O regime militar teve múltiplos impactos sobre a questão racial no Brasil. Censura, vigilância, exílio, cassação, perseguição, desarticulação do ativismo e organizações negras, além do controle e dos impedimentos ao debate sobre o preconceito, a discriminação e as desigualdades raciais foram os resultados negativos mais evidentes dos governos militares sobre a vida dos afro-brasileiros.
Os avanços das atividades e do debate público sobre relações raciais legados do ativismo negro organizado desde o fim da Segunda Guerra sofreram fortes abalos durante a ditadura militar. Em 1968, ano de endurecimento do regime, a maior liderança negra brasileira, Abdias Nascimento (1914-2011), fundador do Teatro Experimental do Negro, o TEN, principal entidade das mobilizações antirracistas do pós-Estado Novo, deixou o país rumo aos Estados Unidos, onde passou a denunciar para o mundo a situação de discriminação e de desigualdades sofridas aqui pela população negra.
Não só o exílio de Nascimento abalou os alicerces da crítica negra no país, mas a cassação e o exílio do intelectual e deputado Guerreiro Ramos (1915-1982), integrante do TEN. Estas duas situações foram decisivas para desarticular as redes de solidariedade, as reflexões e os projetos de resistência no seio da comunidade negra organizada, gerando na militância um sentimento de terror e medo de denunciar a temática de forma aberta.
Com a saída de cena do Teatro Experimental do Negro e seus principais líderes, as demais associações negras passaram a atuar cada vez mais por meio de atividades culturais, como a literatura, recitais, teatro, imprensa negra, valendo-se assim de novas redes de solidariedade e trocas intelectuais num contexto internacional de Guerra Fria e de lutas anticoloniais. Além da desmobilização e reorientação das estratégias visíveis do associativismo negro, a ditadura militar exerceu impacto no debate sobre a questão racial, seja no âmbito acadêmico, no institucional ou mesmo nas artes.
A agenda de pesquisa sobre relações raciais desenvolvida no processo de institucionalização do campo científico das ciências sociais, a exemplo das pesquisas realizadas na Universidade de São Paulo, por Roger Bastide e Florestan Fernandes desde os anos de 1950, perdeu o espaço que tinha na principal universidade brasileira, posto que o golpe militar interferiu diretamente na carreira universitária de estudiosos, cujos resultados das investigações questionavam o mito da democracia racial de um lado, e o argumento da ausência de preconceito racial de outro.
Thomas Skidmore talvez tenha sido o primeiro a notar o impacto dos expurgos dos professores sobre o desenvolvimento de pesquisas relativas à questão racial, levando-as à atrofia durante o período autoritário. O historiador norte-americano afirma que os militares não chamavam de subversivos apenas os guerrilheiros com suas armas, mas também os cientistas com suas ideias, dentre os quais estavam arrolados acadêmicos que tinham apresentado questionamentos acerca da democracia racial no Brasil.
Outro exemplo paradigmático das posições oficiais do regime foi a supressão da pergunta sobre raça/cor no censo de 1970. Pela primeira vez na história do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não se pode coletar dados capazes de informar sobre as diferenças nas condições de vida da população brasileira, segundo o seu pertencimento racial. Isso teve impacto nas pesquisas sobre desigualdades entre negros e brancos, uma vez que o principal órgão de coleta de dados oficiais sobre o povo brasileiro negou-se a produzir esse tipo de informação impactando diretamente a luta antirracista que se nutria destes números para realizar suas denúncias.
No que se refere diretamente ao ativismo, a Lei de Segurança Nacional restringia o espaço dos movimentos sociais e, consequentemente, a atuação dos militantes negros, já que na referida lei a incitação ao ódio ou à discriminação racial era entendida como crime contra o Estado. Tendo em vista que a negação do racismo tornou-se o discurso oficial, qualquer questionamento à ideologia do regime militar poderia ser entendido como racismo reverso, ou seja, os movimentos que denunciassem a discriminação ou o preconceito racial eram interpretados como agentes que promoviam o ódio e animosidades entre os grupos raciais.
