“Passei muito tempo interrogando presos de favelas para conseguir descobrir onde havia depósito de armas. Então, a gente vai pegando prática. Eu tinha experiência”. Foram com estas palavras que Riscala Corbaje, um ex-agente do DOI-CODI do Rio de Janeiro – principal estrutura da repressão política da ditadura –, explicou ao Ministério Público Federal a razão de ter sido convocado para servir no órgão. O trecho do depoimento é revelador, pois evidencia as ligações entre a violência política que atingiu os opositores do regime e a violência historicamente voltada para grupos sociais considerados como “indesejáveis”, como moradores de favelas e das periferias.
O relato sobre a “experiência” de “interrogar presos de favelas” exemplifica como, ao longo da história brasileira, estes grupos foram alvos preferidos da violência estatal, mesmo em períodos de vigência de constituições democráticas. As justificativas para as violações mudaram no decorrer do tempo, mas sempre tiveram relação com tentativas de criar estigmas sobre esses espaços da cidade, marcando-os como lugares da insalubridade, da ignorância ou do crime.
A principal expressão desses estigmas é a das “classes perigosas”, criada nos momentos posteriores à abolição da escravatura em 1888 para caracterizar o enorme contingente de mulheres e homens que, naquele momento, obtiveram sua liberdade. Sintetizada no termo está a perspectiva de que os indivíduos que vivem em situação de pobreza – no Brasil, sua maioria negros – são mais propensos a cometer delitos e, por isso, representam um perigo à sociedade. Assim, justifica-se qualquer ação violenta contra eles, já que seriam criminosos em potencial.
Mas se estamos afirmando que ao longo de toda nossa trajetória elas estiveram na mira da violência estatal, isso significaria que não há diferenças entre a experiência cotidiana desses grupos nos mais distintos períodos históricos? A resposta é afirmativa, pelo fato de que os contextos trazem particularidades para a forma pela qual essa violência foi promovida. Então, ao abordamos o tema da ditadura militar, questionamos: Qual o legado da ditadura militar, iniciada com o golpe de 1964, na relação entre o Estado e esses setores? Ao longo da seção mostraremos como os 20 anos de regime ditatorial acentuaram um tratamento pautado na militarização, na violência, na reprodução e no aprofundamento das desigualdades sociais.