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Fotografia Todos Negros de Luiz Morier
Fotografia Todos Negros de Luiz Morier

Militarização do cotidiano

Em setembro de 1982, o fotógrafo Luiz Morier, do Jornal do Brasil, registrou um momento que ficaria eternizado em nossa história. Batizada de “Todos Negros”, a imagem retrata homens negros amarrados por uma corda no pescoço, enquanto um policial os conduz para uma viatura. Feita durante uma blitz da Polícia Militar em uma favela do Rio de Janeiro, a foto é um forte símbolo do racismo institucional que orienta as forças policiais em nosso país marcado por 300 anos de escravidão.

Em seu relatório final, a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro demonstrou como a presença de forças de segurança nas favelas e periferias durante a ditadura aumentaram de forma intensa, e não somente quantitativa: a própria forma de atuação das polícias se tornou cada vez mais violenta e militarizada, sendo o principal aspecto o crescimento dos esquadrões da morte. Assim, o cotidiano dos habitantes dessas áreas passou a ser ainda mais marcado pela presença do Estado na forma de seu aparato repressivo. Os alvos não eram somente aqueles que se organizavam politicamente ou resistiam a processos de remoções e despejos. Se estendiam também aos espaços de lazer, diversão e cultura que passaram a ser objeto de vigilância e controle por parte do regime ditatorial.

Vários estudos demonstram como a Lei de Vadiagem, de 1941, sempre foi um dos expedientes usados pelas polícias contra as chamadas “classes perigosas”. Em dezembro de 1975, o jornal O Globo noticiava que em seis meses, 1.300 pessoas haviam sido detidas por “vadiagem” no Estado do Rio de Janeiro. A justificativa era que eles estariam prestando “um serviço à comunidade” ao isolar do convívio social “desocupados e maus elementos”. Se por um lado não existem dados completos sobre o uso dessa estratégia, por outro, é possível utilizar esse número como indício sólido de que durante as duas décadas de ditadura, estamos falando de centenas ou mesmo milhares de pessoas presas por serem vistas por agentes do Estado como “maus elementos”. Em outras palavras: por morarem em regiões mais empobrecidas e por serem negras. Os relatos de moradores de favelas e periferias daquele período mostram como as prisões eram arbitrárias e seus danos profundos. Às vezes, os indivíduos eram obrigados a passar dias nas delegacias sem direito algum garantido, sem nem mesmo saber a razão pela qual haviam sido detidos.

Porém, como dito anteriormente, o que ocorreu não foi somente um aumento quantitativo em relação às práticas arbitrárias e violações. Sem dúvidas, a principal mudança que se pode perceber em relação à violência do Estado nas favelas e periferias é a disseminação dos esquadrões da morte e dos grupos de extermínio. Os esquadrões da morte surgiram em fins dos anos 1950, na esteira do discurso de que as instâncias judiciais seriam muito lentas para dar conta do crescimento da criminalidade, de modo que seria necessária a realização de uma espécie de justiça com as próprias mãos. Nesse quadro, policiais passaram a se organizar, muitas vezes com financiamento privado, na forma de grupos paramilitares que utilizavam formas ilegais de exercício da violência – especialmente as execuções extrajudiciais – para combater supostos criminosos. Os esquadrões eram, então, um “poder extra-legal” que cometia as mais graves formas de violência contra a pessoa humana. A partir do início da ditadura, abriu-se um enorme espaço para que os esquadrões pudessem se reproduzir, na medida em que havia uma autorização dos seus superiores para que dessem prosseguimento àquele tipo de atuação. Essa autorização era tácita, mas às vezes era explícita.