Sob o olhar atento dos censuradores e dos demais agentes de vigilância e controle social, produções culturais, reuniões e manifestações contra o preconceito ou a discriminação poderiam ser entendidas como subversivas ou como atentados à segurança nacional. O discurso oficial dos militares era o da democracia racial, interpretação que limitava a inserção pública ou questionamento de temas ligados à situação étnico-racial no país, uma vez que a democracia racial era mesmo um dos pilares do nacionalismo político alimentado durante o regime autoritário.
Vários intelectuais, encontros e organizações que pautavam o tema foram vigiados, a exemplo do Movimento Negro Unificado e suas reuniões em diferentes lugares do país. Houve por parte dos militares grande preocupação com espaços do movimento black nos centros urbanos, especialmente nos subúrbios cariocas.
No que se refere à cassação de políticos negros, um dos casos mais emblemáticos foi o de 1968, que envolveu o prefeito eleito de Santos, litoral do Estado de São Paulo, Esmeraldo Tarquínio. Sua trajetória oferece pistas sobre o quão complexas eram as relações raciais durante a ditadura dos generais. De família pobre da baixada santista, ficou órfão aos sete anos de idade. Por isso, teve vida dura na infância e na adolescência, períodos em que passou por diversas ocupações: office boy, marceneiro, despachante, vendedor de livros e outras funções típicas de meninos de estratos populares.
Envolvido com a política desde muito jovem, elegeu-se primeiro vereador, em 1959, e deputado estadual, em 1962. Em 15 de novembro de 1968, venceu as eleições municipais para prefeito de Santos. Contudo, o General Costa e Silva nomeou um interventor federal e Tarquínio foi cassado um mês antes da sua posse. Impedido de assumir o cargo, o prefeito eleito teria seus direitos políticos suspensos por 10 anos. O político, ferrenho defensor da igualdade racial e preocupado com a justiça social, voltaria a se candidatar somente nas eleições de 1982, no contexto da redemocratização, mas fora vitimado por um acidente vascular cerebral poucos dias antes do pleito. No contexto de sua morte, os jornais paulistas noticiaram os conflitos que o político viveu, anos atrás, com as forças armadas:
O racismo, como se sabe, foi uma das razões, assim como fato de muitos poderosos da época, em Santos, não aceitarem como prefeito um negro que, ainda por cima, tinha ideias socialistas. Poucos duvidam que tudo não tenha começado em 1965, quando durante uma palestra de reservistas veteranos da Fortaleza de Itaipu. Depois da palestra, um general o chamou, aos brados, de comunista e mandou que fosse limpar as latrinas de Moscou.
Ao lado do caso de Tarquínio, há a experiência do ator e comunista Zózimo Bulbul, nome africano de Jorge da Silva, nascido no Rio de Janeiro, em 1937. Jorge era de origem popular, filho de trabalhadores manuais. Ingressou na Faculdade de Belas Artes, em 1959, na qual estudou desenho, pintura e cenografia. Ainda na faculdade, se aproximou do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e frequentou o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE).
Segundo o pesquisador do cinema brasileiro, Noel de Carvalho, em 1969, Zózimo já tinha uma carreira promissora como ator. Naquele ano, interpretou o personagem central do filme ”Compasso de espera”, do qual também era co-produtor. O filme foi barrado pela censura, porque era abertamente crítico à ideia de democracia racial e tinha como enredo um relacionamento amoroso inter-racial e seus impasses frente à sociedade, exibindo, inclusive, cenas de conflito entre negros e brancos. O longa-metragem foi dirigido por Antunes Filho, que defendia sua obra como um diálogo com os estudos de Florestan Fernandes sobre o negro na sociedade de classes, rompendo, assim, com estereótipos comuns na filmografia brasileira.
Estes casos mostram como a ditadura militar promoveu ativamente o silenciamento do debate público sobre a temática: as representações dominantes ora objetificavam as posições subalternas ora naturalizavam os corpos negros, associando-os ao crime, ao futebol ou ao carnaval. Toda a crítica a essas representações estereotipadas era entendida como posição subversiva. A rearticulação de uma nova crítica às representações dominantes marcadas por fortes desigualdades persistentes e estereótipos coloniais só ganharia a cena nacional com a formação de novos quadros intelectuais e do ativismo político, de homens e mulheres, associados ao feminismo e às mobilizações antirracistas.