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Avanços e lacunas da Comissão Nacional da Verdade em matéria de gênero

Avanços e lacunas da Comissão Nacional da Verdade em matéria de gênero

Influenciada pelo arcabouço normativo e jurisprudencial do Direito Internacional dos Direitos Humanos e pelo acúmulo de outras experiências anteriores de comissões da verdade – como a Comissão da Verdade da Guatemala, da África do Sul, do Peru, de Serra Leoa e de Timor Leste –, a CNV promoveu um importante avanço sobre a matéria, tendo aberto espaço para o reconhecimento e a escuta das violências de gênero perpetradas durante a ditadura militar brasileira (Franco, 2017). Isso certamente só foi possível pela atuação dos movimentos feministas, de direitos humanos, de familiares de pessoas mortas e desaparecidas, e pela própria postura das mulheres afetadas pela violência de Estado, que decidiram dar seus testemunhos, ainda que isso implicasse enfrentar e revisitar lembranças, traumas, sofrimentos físicos e psicológicos.

A qualidade dos trabalhos da CNV foi internacionalmente reconhecida (SIKKINK, MARCHESI), tendo sido inclusive referenciada pelo Relator Especial da ONU no relatório “The gender perspective in transitional justice processes” (ONU, 2020, pp. 7, 9, 16). O diferencial dos trabalhos da CNV pode ser atribuído a pelo menos três fatores.

Em primeiro lugar, a CNV estabeleceu, em julho de 2012, o Grupo de Trabalho “Ditadura e Gênero”, responsável por investigar as violações de direitos humanos relacionadas às questões de gênero. O grupo coletou e sistematizou testemunhos, em sua maioria privados, tendo realizado uma audiência pública sobre Verdade e Gênero, em março de 2013, em parceria com a Comissão da Verdade de São Paulo (Comissão Rubens Paiva).

Em segundo lugar, a CNV expandiu seu mandato legal, incluindo as violências sexuais perpetradas, sobretudo contra mulheres, no rol das graves violações de direitos humanos, estabelecido pela Lei 12.528/2011. O capítulo 10 do volume 1 de seu relatório final, intitulado “Violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes”, aborda a violência sexual como importante elemento da lógica da tortura perpetrada pelo Estado ditatorial e trata também da violência perpetrada contra crianças e adolescentes, como forma de impactar especialmente suas mães (CNV, 2014, vol. 1, p. 402).

Em terceiro lugar, a CNV foi pioneira ao publicar, no volume 2 de seu relatório final, o texto “Ditadura e homossexualidades”, visando abordar a complexidade das relações entre a ditadura militar brasileira e as várias formas de homossexualidades, agrupadas atualmente na sigla LGBT+.

Apesar dos avanços, significativas lacunas marcaram os trabalhos da CNV, impactando a forma como o gênero tem sido abordado na justiça de transição brasileira.

Note-se que a violência de gênero foi quase exclusivamente compreendida, nas pesquisas e no relatório final da CNV, como violência sexual perpetrada sobretudo contra mulheres.

Ainda que a investigação sobre esse tipo de violação de direitos humanos seja imprescindível, o fato é que essa restrição pode, equivocadamente, situar a mulher numa posição exclusivamente de vítima, atribuindo-lhe um domínio meramente sexual, o que acaba por desconsiderar a variedade de maneiras em que mulheres resistiram e/ou foram vitimadas durante a ditadura militar.

O enfoque de gênero demanda o alargamento do conceito de violência e de vítima, incorporando, para além da investigação da violência sexual, outras violências de natureza social, econômica, cultural e psicológica, por exemplo. 

Além disso, uma série de críticas aponta que o enfoque de gênero não foi adotado de maneira transversal no relatório final da CNV (Franco, 2017; Castro, 2020; Duque, 2023). O tema fica praticamente restrito ao capítulo 10 do relatório, sendo deixado de lado nos demais capítulos que abordam casos emblemáticos e as graves violações de direitos humanos, como tortura, desaparecimentos forçados, detenções ilegais e arbitrárias, execuções e mortes decorrentes de tortura. Do ponto de vista da autoria das graves violações, abordada no capítulo 16, também não há qualquer menção específica aos crimes de natureza sexual ou às violências de gênero atribuídas aos agentes estatais. Por sua vez, o debate sobre gênero e sexualidade fica restrito ao texto 7 (“Ditadura e homossexualidades”) do volume 2 do relatório final, elaborado pelos pesquisadores James N. Green, Carlos Manuel de Céspedes e Renan Quinalha. 

Ainda que a abordagem do tema seja considerada pioneira no âmbito de atuação de uma comissão da verdade, não há como ignorar que o texto foi inserido no segundo volume do relatório, que traz textos temáticos “produzidos sob a responsabilidade individual de alguns conselheiros da comissão”, ao contrário do volume 1, que apresenta dezoito capítulos que priorizam as graves violações de direitos humanos e que foram “subscritos coletivamente pelos conselheiros”. A divisão estabelecida pela CNV faz parecer que a repressão sofrida por pessoas LGBT+ durante a ditadura não se insere no âmbito das graves violações de direitos humanos investigadas oficialmente pelo órgão.

Por fim, o relatório da CNV não apresenta, no capítulo 18, sobre “Conclusões e recomendações”, recomendações com enfoque de gênero. Ainda que a CNV tenha concluído que as graves violações de direitos humanos perpetradas durante a ditadura fizeram parte de uma política de Estado, configurando crimes contra a humanidade, não há qualquer menção que destaque as violências contra as mulheres e as violências de gênero ao longo de suas conclusões. Ademais, dentre as 29 recomendações do volume 1, apenas a de número 23 aborda a questão de gênero, demandando do Estado brasileiro a “supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades”. As demais recomendações destinadas à população LGBT+ foram mantidas separadas no volume 2. Nem mesmo a recomendação 26, que determina o “estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV”, faz menção à importância de se dar continuidade e de se aprofundar as investigações sobre as violações de direitos humanos perpetradas contra mulheres e pessoas LGBT+ no contexto ditatorial.

Destacar as lacunas da CNV, é necessário esclarecer, não implica desconsiderar a importância de seus trabalhos, tampouco ignorar o contexto temporal de sua criação e de seu funcionamento, sucedido pelo desenvolvimento dos estudos sobre gênero no campo nacional e internacional. Se é certo que a CNV buscou implementar uma lente de gênero durante seus trabalhos, as reflexões sobre o conceito de vítima, de violência e de reparação permaneceram, contudo, ainda limitadas. Passados dez anos da publicação do relatório final da CNV, iluminar as lacunas referentes às questões de gênero pretende contribuir para o fortalecimento do legado da CNV, de modo a impulsionar a adoção de novas abordagens no campo transicional brasileiro.

De acordo com Sikkink e Marchesi, colaboradoras do Transitional Justice Research Collaborative (Universidade de Minnesota) – a mais ampla base de dados sobre justiça de transição – a experiência brasileira pode ser considerada bastante exitosa, destacando em razão da qualidade de seus trabalhos. Durante a análise de 43 diferentes comissões da verdade, estabelecidas entre 1972 e 2014, as autoras atribuíram a cada experiência notas de 0 a 7. Enquanto a média das comissões alcançou a nota 3.18 do total de 7, a CNV recebeu nota 7, destoando significativamente da maioria das experiências anteriores.

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