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O senador Abdias do Nascimento no Plenário do Senado Federal
O senador Abdias do Nascimento no Plenário do Senado Federal

Racismo e antirracismo no Brasil

Por muito tempo, parte da população acreditou que o Brasil fosse um país sem racismo, que éramos frutos de um povo miscigenado – resultante de uma grande mistura étnica e racial – e que vivíamos harmoniosamente nos trópicos. As diferenças e as desigualdades vistas por aqui seriam de classes, ou seja, explicadas unicamente por fatores socioeconômicos. Em contraposição ao sistema de segregação racial vivenciado pelos norte-americanos, até mais da metade do século XX, e em contraste ao modelo de Apartheid vigente na África do Sul até 1994, o Brasil foi descrito por mais de um século como um paraíso de brancos e negros.

Opondo-se a essa visão romântica das relações raciais, surgiram reações ao preconceito racial e em defesa da igualdade individual, que podem ser remontadas, pelo menos, desde a abolição da escravatura em 1888. Foram diversas as ações antirracistas empreendidas por intelectuais, jornalistas, artistas e militantes negros e brancos, mulheres e homens, para superar as barreiras étnico-raciais impostas à população negra que explicitaram uma ideologia das elites dominantes e não a realidade vivida pelos afro-brasileiros.

Em sua obra seminal, “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”,  de 1964, Florestan Fernandes investigou as formas de reação ao preconceito de cor e dialogou diretamente com ex-integrantes da maior organização antirracista emergente desde o término da escravidão, que foi a Frente Negra Brasileira. O sociólogo brasileiro constatou o drama da população negra desde o pós-abolição para se inserir na sociedade capitalista, que ainda apresentava cultura e comportamentos análogos ao regime escravista. Uma vez que o Brasil foi o último país do tráfico atlântico a abolir o trabalho escravo em favor da mão-de-obra-livre, era de se esperar uma investigação de fôlego que demonstrasse os dilemas da integração dos descendentes de africanos na moderna sociedade brasileira.

A tese de Fernandes confrontava diretamente o discurso de que havia convivência racialmente harmoniosa, sem conflitos, preconceitos, desigualdades e discriminações por cor. Quando o autor escreveu sua obra, vigorava a ideia de que a nacionalidade brasileira teria sido formada por uma espécie de democracia entre três grupos étnico-raciais – os portugueses, os indígenas e os africanos. Tratava-se da chamada democracia racial, termo que costuma ser atribuído a Gilberto Freyre, porque este, ao escrever sobre as relações raciais no Brasil colonial, em “Casa Grande e Senzala”, 1933, tratou de assinalar as relações íntimas entre senhores e escravizadas para destacar a emergência de um tipo social novo: o mestiço.

Tal análise foi interpretada por Fernandes como um elogio à miscigenação biológico-cultural, sem que as violências, desigualdades e hierarquizações sócio-raciais fossem levadas em conta na interpretação freyriana, a exemplo das torturas, dos estupros, da separação dos filhos dos pais, castigos brutais e  até assassinatos. Contudo, Freyre não foi o primeiro nem o único a defender a democracia racial como especificidade do povo brasileiro. Tal ideologia de harmonia entre grupos subordinados e dominantes já se fazia notar, desde meados do século XIX. No entanto, a ideia de democracia racial, como nacionalismo político, era sim uma ideologia sofisticada que se desenvolveu ainda no contexto da Primeira República, ampliando-se durante o Governo Vargas.

Os historiadores Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho, em ”Uma história do negro no Brasil”, nos contam que a ideia de democracia racial já aparece nos anos de 1920 e ganhou mais adeptos na medida em que intelectuais negros e brancos realizavam, no plano da cultura, vivências e reflexões sobre a formação do país mestiço enquanto singularidade nacional. Nessa nação imaginada, o samba, a capoeira e o candomblé foram aos poucos incorporados à identidade nacional, e logo tornaram-se exemplos da ausência de racismo. Nesse sentido, o que nos definia como brasileiros seria uma certa fraternidade racial marcada pelo compartilhamento de costumes, religião, raça, língua e memória do passado. Tudo isso garantiria nossa autenticidade como nação mestiça.

Anos mais tarde, questionada pela academia e pelos movimentos sociais, especialmente pelo associativismo e pela imprensa negra, a crença na democracia racial tornou-se insustentável frente às crescentes e numerosas denúncias de discriminações raciais no mercado de trabalho, nas instituições educacionais, no acesso aos estabelecimentos públicos e privados, nas carreiras diplomáticas, nos espaços de lazer e de entretenimento, dentre outros. Destacamos os estudos sobre relações raciais patrocinados pela Unesco no segundo ano pós-guerra, a exemplo dos trabalhos de Roger Bastide e Florestan Fernandes, em São Paulo, e Costa Pinto, no Rio de Janeiro. Aos poucos, parte da população foi se dando conta de que a ideia de democracia racial poderia até ser um ideal nobre, mas não nos blindava da perversidade do racismo nu e cru do cotidiano.

Em vez de democracia racial, passou-se a se falar mais do racismo à brasileira. Um sistema capaz de garantir convivência interpessoal entre negros e brancos, especialmente nas classes populares, e manter intocadas as abismais desigualdades raciais em diferentes esferas da vida. Algumas delas: disparidades educacionais entre negros e brancos, as diferenças  salariais e a superpopulação de pretos e pardos nos trabalhos manuais, particularmente nos empregos domésticos ou na construção civil, sem contar a sua maior presença entre os trabalhadores informais e desempregados, ou mesmo a sua desproporcional presença  nas estatísticas de violência letal no país. A questão racial é fator determinante no ciclo de vida dos negros, do seu nascimento à sua morte.

A partir do entendimento de que o racismo não pode e nem deve ser visto como assunto localizado ou excepcional, cada vez mais cresce a compreensão de que a história social e política do país precisa ser revisitada de modo a dar visibilidade à resistência negra. Sabe-se que um dos efeitos do racismo é o apagamento das experiências dos grupos sociais discriminados. Por isso, é comum a prática de distorção ou de anulação das personagens, das narrativas, dos fatos e das memórias negras na história brasileira. Do mesmo modo, é habitual a ausência de análises sobre as consequências dos processos políticos autoritários sobre a vida dos negros. É com essa realidade que devemos rever o período de 1964 a 1985, a partir da pergunta: Qual o impacto da ditadura militar sobre a questão racial no Brasil?

Frente Negra Brasileira

A Frente Negra Brasileira (FNB) foi criada em 16 de setembro de 1931, na cidade de São Paulo. Formada por negros filhos ou descendentes de ex-escravos, a Frente foi a maior associação do movimento negro da primeira metade do século XX. Dentre os seus objetivos estava o fortalecimento dos laços de solidariedade social da população negra, a criação de estratégias de combate ao preconceito de cor e a garantia da integração dos negros à sociedade brasileira. A entidade foi extinta durante o Estado Novo, em 1937.

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