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Ação de desapropriação na Comunidade do Caju no Rio de Janeiro
Ação de desapropriação na Comunidade do Caju no Rio de Janeiro

Remoções forçadas

O golpe de 1964 foi orquestrado por militares e apoiado por setores da sociedade interessados em implementar políticas que atendessem aos seus interesses. Não à toa, pesquisadores e militantes vêm caracterizando o regime como uma ditadura empresarial-militar. Uma das categorias privilegiadas foi o capital imobiliário, aquela parcela da elite econômica que lucra com atividades vinculadas à produção e reprodução das formas de moradia na cidade. Por isso, durante as mais de duas décadas de vigência do regime, as paisagens de muitas das nossas cidades foram profundamente alteradas. Favelas foram removidas para abrir espaço de moradia para as classes médias e altas, de modo que centenas de milhares de pessoas tiveram suas vidas impactadas. Nossas cidades ficaram mais desiguais e mais excludentes.

O exemplo do Rio de Janeiro é um dos mais emblemáticos de como a ditadura ajudou a aprofundar as desigualdades urbanas, violando os direitos de moradores de favelas e periferias. Uma das primeiras medidas na época foi a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), que de imediato deu suporte a um processo de remoções, mas que já desde 1962 vinha sendo levado a cabo por Carlos Lacerda, então governador do Estado da Guanabara. O primeiro ano da ditadura foi marcado por inúmeros despejos ilegais. Os anos de 1965 e 1966 foram de relativa calmaria nas remoções, mas após chuvas que deixaram milhares de desabrigados, as propostas de erradicar as favelas do horizonte voltaram com toda força ao debate público. Assim, em 1968, o Governo Federal criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (CHISAM), órgão vinculado ao Ministério do Interior, ocupado pelo General Afonso de Albuquerque Lima, garantindo recursos, força política e apoio da estrutura repressiva para levar adiante as remoções.

Segundo dados compilados pela antropóloga Lícia Valladares, de 1962 a 1971, as remoções forçadas no Rio de Janeiro atingiram aproximadamente 140 mil pessoas, 26 mil casas e 80 favelas. A maior parte deste contingente se deu já sob o comando da CHISAM. Deslocadas para locais muito distantes daquele onde possuíam uma vida estabelecida, estas pessoas se viam, repentinamente, afastadas de seus locais de trabalho, de suas famílias, de suas redes de sociabilidade e de lazer.

Organizados para a resistência, diversos moradores foram presos, entre eles lideranças da Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). Etevaldo Justino de Oliveira, nomeado presidente da entidade após o golpe, foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em dezembro de 1964, por organizar um plebiscito na Favela do Esqueleto, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a fim de verificar se era ou não do interesse dos moradores saírem do local. No contexto posterior ao AI-5, decretado em dezembro de 1968, quando a CHISAM se voltou contra as favelas da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul da cidade, a repressão foi ainda mais brutal. Na região, localizavam-se duas das maiores favelas do município: a Praia do Pinto e a Catacumba.

O primeiro alvo da ditadura foi a pequena Ilha das Dragas, que possuía cerca de 1.200 moradores. Notícias da época dão conta de que os moradores organizaram um boicote à primeira etapa do processo, que seria um levantamento socioeconômico. No dia posterior ao anúncio desta decisão, diretores da associação de moradores da Favela Ilha das Dragas foram sequestrados e desapareceram. Enquanto os moradores e familiares buscavam notícias sobre os quatro desaparecidos, a remoção continuou e em fins de fevereiro de 1969 foi finalizada. Em seguida, a ditadura voltou-se para a Favela da Praia do Pinto, onde habitavam cerca de 9.000 pessoas. A remoção foi marcada para março e, no dia 14 daquele mês, quatro dirigentes da FAFEG foram presos, acusados de incitar os moradores do local. No dia 25 de março, a remoção teve início, e em 11 de maio, quando ainda havia cerca de 4.000 pessoas no local, um incêndio tomou conta da favela e as casas foram integralmente consumidas pelo fogo. Ainda que não tenha sido provado que se tratou de um incêndio criminoso, relatos da época dão conta de que os bombeiros demoraram a chegar e alegaram falta de água para combater o fogo. O incêndio, que deixou vítimas fatais e feridos, abriu espaço para que no local – considerado “inurbanizável” por uma publicação da CHISAM – fosse construído um grande condomínio, voltado para famílias de militares. As atenções se voltaram, então, para a Favela da Catacumba, que possuía em torno de 7.500 habitantes. Frente ao ocorrido na Ilha das Dragas e na Praia do Pinto, a resistência dos moradores àquela remoção foi menor. A socióloga Janice Perlman, que estudou este processo, registrou em seu livro “O mito da marginalidade” o que ela ouviu do presidente da associação de moradores do local para justificar a ausência de resistência: “o AI-5 não parava na entrada da favela”.

Para além dos efeitos individuais do deslocamento forçado, e da repressão contra lideranças políticas das favelas, é importante notar quais foram os efeitos sociais dessa tentativa da ditadura de erradicar as favelas do horizonte da cidade do Rio de Janeiro. O exemplo da Lagoa Rodrigo de Freitas, que foi mencionado acima, é o que melhor define esse sentido. O local, de exuberante beleza natural, próximo às praias de Ipanema e Leblon, passou a ser visto com muito interesse pelo mercado imobiliário ao longo dos anos 1960. Não é à toa que todas as favelas da região foram completamente erradicadas naquele período, abrindo espaço para uma enorme valorização da área e para o desenvolvimento de empreendimentos imobiliários voltados para as classes altas.

Ainda que o caso das remoções no Rio de Janeiro seja o mais conhecido – e, provavelmente, o mais amplo –, ele não foi o único. Em Belo Horizonte, no ano de 1971, foi criado um órgão semelhante à CHISAM: a Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte (CHISBEL). Segundo os pesquisadores Francis Cotta e Marcilene da Silva, o órgão atuou em 423 áreas da cidade de onde removeu 10 mil barracos, atingindo cerca de 44 mil pessoas. Outro exemplo é o que ocorreu a partir de 1971 no Distrito Federal, com a implementação da “Campanha de Erradicação de Invasões”, destinada a remover moradores de favelas próximas ao Plano Piloto para cidades mais afastadas. A Vila do IAPI, que possuía mais de 80 mil moradores, foi erradicada e seus habitantes levados para a recém-criada Ceilândia. Em ambos exemplos –  BH e DF –, a lógica que orientou o processo de remoções foi a mesma da capital carioca, ou seja, a de aprofundar a segregação socioespacial. Assim, durante a ditadura, milhares de pessoas tiveram suas vidas profundamente impactadas e seus direitos violados, no contexto de verdadeiras limpezas sociais e étnicas de determinadas regiões, promovidas para garantir que os empreendimentos imobiliários voltados para as elites pudessem prosperar.

Embora seja uma agenda fundamental a ser aprofundada, são poucas as pesquisas que dão conta de como processos semelhantes aconteceram em outras localidades do Brasil.

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