Como no que diz respeito às prisões por vadiagem, não dispomos de informações que nos permitam falar em números definitivos de pessoas presas, assassinadas e desaparecidas por esquadrões da morte e grupos de extermínio.  Porém, exemplos como o da Baixada Fluminense – área periférica do Rio de Janeiro – nos dá algumas pistas. Em 28 de setembro de 1975, o Jornal do Brasil publicou uma tabela com estatísticas de homicídios cometidos por esses algozes naquela região. O ano de 1964 ficou marcado por oito execuções sumárias e, 10 anos depois, já eram contabilizadas 199 mortes. Ou seja, um aumento de 2.500% nos registros de assassinatos do tipo.

Até aqui, abordamos como as práticas historicamente arraigadas de controle social das chamadas “classes perigosas” ganharam novos contornos durante o regime. Mas a violência que se voltou contra as favelas e periferias também foi motivada pelo receio da mobilização política destes grupos. Ainda segundo a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, foram duas as principais justificativas utilizadas para essa atuação dos órgãos repressivos. A primeira era “a constante afirmação da propensão dos moradores de favelas à criminalidade, a qual possuía raízes já na Primeira República”. A segunda, “o medo – propagado principalmente a partir do pós Segunda Guerra – de que favelados poderiam atuar como base para uma revolução de caráter comunista”. Mobilizados por estes dois aspectos, órgãos como o DOPS e o Serviço Nacional de Informações (SNI) monitoraram e acompanharam de perto a vida cotidiana nas favelas e, mais ainda, as mobilizações políticas de seus moradores. Isso aconteceu de forma especialmente intensa durante processos de remoções forçadas.

Nos arquivos das polícias políticas, é possível encontrar inúmeros documentos que demonstram uma atuação intensa dos órgãos de repressão sobre as favelas. Mas poucos são tão evidentes quanto um “Mandado de Busca e Apreensão” assinado por um comissário do DOPS da Guanabara. Ordena que a Seção de Buscas Ostensivas do órgão “se dirija ao Centro Social de Defesa dos Interesses do Morro do São Carlos” para “proceder busca e apreender material de natureza subversiva que aí for encontrado e se preciso for usando da força para arrombar portas da casa e de suas dependências, móveis, gavetas, praticando todas as diligências indispensáveis para se efetuar a busca e apreensão ordenada”. O que tal documento coloca em evidência é que assim como sindicatos, movimentos sociais, entidades estudantis, as associações de moradores de favelas também foram objeto da indiscriminada violência estatal. Invasões em suas sedes, intervenções nas diretorias eleitas, prisão de seus membros e um intenso monitoramento foram frequentes durante aquele período.

O controle social e a repressão política não eram aspectos apartados um do outro. Ambas dimensões da violência se retroalimentavam a todo momento. Um exemplo que nos ajuda a entender como isso se deu na prática é a violência que se voltou contra os bailes de música soul, organizados por jovens negros nos subúrbios de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e da Bahia. A motivação para a repressão a esse fenômeno cultural era dupla. De um lado, o regime tinha receio que a partir dos bailes se originasse um movimento tal qual os Black Panthers estadunidenses. Orientados pela Doutrina de Segurança Nacional – que ampliou muito o rol de posturas e condutas vistas como perigosas e subversivas –, e pelo ideário da democracia racial, mito segundo o qual o Brasil seria um país livre do racismo, os agentes viam a reunião de inúmeros jovens negros nos finais de semana como algo profundamente ameaçador à Segurança Nacional. Sendo assim, diversas agências da repressão se mobilizaram para monitorar e controlar os bailes, atestados por relatos e documentos que comprovam prisões de organizadores dessas festividades por parte de órgãos como o DOPS e o DOI-CODI. De outro lado, porém, a mera reunião de jovens negros moradores de favelas e periferias era por si só vista como ameaça e motivava a ação das polícias militar e civil contra as festas. Mesmo frequentadores que não possuíam qualquer vínculo ou atuação política foram também monitorados e presos. Jovens que iam para as festas somente para se divertir acabavam sofrendo com as “duras” das polícias em seus caminhos de ida ou de retorno e, muitas vezes, iam parar em delegacias, detidos por vadiagem.

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