também descreve as torturas realizadas pelos órgãos de repressão. Com isto, objetivava-se resgatar a verdade histórica e aspectos da memória do terrível período nebuloso que terminava oficialmente.

Antes da criação da CNV, o Estado brasileiro já havia criado a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP), em 1995, para trabalhar na busca, investigação, localização e identificação dos mortos e desaparecidos da ditadura, e a Comissão de Anistia (CA), em 2002, para analisar pedidos de anistia e reparar moral e economicamente as vítimas de atos de exceção, arbítrio e violações aos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988.

Além dessas duas comissões anteriores à Comissão Nacional da Verdade, movimentos sociais e organizações de direitos humanos, por todo Brasil, desenvolveram importantes trabalhos, investigações, projetos de memória e de educação – sem contar a realização de demandas e reivindicações ao Estado. Em São Paulo, por exemplo, destacam-se a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o Comitê por Memória, Verdade e Justiça. Nessa luta, também foi importante a militância das novas gerações que surgiram.

Três Planos Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) vieram se somar a essas iniciativas precursoras. Em 1996, o Brasil formulou o PNDH-I, com ênfase nos direitos políticos e civis dos cidadãos. O PNDH-2, por sua vez, ampliou o alcance do Plano anterior, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais como dimensão fundamental dos direitos humanos.

Somente com o PNDH-3, lançado em dezembro de 2009,  é que foram definidas metas, metodologias e formas de acompanhamento para a implementação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, sexuais, reprodutivos e ambientais – entendendo-se que a interdependência e a indivisibilidade desses direitos configuram a efetividade, promoção e garantia dos direitos humanos.  Além disso,  a construção e a efetivação dos direitos humanos, em sua dimensão abrangente, foi pensada com ampla participação de gestores públicos, de movimentos sociais e de outros setores da sociedade civil. Este Plano também colocou em questão a capacidade de universalização dos direitos humanos no contexto de profunda desigualdade econômica e social vigente no país, considerando as condições necessárias para enfrentar tal situação.

O PNDH-3 resultou de um amplo processo de consultas e debates realizados por uma centena de conferências municipais, estaduais e nacionais que prepararam as discussões e as pautas que o iriam nortear. Estes fóruns salientaram a necessidade de incorporação ao Plano do eixo de “Direito à Memória e à Verdade”, no qual se encontra a Diretriz 23, relativa à criação de uma Comissão Nacional da Verdade.

Em respeito às deliberações, o Governo Federal nomeou um grupo de trabalho, formado por especialistas, que foi incumbido de elaborar um Projeto de Lei que foi enviado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva ao Congresso Nacional, em 12 de maio de 2010. Finalmente, foi promulgada a Lei 12528/2011 de criação da CNV, em 18 de novembro de 2011. Em 16 de maio de 2012, a Comissão foi instalada com o objetivo de investigar e esclarecer as violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988.

Ressalte-se que era competência da CNV investigar, mas não para julgar e punir os responsáveis. Para tanto, ela teve o poder de convocar vítimas, familiares, possíveis responsáveis e acusados de práticas repressivas e criminosas, para dar seus testemunhos, depor ou prestar esclarecimentos sobre fatos e casos ocorridos no período.

A equipe da CNV foi constituída por sete conselheiros, catorze assessores e um amplo conjunto de pesquisadores, peritos, consultores, colaboradores, profissionais de comunicação, estagiários, arquivistas, revisores, entre outros. Designados pela presidenta Dilma Rousseff, todos os conselheiros eram figuras públicas reconhecidas e idôneas: José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Claudio Lemos Fonteles e Gilson Langaro Dipp. Os dois últimos afastaram-se ao longo do processo, Fonteles renunciou à função e Dipp pediu afastamento por motivos de saúde. Após os afastamentos, um novo conselheiro, Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, foi chamado para compor esse grupo e nomeado em setembro de 2013. Os conselheiros coordenaram os trabalhos da CNV e da equipe, com apoio dos assessores. Formada por mais de uma centena de pessoas representando várias áreas de conhecimento, e desempenhado distintas funções, essa equipe foi organizada em três subcomissões e treze grupos de trabalho (GTs).

As subcomissões foram:

  1. Subcomissão de pesquisa, geração e sistematização de informações.
  2. Subcomissão de relações com a sociedade civil e instituições.
  3. Subcomissão de comunicação externa.

