Após quatro décadas do fim da ditadura militar e do início da redemocratização do Brasil, nenhum dos agentes públicos que atuaram direta ou indiretamente para sustentar o regime sofreu qualquer punição, apesar dos esforços em identificá-los e revelar seus crimes. Chamados de perpetradores, a grande maioria manteve-se anônima em suas trajetórias no serviço público, recebendo promoções e alcançando altos cargos e patentes nas instituições em que atuaram.
Apenas nos últimos dez anos, mais de meio bilhão de reais foram pagos pelo Estado brasileiro a esses agentes e seus descendentes, por meio de aposentadorias e pensões. A análise também revelou que 76 militares das Forças Armadas chegaram ao posto máximo da hierarquia militar. Em vez da punição, foram premiados pelos crimes que cometeram.
Entender melhor a trajetória desses agentes públicos é essencial não apenas para demonstrar a impunidade decorrente da Lei de Anistia de 1979 – marco legal no Brasil que concedeu anistia a pessoas que cometeram crimes políticos ou conexos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 –, mas também para compreendermos como se constituiu parte dos órgãos repressivos no Brasil pós-ditadura, já que, ao permanecerem no serviço público, especialmente nas polícias e Forças Armadas, esses agentes moldaram significativamente essas estruturas.
Ao analisar o processo de reestruturação do Estado na Alemanha após o fim da Segunda Guerra, Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, ressalta que “Uma coisa é desentocar criminosos e assassinos de seus esconderijos, outra é encontrá-los importantes e prósperos no âmbito público – encontrar nas administrações estadual e federal e, geralmente, em cargos públicos inúmeros homens cujas carreiras floresceram no regime de Hitler.”
A identificação de agentes da ditadura, que frequentemente atuavam de forma clandestina, nunca foi tarefa fácil e teve início ainda durante o regime repressivo, com listas produzidas por presos políticos, conforme detalhado na obra Torturadores: Perfis e trajetórias de agentes da repressão na ditadura militar brasileira, de Mariana Joffily e Maud Chirio. Entre 1978 e 1979, o jornal Em Tempo divulgou três listas redigidas por esses presos, sendo reconhecido com o primeiro Prêmio Vladimir Herzog pela coragem. Além dessas iniciativas, o projeto Brasil: Nunca Mais (BNM) contribuiu significativamente ao analisar os processos da Justiça Militar, resultando em uma lista de 444 torturadores divulgada em 1985, demonstrando que, mesmo durante o regime, houve esforços para registrar os nomes dos perpetradores dos crimes de Estado.
Para esta pesquisa, foram utilizadas duas listas: os 377 nomes divulgados em 2014 pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e outra, fruto de uma análise minuciosa das 77 ações (53 criminais e 24 cíveis) abertas desde 2011, no contexto do Grupo de Trabalho de Justiça de Transição do Ministério Público Federal (MPF), que adicionou mais 73 perpetradores ainda não citados pela CNV, resultando em um total de 449 nomes, em sua grande maioria agentes públicos.
A correta identificação desses nomes — inclusive sua grafia, além dos números de identificação, essenciais para afastar homônimos — foi fundamental para garantir exatidão na solicitação de pedidos de acesso à informação e na consulta aos canais de transparência ativa dos portais públicos. O objetivo foi buscar informações sobre a trajetória funcional desses servidores, como data de ingresso no serviço público, data de aposentadoria, primeiro e último cargos exercidos, remunerações recebidas e pensões legadas. Não se trata aqui de um estudo exaustivo, mas de um panorama possível a partir dos dados disponibilizados.
Acessar esses dados, no entanto, não é tarefa fácil. Embora a Lei de Acesso à Informação (LAI), promulgada em 2011 (Lei nº 12.527), tenha impulsionado grandes avanços nas políticas de transparência ativa — tornando acessível, entre outros, a remuneração de servidores —, diversos pedidos foram negados. Frequentemente, a justificativa para negar os pedidos de informação sobre servidores baseia-se na alegação de que são “dados pessoais” e, portanto, protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). No entanto, há argumentos ainda mais criativos, como a alegação de que o órgão não possui uma planilha com os dados solicitados e que a demanda exigiria “pesquisa e trabalhos adicionais”, o que configura uma distorção da própria LAI.
Para garantir maior confiabilidade aos dados fornecidos, a estratégia de cruzamento de informações — buscando a repetição e confirmação dos dados em diferentes fontes — revelou-se indispensável.