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Julgamento das Juntas em 1985 na Argentina
Julgamento das Juntas em 1985 na Argentina

Experiências Internacionais que antecederam a CNV

Antecederam a criação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil mais de trinta iniciativas ao redor do mundo de comissões com intuitos parecidos no que diz respeito à produção de Memória e Verdade sobre períodos ditatoriais ou de conflitos internos – os nomes dessas comissões variam de acordo com seus contextos e objetivos (alguns exemplos serão vistos adiante). Esse conjunto de experiências internacionais foi muito importante para nortear a construção da CNV em nosso país.

A comissão argentina (CONADEP), criada pelo presidente Alfonsín em 1983, no mesmo ano em que termina a ditadura em seu país, esclareceu casos e debruçou-se sobre desaparecimentos forçados, mapeando também centros clandestinos de detenção. No caso do Chile, ocorreram duas comissões: a de 1983 e a de 2003, e ambas se debruçaram sobre os desaparecimentos, mortes, torturas e prisões ilegais cometidos pelo Estado.

As comissões desses dois países normalmente são apontadas como experiências que se tornaram referência para outros processos de Justiça de Transição na América Latina. Também vale lembrar que elas levantaram a possibilidade de que os responsáveis fossem julgados por seus crimes. Algo dessa ordem ocorreu no Peru em 2001, onde a comissão  ajudou a criar as condições que revisaram a efetividade da Lei de Anistia do país, tornando possível a condenação do ditador Alberto Fujimori por corrupção e por graves violações de direitos humanos.

Entre as CV que atuaram nesses três países da América do Sul, a experiência da Argentina foi possivelmente a mais exemplar.

As experiências da CONADEP na Argentina

A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), foi criada em 15 de dezembro de 1983 – apenas 5 dias após ocorrer a eleição do presidente Raúl Alfonsín – e teve por objetivo produzir um relatório sobre os desaparecimentos ocorridos durante a ditadura argentina (1976-83), esclarecendo os locais, métodos e fatos envolvidos nesses desaparecimentos. Em apenas nove meses, seus componentes produziram o relatório denominado “Nunca más”, contendo mais de 50 mil páginas, nas quais foi apresentada uma lista parcial de 8.961 pessoas desaparecidas e identificados 380 centros clandestinos de detenção.

Divulgado oficialmente em 1984, esse relatório serviu de base para o Julgamento das Juntas Militares, ocorrido em 1985, no qual foram condenados à prisão, entre outros militares, os ditadores Jorge Rafael Videla, Orlando Ramón Agosti e Emilio Eduardo Massera. As informações apuradas nessa exaustiva investigação foram fundamentais para que os responsáveis por graves violações de direitos humanos pudessem ser responsabilizados por seus crimes.

As Comissões da Verdade trabalham, muitas vezes, em cooperação com outros países. Muitos dos documentos trocados entre eles têm sido fundamentais para esclarecimentos de casos e para a compreensão das conexões globais do funcionamento de regimes ditatoriais. Por exemplo, o julgamento da Operação Condor em 2016, na Argentina, é um marco de um processo que envolveu vários países durante o período ditatorial. As experiências e decisões de outros países influenciam diretamente as maneiras como podemos compreender e lidar com a memória, a verdade e a justiça em nosso país.

As Comissões da Verdade de El Salvador e Guatemala

Nesses dois países da América Central, as CV tiveram outra especificidade: elas investigaram e analisaram as consequências dolorosas e nefastas dos conflitos armados que dividiram esses países e seus povos e vitimaram centenas de milhares de pessoas.

El Salvador, na América Central, viveu uma Guerra Civil que tomou conta daquela nação por doze anos, entre 1980 e 1992. Em janeiro de 1992, as forças governistas e os guerrilheiros da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN) assinaram os chamados “Acordos de Paz de Chapultepec”, que puseram fim ao conflito armado e viabilizaram a criação da Comissão da Verdade salvadorenha. Imediatamente, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou a Lei de Reconciliação Nacional que, entre outras coisas, concedia anistia aos crimes políticos comuns.

No entanto, o Art. 6 dessa Lei previa que não poderiam receber anistia aquelas pessoas que fossem apontadas pelo relatório da Comissão salvadorenha como participantes em graves violações de direitos humanos. Contudo, o mesmo Art. 6 também previa que, seis meses após a entrega do relatório, a Assembleia Legislativa poderia adotar as resoluções que julgasse necessárias para dar conta de tais casos.

A CV salvadorenha entregou seu relatório no dia 15 de março de 1993 e, apenas cinco dias depois, a Assembleia Legislativa aprovou a Lei de Anistia Geral para a Consolidação da Paz, concedendo anistia ampla, absoluta e incondicional aos acusados de crimes políticos e de graves violações de direitos humanos.

Finalmente, em junho de 2016, a Lei de Anistia Geral foi revogada por ser compreendida como inconstitucional, abrindo caminho para que os crimes da Guerra Civil sejam julgados e os culpados responsabilizados.

Ainda na América Central, a Guatemala foi palco de um conflito armado, que sangrou o país, entre 1960 e 1996, opondo sucessivas ditaduras militares a grupos guerrilheiros.

Em dezembro de 1996, um acordo de cessar-fogo pôs fim à Guerra Civil e definiu a formação da denominada “Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH)”. Os trabalhos dessa comissão resultaram em um relatório, que apresentou números impressionantes: mais de 200 mil pessoas assassinadas e cerca de 45 mil desaparecidos. O relatório também registrou o genocídio praticado contra diversos povos maias, registrando-os entre os mortos e desaparecidos.