Os 13 GTs se dividiram nos seguintes temas:

1.      Ditadura e gênero.

2.      Araguaia.

3.      Contextualização, fundamentos e razões do golpe civil-militar de 1964.

4.      Ditadura e sistema de Justiça.

5.      Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical.

6.      Estrutura de repressão.

7.      Mortos e desaparecidos políticos.

8.      Graves violações de direitos humanos no campo ou contra indígenas.

9.      Operação Condor.

10.    Papel das igrejas durante a ditadura.

11.    Perseguições a militares.

12.  Violações de direitos humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil.

13.   O Estado ditatorial-militar.

 A CNV colheu 1.121 depoimentos, realizados em audiências públicas ou privadas. Além disso, investigou locais, instituições e circunstâncias relacionadas às violações de direitos humanos, como detenções ilegais, tortura, desaparecimentos e assassinatos. Também examinou documentos, arquivos e outras fontes de informações sobre o período, um trabalho que foi facilitado pela criação da Lei de Acesso à Informação, de 2011. Essa lei foi importante para que a CNV tivesse acesso a documentos de instituições militares ou de outros órgãos do Estado, que até então não estavam acessíveis ao conhecimento da sociedade.

No entanto, é importante ressaltar que os trabalhos da CNV – iniciados após quase  cinco décadas do golpe militar – seguiram com limitações: muitas informações são impossíveis de se recuperar, há suposição de que documentos importantes já haviam sido queimados pelas Forças Armadas para proteger integrantes de futuras acusações e  se mantém a crítica de que as Forças Armadas não revelaram todos os documentos que possuem, mesmo para a Comissão Nacional da Verdade.

Após dois anos e meio de trabalho, no dia 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou um relatório em três volumes e mais de 3000 mil páginas.

O volume 1 relata os trabalhos da Comissão, os resultados e as conclusões das investigações sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas, que possibilitam a constituição de um discurso oficial de Memória e Verdade sobre o período. Além disso, lista as 29 recomendações da CNV ao Estado Brasileiro, para que as circunstâncias de violência e as práticas repressivas não se repitam nunca mais.

O volume 2 reúne textos temáticos da CNV que abordam a violência a grupos específicos, como os povos indígenas, trabalhadores da cidade e do campo, militares e homossexuais e, também, instituições, como a Igreja Católica e as Universidades. Inclui, ainda, a análise do apoio de setores civis, como o empresariado, à ditadura e à repressão e, por fim, as formas de resistência que setores civis encontraram para enfrentá-las.

O volume 3 é totalmente dedicado à vida e, na medida do possível, ao esclarecimento das circunstâncias da morte das 434 pessoas reconhecidas como desaparecidas e mortas no período ditatorial. Nesse volume, é registrada parte da história de cada uma das vítimas, o que é uma forma de o Estado, mesmo que de modo póstumo, reconhecer e, minimamente, restituir suas dignidades.

Com este relatório, finalmente o Estado reconhece oficialmente a responsabilidade por crimes ocorridos em nossa história. Especificamente, a CNV nomeou 377 pessoas como responsáveis direta, ou indiretamente, por crimes praticados, como tortura e assassinato. A Comissão ainda elaborou um conjunto de 29 recomendações, cujo cumprimento pode efetivar a Justiça de Transição em nosso país e garantir a existência de instituições democráticas.

São, resumidamente, algumas delas:

  1. Que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade institucional em graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar.
  2. A não aplicação da Lei de Anistia para agentes que forem juridicamente responsabilizados por crimes ocorridos no período ditatorial.
  3. A proibição de realização de eventos em comemoração ao golpe de 64.
  4. Modificação da formação e ingresso dos militares.
  5. Desmilitarização das polícias.
  6. Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura.
  7. Desvinculação dos institutos médicos legais e dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e da Polícia Civil.
  8. Garantia de atendimento médico e psicossocial às vítimas de graves violações de direitos humanos.
  9. Revogação da Lei de Segurança Nacional.
  10. Continuação das pesquisas da CNV.
  11. Continuação das buscas pelos mortos e desaparecidos.

Essas e outras recomendações visam o aperfeiçoamento da legislação, das instituições e da formação educacional com o intuito de garantir e promover os direitos humanos em nosso país e de aperfeiçoar as instituições e o sistema democrático.

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