No entanto, os acordos de paz entre o Governo da Guatemala e a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) – grupo que unificou em 1982 os quatro principais grupos guerrilheiros do país – estabeleceram que a CEH não teria qualquer caráter de denúncia e que os nomes dos responsáveis pelos crimes seriam omitidos do relatório, garantindo o anonimato dos criminosos. Tal decisão impossibilitou que a verdade dos fatos estabelecida no relatório da CEH pudesse servir de base para a acusação e julgamento daqueles que cometeram as graves violações de direitos humanos.

Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul

Com o fim do regime de segregação racial, conhecido como “Apartheid”, e com a eleição, em 1994, de Nelson Mandela para a presidência, a África do Sul se abriu para a possibilidade de investigar os crimes cometidos pela minoria branca contra a imensa maioria negra do país.

A Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) sul-africana foi criada em 1995 e realizou suas atividades de 1996 a 1998.  Além de realizar essa função, a CVR também foi instituída com o intuito de estabelecer critérios para uma grande reconciliação nacional.

Presidida por Desmond Tutu, a CVR ouviu mais de 22 mil vítimas e mais de 7 mil pessoas acusadas de crimes. Duas experiências marcaram esses depoimentos: por um lado, os pedidos de anistia de cada uma das mais de 7 mil pessoas foram avaliados individualmente e uma condição básica para a concessão da anistia era que a pessoa colaborasse revelando a verdade sobre os fatos ocorridos, confessando seus crimes; por outro lado, a CVR incentivou, em muitos casos, o contato direto entre as vítimas e os agressores, com o intuito de que o perdão pudesse vir a acontecer e a reconciliação se realizar.

Essa maneira de relacionar a descoberta da verdade com a busca pela reconciliação marcou os trabalhos da CVR. Mesmo que dos 7.112 pedidos de anistia apenas 849 tenham sido concedidos, tendo outros 5.392 sido recusados, a CVR ficou conhecida por esse duplo aspecto controverso: o de colocar em contato direto vítimas e agressores, e o de conceder anistias individuais para casos em que houvesse confissão e colaboração com a revelação da verdade.

A CVR tornou-se, portanto, um marco nas discussões sobre o funcionamento das Comissões da Verdade principalmente no que diz respeito à relação entre a obtenção da verdade dos fatos e a efetivação de processos de reconciliação.

Marcos estabelecidos em documentos internacionais

São fundamentais os documentos internacionais para o estabelecimento de como podem funcionar as Comissões da Verdade. Dois deles, o “Princípios Joinet” (1997) e o “Mecanismos legais para Estados saídos de conflitos: comissões da verdade” (2006), ambos elaborados pela ONU, são referências na definição de como deve se organizar e atuar uma Comissão da Verdade. Além de garantir e promover os direitos da Justiça de Transição, esses documentos trazem alguns princípios básicos norteadores de uma Comissão da Verdade.

O documento “Princípios Joinet” apresenta os seguintes princípios:

  1. Determinar os fatos ocorridos e evitar que provas desapareçam.
  2. Garantir a independência e a imparcialidade dos trabalhos da Comissão, salvaguardando sua legitimidade.
  3. Delimitar as funções e o mandato da Comissão.
  4. Garantir os direitos das pessoas acusadas, concedendo a possibilidade de tal pessoa expor sua versão dos fatos.
  5. Garantir a segurança e proteção das vítimas, fazendo com que seus testemunhos ocorram de modo estritamente voluntário.
  6. Garantir os meios financeiros, materiais e pessoais para o funcionamento da Comissão.
  7. Produzir recomendações para o Estado e tornar público os relatórios que resultem do trabalho da Comissão.

Já o documento “Mecanismos legais para Estados saídos de conflitos: comissões da verdade”, apresenta os seguintes princípios norteadores:

  1. A realização de uma Comissão da Verdade deve ser uma escolha do país em questão e os aspectos que a devem orientar não podem ser impostos por instâncias exteriores ao país.
  2. As Comissões da Verdade devem ser compreendidas como parte da perspectiva e das estratégias de efetivação dos direitos da Justiça de Transição.
  3. As experiências de outros países podem influenciar na adoção do modelo de funcionamento de uma Comissão da Verdade, mas esta deva ser, prioritariamente, construída com base no contexto local e específico do país.
  4. As comissões se demonstram mais bem sucedidas quando estão vinculadas a uma genuína vontade política e a uma real independência operacional.
  5. As Comissões podem receber apoio internacional, seja financeiro, técnico ou de outros tipos.

Nunca más

O nome “Nunca más”, escolhido pela CONADEP como título de seu relatório, transformou-se em um dos lemas mais populares da não repetição dos crimes e violações de direitos humanos praticados pelo Estado durante ditaduras ou situações de conflito. O relatório “Brasil: Nunca Mais” – realizado pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo – inspirou-se no nome do relatório argentino.

Desmond Tutu

Desmond Tutu (1931-) é um arcebispo ganhador do Nobel do Paz (1984) que ficou conhecido por sua luta contra o Apartheid e também por sua defesa complexa do perdão como forma de resolução dos conflitos entre vítimas e criminosos para a reconciliação em países que passaram por conflitos internos.

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